Segunda parte da entrevista com João Rui Guerra da Mata, cujo filme co-realizado com João Pedro Rodrigues, A Última Vez Que Vi Macau (2012), terá honras de abertura no DocLisboa, já na próxima quinta-feira, dia 18 de Novembro, às 21h30, no Grande Auditório da Culturgest. A conversa anda à volta dessa e doutras co-realizações, do seu primeiro filme a solo, O Que Arde Cura (2012), e da relação pessoal e profissional que mantém vai para vinte anos com Rodrigues. A primeira parte da entrevista debruçava-se sobre o cinema queer em Portugal, a importância dos festivais (queer ou não), o cinema português, e a pornografia.
João Lameira – A tua carreira é indissociável da do João Pedro Rodrigues. Tens medo que o teu cinema seja sempre visto – agora que realizaste O Que Arde Cura – como uma extensão do cinema dele?
João Rui Guerra da Mata – Basicamente, gosto de trabalhar com o João Pedro. Eu ganho pouquíssimo dinheiro, porque estou sempre a recusar projectos. Porque sou um chato do caraças e detesto virar frangos. Para mim, o cinema é uma forma de arte e sou incapaz de trabalhar numa coisa em que não acredite. Mais depressa trabalho de borla para um puto que não tem dinheiro e é o primeiro filme que faz do que trabalho para um realizador conceituado. Porque se eu já conheço a obra dele e não gosto, não quero trabalhar para ele, por muito que me pague. Eu resolvi fazer este filme [O Que Arde Cura], porque precisava de provar a mim próprio que conseguia escrever um argumento, conseguia concorrer a um concurso, conseguia ganhar esse concurso. Era uma coisa pessoal, foi quase uma coisa egoísta da minha parte. Precisava de provar aos meus alunos da Escola [Superior de Teatro e Cinema] e se calhar precisava de provar a esta malta toda que diz que ganham sempre os mesmos. Porque concorri em nome individual, com uma produtora, a Black Maria, cujo currículo também não era assim tão grande, e obviamente na altura nem sequer pensava que era o João Pedro que ia estar no filme. A partir do momento em que ganhei tive um grande problema: tinha de fazer o filme. Era uma coisa em que eu não tinha propriamente pensado. Nem sequer me passa pela cabeça fazer outro filme. Eu gosto mesmo, mesmo, mesmo de fazer aquilo que faço, que é ser art director ou production designer ou o que vocês quiserem chamar. Gosto muito de trabalhar nos argumentos com o João Pedro e gosto muito de ser o seu maior crítico e ser um filho da puta. Não tenho as mínimas ambições de ser realizador… Não estou a dizer que não vá fazer outro filme. Mas se o fizer é só porque aconteceu. Gosto imenso de co-realizar filmes com João Pedro, porque nos divertimos horrores. E porque somos de tal maneira diferentes que… Até deve haver pessoas que não devem gostar muito dos filmes do João Pedro quando eu entro, porque os filmes são um bocadinho diferentes do que quando eu não entro. Se calhar, há outras pessoas que gostam mais quando eu entro, exactamente porque são diferentes. E quase sempre têm uma temática asiática; a única coisa que verdadeiramente me interessa é a Ásia. E mesmo que ficasse associado [só a ele], meu Deus!, eu estava associado a um dos melhores realizadores do mundo. É tão simples quanto isto. E as palavras não são minhas, são de várias pessoas que já disseram que ele estava entre os cinco melhores realizadores do mundo. Eu começo a pensar: se calhar, daqui a uns anos, seria o mesmo de me associarem ao [Alfred] Hitchcock. Foda-se!, maravilhoso. Ainda para mais, entro na história indirectamente. Atrás de um grande homem, há uma grande mulher… bom, neste caso, talvez não seja mulher.
JL – Como é que funciona a vossa relação profissional. E como é que a vossa relação pessoal a afecta?
