Se procurássemos fazer uma arqueologia deste filme, onde começaríamos? A quem uniríamos esta estrela para formar uma constelação? Talvez seja melhor partir de fora do cinema e procurar o que há de Tardes de soledad (Tardes de Solidão, 2024) nos escritos de Bataille, nos romances de Hemingway e na pintura de Francis Bacon. São eles os pares de Serra, as suas afinidades electivas. Até porque, conheço poucos filmes onde o mundo da tauromaquia esteja presente (certamente mais por desconhecimento meu, que pela ausência deste no cinema), se o compararmos com o mundo doutros “desportos” / “espetáculos” – e não será, por exemplo, La Habanera (O Veneno dos Trópicos, 1937), de Douglas Sirk, talvez o melhor filme que me ocorre sobre o tema, que terá inspirado Albert Serra. E temo até, que seja pouco profícuo agregar filmes por temas, visto que muitas vezes reduzimos propostas estéticas, políticas e éticas tão diferentes a meros efeitos de superfície (ficamos presos à história do filme, ao deus-script todo-poderoso, tão cultuado e adorado nos dias de hoje, entre séries e filmes de nobres premissas). Ainda assim, tomo de empréstimo o título deste texto a um outro filme – uma das muitas obras-primas de Jean Renoir – porque há no plano daquele coelho a ser abatido durante a caçada uma força tal que ainda hoje a vejo ecoar pelo cinema (ou talvez seja um fantasma cinematográfico meu?).
Recentemente, ao descobrir o extraordinário universo da cineasta búlgara Binka Jeliaskova, fui novamente acometido por esse mesmo plano do coelho a ser abatido, como se La Règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939), de Renoir, tivesse estabelecido “o grande plano”, o lugar onde a arte se abre ao real, à “verdade” (palavra tantas vezes dita ao longo do filme de Serra, sobre o modo como o toureiro enfrentou o touro). É através de Renoir que o cinema se abre também à clareza da imagem, e através dela conseguimos ver além do simples gesto da caçada, como se naquele momento tivesse contido o gesto inaugural, o momento simultaneamente arcaico e atemporal, de dominação da natureza pelo homem. Seja a cena do banquete, enquanto dezenas de animais servem de repasto a uma trupe de actores bêbados e excitados, seja a cena brutal da caçada aos patos com os remos dos barcos, também Jeliaskova consegue capturar essa mesma essência renoiriana em que a morte implacável dos animais revela a natureza bestial dos homens sobre as coisas. A nossa relação com o mundo foi sempre uma relação de violência, dominação, conquista e controlo. Serra sabe-o perfeitamente. Não é por acaso que antes deste toureiro, Serra tinha já procurado retratar tais figuras como Casanova/Drácula, Luís XIV ou Marquês de Sade.
Serra é absolutamente sensível à tensão que há entre a cultura profundamente machista das touradas – não há praticamente nenhum plano do filme em que não apareçam só homens brancos heterossexuais, de porte imponente e latino – e o homoerotismo das vestes e da camaradagem que resvala em adoração.
O seu reportório masculino, apesar de ser historicamente determinável, é essencialmente meta-histórico, porque mais do que debruçar-se sobre x ou y, o que Serra procura são gestos que transcendem as suas próprias contingências temporais, são forças arcaicas que abrem fendas no tempo linear e caem tragicamente sobre determinados homens, condenando-os a repetir esse mesmo inventário de gestos, essa mesma mímica do caçador ancestral. Há uma pulsão, quer por medo daquilo que está velado e é incognoscível, quer por vontade de dominação da realidade e das coisas que o compõem, que estabelece, reitera e re-actualiza a nossa relação com a natureza enquanto projecto de conquista e submissão. Sejam os recursos naturais, sejam os animais, ambos vivem sob o jugo da nossa irrefreável vontade de dominação, mesmo que essa vontade nos pareça cada vez mais perigosa e patética (é estranho pensar a coexistência entre a actual catástrofe ambiental e as touradas, porque quanto mais espalhafatosa é a demonstração da nossa vontade de dominação, mais estes espetáculos parecem ser obtusos estertores dessa vontade).
Mas mais do que uma pulsão de morte, esta é uma pulsão erótica (e não será uma e a mesma coisa?), uma vontade de subjugação da presa aos nossos caprichos, uma volúpia irrefreável de penetração, uma sede de esventrar e de envolvermos o sangue da besta ao nosso próprio sangue (é claro que Serra conhece bem a História do Olho de Bataille ou não haveria tamanha sensualidade nos planos do rosto de Andrés coberto de sangue ou no envergar a orelha do touro cortada). Não é apenas o corpo jovem e imponente, tal como um Alcibíades, de Andrés Roca Rey que nos excita. Seria apenas mais um, nessa profusão moderna de corpos jovens tonificados, se não fossem os gestos guturais que faz, a mandíbula do rosto que se pronuncia ao ponto de devir macaco, o olhar tomado pela loucura no encontro com a imponente besta, de pelagem negra e densa como a noite, de cornos orgulhosos e saliente e boca salivante.
