Se descermos à etimologia da palavra inglesa urchin – hoje em dia sinónimo de ouriço-do-mar – veremos que remonta a tempos victorianos onde a palavra apenas, ou o termo street urchin, era usado em referência a crianças órfãs, normalmente paupérrimas ou maliciosas, e em contextos britânicos. Em Oliver Twist, de Charles Dickens, ou dentro dos vários volumes de Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle, são alguns dos exemplos mais óbvios do uso recorrente do termo. A imagem projectada era a de um ouriço-cacheiro e da sua fisionomia alfinetada, ali para proteger a integridade do animal de possíveis predadores. Claro que o que mais protege também mais rapidamente afasta. Neste caso, isola. As suas características físicas impedem, ou dificultam com seriedade, a entrada e a subsequente interacção do animal no mundo ao qual pertence. Perante a problemática, restava-lhe afastar-se e viver o resto dos seus dias desintegrado, arrastado para as margens, onde só pode haver sobrevivência. É um título muito certeiro para o que vem a ser um estudo de personagem muito complexo, sem dúvida surpreendente, especialmente por ser um primeiro filme, e nada mais do que a estreia na realização do actor inglês Harris Dickinson, a quem colocámos os olhos pela primeira vez no assombroso Beach Rats (2017), de Eliza Hittman.

Urchin (2025) tem-se provado intrigante desde a sua estreia em Cannes, na secção Un Certain Regard, onde arrecadou o prémio FIPRESCI da secção e o de melhor actor para Frank Dillane. Dickinson tem dito ao longo do tempo que estava interessado em colocar o espectador numa situação onde o seu sentido de moralidade é avaliado. E isto confirma-se. Este é um filme tirado do tecido do realismo social britânico (a acústica mais real do que a realidade de Mike Leigh, misturado com o pontuar humanista de Ken Loach, e a cobrir tudo a crueza de Gary Goldman no torrencial Nil By Mouth [1997]) que nos aparece num palco cinemático que entretanto perdeu a sua aderência, não sabendo o que esperar do actual espectador. Dickinson sabe-o e deixa o seu filme vir a determinar um espaço fora de noções temporais, e para lá de padrões classistas ou sociais. Há muito que a crise da habitação aniquila com facilidade qualquer rede de apoio. É território novo e indefinível. O mesmo acontece com o cinema.
Funciona enquanto dispositivo para engrandecer (e não necessariamente enternecer) o nosso olhar (…) o que move Urchin é diferente do que seria expectável. Revela-se produto da hibridez de um muito actual não-futuro, o mesmo a que Mark Fisher se referia. É agudo na sua mudez.
E por isso mesmo, quando caímos nas ruas cinzentas do este de Londres, que não recebe o habitual tratamento (por vezes podia ser qualquer outra cidade metropolitana do norte da Europa), o filme não revela a espessura do seu carácter de imediato. Mas sabemos, desde logo, que funcionará enquanto dispositivo para engrandecer (e não necessariamente enternecer) o nosso olhar, colocado que está em cima da personagem de Mike (Frank Dillane), um sem-abrigo toxicodependente que dorme caído no meio de uma rua muito movimentada até uma mulher religiosa o acordar com o seu discurso sobre redenção. A linha humorosa, e por isso mesmo agridoce, que atravessa o filme daí em diante irá defini-lo tonalmente com uma certa leveza, garantindo que o que move Urchin é diferente do que seria expectável. Não se encontra muito longe do reino do documentário. Enquanto filme de ficção que é, revela-se produto da hibridez de um muito actual não-futuro, o mesmo a que Mark Fisher se referia.

