No primeiro plano de Gouzhen (Cão Preto, 2024), muito aberto, ao longe, por entre o céu azul com nuvens e as areias com escassa vegetação do deserto, um autocarro surge ao longe. A câmara faz uma panorâmica para a direita para ver surgir desse lado do enquadramento uma matilha de cães vadios que corre em direcção ao veículo que se despista, tombando na estrada. Este momento inaugural carrega um duplo choque. O primeiro perceptivo: chegámos a um western, a uma pintura de William Turner, a um dos espaços secos e belos do cinema de Abbas Kiarostami? A esta interjeição visual, segue-se o choque, simbólico e literal, que Guan Hu parece querer trabalhar, entre o progresso da civilização humana e uma certa autenticidade pré-industrial, veiculada pela presença livre dos animais que ali habitam.

Mais tarde saberemos que esse choque se concretizará na vida de uma pequena cidade do noroeste da China. Dela já poucos habitantes restam, os edifícios estão prestes a ser demolidos para a construção de fábricas e organizam-se campanhas para a captura de cães vadios, antes que chegue esse momento importante que se avizinha: as olimpíadas de 2008 em Pequim. Esse embate tem uma declinação particular: Lang, o protagonista, regressa à cidade depois de uma década na prisão, procurando reajustar-se a uma nova vida, enquanto processa os erros do passado. A essa personagem vadia juntar-se-á outra, canina, que dá título ao filme.
Onde o filme é extraordinariamente eficaz é na composição e encenação em profundidade, tirando partido da fotografia de Weizhe Gao. Ora na aridez do deserto de Gobi, ora nos planos escancarados e horizontais das ruínas da cidade, as personagens – humanas e não humanas -, percorrem o espaço, deambulando, completando o que parece ser um circuito de destruição e desolamento, onde as suas ambições se dissolvem como meros pontos na paisagem.
Não se pode negar que a presença do cão, bem como os demais animais, conduzem o filme de Guan Hu para um lugar algo afável, no seu gesto mais fácil sobre o peso da civilização. Vale a pena aqui pensar num cineasta como Jia Zhang-ke (aqui desempenhando um dos papéis) que possui também um olhar desesperançado sobre a modernização chinesa e as marcas deixadas nas suas cidades. A juntar ao seu recorte metafórico, Gouzhen é também um filme que, por sobre o silêncio constante da sua personagem principal, procura uma certa dimensão burlesca: basta pensar na cena de comparação de febres entre Lang e o cão, na personagem que o persegue com o retrato do sobrinho falecido, obrigando-o a curvar-se perante ele, em sinal de perdão pelo crime cometido no passado, ou essa desorganização circense, como num cenário felliniano pós-apocalítico.
Onde o filme é extraordinariamente eficaz é na composição e encenação em profundidade, tirando partido da fotografia de Weizhe Gao. Ora na aridez do deserto de Gobi, ora nos planos escancarados e horizontais das ruínas da cidade, as personagens – humanas e não humanas -, percorrem o espaço, deambulando, completando o que parece ser um circuito de destruição e desolamento, onde as suas ambições se dissolvem como meros pontos na paisagem. Essa eficácia tem uma correspondência dramática: ela surge sublinhada pela mensagem de procura de uma conexão emocional com o exterior da célebre música dos Pink Floyd, “Hey You”, que se faz ouvir várias vezes no filme. A meio deste, Lang volta a ter novo acidente no deserto, desta vez quando transportava o referido cão. E, mais tarde, ante a presença desses cães selvagens irá, finalmente, parar a sua mota e atravessar lentamente o espaço por eles habitado. Gouzhen parece transpor essa colisão entre modos de vida para uma aprendizagem no atravessamento lento dos espaços, aprendizagem ainda vertida nessa situação, desafio decorrente do herói: o atravessamento de uma ponte decrépita.
O filme de Guan Hu, que o ano passado levou para casa o prémio Un Certain Regard em Cannes, talvez sofra, na sua ponta final, de uma certa desordenação (deambulação) do seu argumento. Como se a progressão geográfica e narrativa desse lugar a um tacteamento do espaço. Contudo, na súmula de todas as andanças, esgotadas as energias da dispersão e do burlesco, há um sentimento qualquer de completude que apenas os grandes filmes deixam.
★★★★☆