Roca Rey, quando está na arena não é menos animal que o touro – e não o digo enquanto juízo moral que tende a achar as touradas um espetáculo abjecto e muito menos (até porque se não conseguirmos livrar-nos dessa ganga, dificilmente entramos no filme), porque vê naqueles homens um mundo profundamente conservador (diria mesmo fascista, há um misticismo perigosamente palpável), que ainda acreditam que um homem de “tomates” é aquele que é capaz de enfrentar um touro de frente – mas antes pela simbiose que estabelecem em campo. O touro, sobretudo quando é morto, adquire uma estranha forma humana, quer pelo tombar de patas, como um César traído, quer pelo olhar vazio que nos fica muito para além do momento em que o cadáver é retirado da arena. E quanto ao toureiro, a condição animal que vai tomando conta daquele jovem, que a dado momento já nada tem de humano, é um verdadeiro espetáculo de transe a que assistimos ao longo do filme.
Ciente dessa mesma transmutação, as pinturas finais de Bacon em Espanha, são o expoente máximo dessa relação entre toureiro e touro, onde a abstracção da mancha envolve ambos os corpos, tornando-os indestrinçáveis. Também no filme, há um momento em que Serra filma em close-up o dorso do touro a escorrer sangue, enquanto o toureiro finta as investidas da besta com a elegância de um bailarino, em que ambos os corpos se mesclam na totalidade do ecrã. O lado documental está constantemente em “risco” neste filme, até porque aquilo que o cinema de Serra procura é ir além do estado “natural” das coisas. À semelhança dos corpos extenuados dos actores em Libertè (Liberdade, 2019), a figura de Roca Rey está sempre no limite da força humana. Serra não está preocupado com a condição “super-humana” do toureiro, muito menos em dignificar o papel do toureiro ao humanizá-lo; pelo contrário, ele procura incessantemente o ponto em que este se entrega ao abandono de si, em que o vemos render-se ao lado animal e o touro em sentido inverso, sem que para isso, Serra recorra a truques à lá BBC, de humanização patética do animal.
A isso junta-se que Serra é absolutamente sensível à tensão que há entre a cultura profundamente machista das touradas – não há praticamente nenhum plano do filme em que não apareçam só homens brancos heterossexuais, de porte imponente e latino – e o homoerotismo das vestes, da camaradagem que resvala em adoração e mesmo da imponência sexual do touro, tão evidente quando Serra capta os testículos ou o largo dorso do animal. Talvez a cena que melhor manifesta a tensão entre universos seja o momento em que Roca Rey, no faustoso quarto do Ritz, veste e é vestido o seu traje de toureiro, repleto de cintilantes bordados e intrincadas rendas. Primeiro, sozinho, ajeita o sexo por entre os collants que delineiam não só a portentoso falo, como o esculpido rabo. Depois, há o momento em que, deitado na cama, abre as pernas para que o manager vista o sumptuoso fato preto e dourado, fazendo-o subir até ao incomportável limite do peito. Às tantas, a cena adquire uma grotesca qualidade victoriana.
Penso que a grande mestria de Serra está precisamente nesta capacidade de fazer o filme que quer, trabalhar as tensões que a ele lhe são caras, muitas vezes com uma enorme perversidade e uma boa dose de egolatria, sem que, no entanto, o filme sofra com isso ou os actores sejam meras marionetes de idiossincráticas fantasias e projecções pessoais. Penso que Roca Rey, nunca esteve inteiramente consciente das intenções subterrâneas de Serra, mas é precisamente aí que o toureiro pode ser “documentado” (caso contrário, Rey apareceria como uma caricatura de si mesmo, uma vã e pretensiosa figura de um ídolo – erro tão comum e repetido em tantos documentários feitos sobre “grandes figuras”, que quanto mais se procuram enaltecer, mais apalhaçadas se parecem). É precisamente nesse limite que vamos tendo acesso à figura de Rey e à gramática de gestos e palavras deste, na zona de charneira entre o autodomínio (representação) e o abandono de si (não-representação) – não é por acaso que o filme procura habitar tão poucos espaços da sua biografia, e não é também por acaso que muitas cenas se reduzem aos momentos em que este enfrenta o touro na arena, às viagens de carro após as touradas e aos momentos no quarto de hotel, entre preces à Virgem e à análise ostensiva do corpo macerado.
É certo, e afirmo-o sem freio e desprovido de qualquer dom futurológico, mas Tardes de soledade é a grande estreia do ano e o regresso em pleno de Serra ao cinema, depois de um muy tedioso Pacifiction (2022).
★★★★★