O que quer isto dizer? Antes de mais, a aspereza do retrato vem, como já acontecia no cinema de Mike Leigh, da humanidade das suas personagens, dos traços e das nuances do que é contraditório, vulnerável e possível a qualquer ser, tendo em conta as suas circunstâncias e os diferentes contextos em que se encontram. Vê-se que Dickinson não queria fazer um filme-temático, muito menos um filme maniqueísta. Por isso, a queda nas profundezas não pede estilização adversa. O coração do espectador salta exactamente porque não vê, logo à partida, alteridade ali. Há que realçar que a realidade de Mike está disponível a ser perscrutada por todos que por ele passam. Mas não é por isso que é vista! Fascinante é então vir a conhecê-lo. Mike passou os últimos cinco anos a viver na rua. A sua linguagem corporal diz-nos que é tempestuoso e imprevisível, mais ingénuo e infantil do que malicioso, com a determinação e mágoa daquele que sobrevive nas feições do rosto. Há nele uma qualidade decididamente magnética, mesmo que a sua fisicalidade possa denunciar um passado auto-destructivo. “Lembro-me de Harris me dizer que queria que Mike se assemelhasse a uma flor com toda a humidade sugada.”, diz Dillane na edição de Outono/Inverno da revista Man About Town. As roupas largas que cobrem uma estrutura corporal desnutrida, o cabelo muito fino, os olhos dilatados. Mike tenta falar-nos de si. Talvez não saiba exactamente o que dizer, então mostra-nos.
Urchin não pede a nossa empatia. Não precisa. É um filme conseguido através de um caminho que se abre à verdade e avalia como julgamos os outros. Faz-nos experienciar enquanto agentes o fenómeno social de quando alguém se transforma no Outro e porque acontece tal coisa. ‘Othering the other‘, um acto de assimilação imediato, e que exige um desaprender.
E Urchin é esse filme agudo na sua mudez, e feito para um actor, que encarnará este humano e a sua psique, dentro de uma travessia pontuada por actos de violência e um passado maioritariamente desconhecido (sabemos apenas que é adoptado). E é uma verdadeira tour de force para Frank Dillane que o infunde com o corpo de alguém que luta para não cair no mesmo ciclo de indignidade, vício e desespero, reservado para todos aqueles que não encaixam e são arredados fora. Urchin oferece-lhe uma abertura de ser e estar e está presente para esse re-encontro de Mike com o mundo do qual faz parte. A partir daí, resta-nos ficar à espera que ele consiga manter o status quo e o hedonismo aceitável que vem com ele.
Num sistema de economia de planos e sequências, não há um único momento no filme em que Dillane não esteja. Dickinson segue-o sem ser intrusivo, pausando por cima dele em enquadramentos que agrupam o mundo inteiro do que nos está a ser contado. As outras personagens ocupam o ecrã com Mike. De sequência para sequência, o olhar é um de aproximação suave e respeitadora com um zoom que a maior parte das vezes se desenvolve em três momentos até chegar perto de Mike e continuar em frente para um outro momento. Urchin não é sobre o poder do close-up, nem de forma literal nem figurativa. Não é um plano aproximado. É um situar por acumulação. Talvez seja por isso que não pede a nossa empatia. Não precisa. É um filme conseguido através de um caminho que se abre à verdade e avalia como julgamos os outros. Faz-nos experienciar enquanto agentes o fenómeno social de quando alguém se transforma no Outro e porque acontece tal coisa. Othering the other, um acto de assimilação imediato, e que exige um desaprender.
O que funciona tão bem no filme, e é a razão do seu assombro, é o encontro com as ruas, as suas pessoas, palavras, maneirismos, e estares. Ocupa espaço a desvelar o que é normalmente invisível a quase todos.
Se Urchin falha em algum momento é na necessidade que sente em ilustrar essa viagem. Em vez de permanecer com Mike na dimensão mais térrea que este habita, especialmente durante a sua reabilitação, Dickinson intercala o dia-a-dia da personagem com um gesto exterior à acção que usa para completar a linguagem do filme. Aos 17 minutos de filme, caímos num plano sequencia subjectivo que desce por um ralo de casa de banho, juntamente com as células de Mike levadas cano fora com a água que acabou de passar pelo seu corpo. Acabamos com Mike numa gruta. E a ela voltaremos mais vezes. Assim se dobra Urchin entre o real e o surreal, quase como se previsse que Mike não conseguirá reverter a sua natureza cíclica e parasitária, suspendida durante uns tempos até o levar para a escuridão do abismo mais tarde. Estes eventos pontuais são causa para enfraquecer a vitalidade do realismo que se construíra. Ao explorar o existencialismo deste ser e da sua marginalização e subsequente luta pela sobrevivência, a busca por significado passa por examinar o ambiente hostil de alguém que para sua protecção e auto-preservação, tal e qual um urchin, magoa quem mais precisa: primeiro os outros, e depois ele próprio. Mas isso não significa que aquele não seja o seu habitat. O que funciona tão bem no filme, e é a razão do seu assombro, é o encontro com as ruas, as suas pessoas, palavras, maneirismos, e estares. Enquanto na loja de conveniência é o próprio que exterioriza o que já sabemos:
Eu acordo todos os dias com esta sensação de merda.
É como se alguém estivesse lá a dizer: “Não podes entrar”
Do género: “Não, não, não! Não é para ti! Não é para ti!”

Até aos primeiros 17 minutos, Urchin não gritava urgência e tinha mais peso por isso mesmo. Existia. Sussurrava. Ocupava espaço a desvelar o que é normalmente invisível a quase todos. A partir do momento em que se torna ensaio, a sua eficácia dramática esmorece. O estudo de personagem mantém-se poderoso, sobre o contágio do qual Mike não consegue fugir. Mas a memória do filme desbota-se. O realizador sentiu que precisava de virgular o seu filme para lhe dar pulso. Entre paredes espinhosas já Mike estava. No final, Dickinson podia só tê-lo deixado onde o encontrámos inicialmente. No mesmo lugar.
★★★☆☆