JRGM – A nossa relação profissional afecta a nossa relação pessoal, quando às vezes temos uma discussão de tal maneira grande sobre um argumento que estamos uma semana sem nos falarmos. Ora, obviamente, que, numa relação que neste momento tem para aí vinte anos, estar uma semana sem falar por causa de uma questão profissional é esquisito. Ou então ter conversas de circunstância, do género “queres arroz ou batatas?” é esquisito. Agora a sério, sem piadas, é mesmo muito difícil viver com a pessoa com quem se trabalha. É complicado exactamente porque a relação profissional e a pessoal às tantas misturam-se. E é muito cansativo, porque um gajo acorda e adormece com o problema. E o problema não é a companhia, é o que se está a desenvolver. Por outro lado, é extraordinário. Eu e o João Pedro, por sermos tão diferentes, funcionamos porque nos complementamos, tanto a nível pessoal como a nível profissional. É muito enriquecedor. Quase tudo o que eu sei sobre cinema, directa ou indirectamente, aprendi por causa do João Pedro. Eu não fiz escola de cinema, a minha formação são as artes gráficas. Tudo o que sei sobre cinema terá começado com o João: comecei a trabalhar em cinema por causa do João, comecei a ver cinema de outra maneira por causa do João, comecei a tornar-me um chato porque o cinema deixou de ser só uma coisa que me divertia e passou a ser uma coisa que me preocupava por causa do João.
JL – Qual é a importância da direcção artística?
JRGM – Faz de conta que abri o manual… Partindo do princípio que o cinema é uma arte visual e partindo do princípio que antes de um actor começar a falar tu já o estás a ver, a direcção artística é fundamental. Antes de haver som nos filmes já havia direcção artística. Se calhar uma das razões pelas quais há tantos filmes maus em Portugal é ninguém perceber que o lado visual é muito importante. E que a história é também contada através de imagens. Cinema sem imagens seria rádio, teatro radiofónico, uma merda assim qualquer. É possível tirares o som a um filme, não é possível tirares a imagem. E a direcção artística não é a roupa bonita ou a decoração. Não passa por aí, essa foi a minha grande batalha desde sempre. A decoração e o guarda-roupa é a história. Como nós somos. Ninguém diz “ah, eu tirei a primeira coisa que estava no armário”, porque as coisas não nascem dentro do armário, fomos nós que as pusemos lá, fomos nós que as escolhemos na loja. Tu podes tirar a primeira coisa de dentro do armário mas foste tu que a escolheste ou alguém escolheu por ti. É uma falsa questão essa do qualquer coisa serve. Alguns realizadores já me disseram, e eu tive de me vir embora rapidamente do filme: “ah, eu gostava que fosse assim uma coisa simples.” Simples não é uma definição para nada. Simples em que contexto? O que é que é simples? Um gajo começa a pensar em direcção artística e pensa em gajos como o Hitchcock, em gajos como o [Jacques] Tati, em gajos como o [Yasujirô] Ozu, em gajos como o [Francis Ford] Coppola. Para não irmos para o Tati, que aquilo é quase mais art direction do que outra coisa, vamos para o Hitchcock, por exemplo, que é um gajo que dava tanta tanta importância àquilo que por acaso começou a carreira dele no cinema a pintar os interlúdios dos filmes no cinema mudo, aqueles cartõezinhos. E passou para decoração e guarda-roupa. E o logótipo do Alfred Hitchcock presents, que era a silhueta dele, foi desenhado por ele. E os art directors, que eram muito bons, seguiam as indicações dele. E o Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) é um óptimo exemplo disso… é de tal maneira subliminar a direcção de arte, que sem querer estás a sentir coisas estranhas ou estás a sentir que há algo de estranho naquele filme sem que nada de estranho esteja a acontecer. E onde é que isso está? Na direcção de arte, na maneira como as personagens são caracterizadas através da roupa e dos décors. A direcção de arte é um complemento narrativo e é por isso que eu detesto o Wong Kar-wai: estou a ver um filme dele e, em vez de estar a olhar para o sofrimento do actor, estou a pensar onde é que o gajo arranjou aquela gravata, em vez de estar com pena da miúda, estou a pensar “epá, um vestido daqueles era muita giro arranjar para um filme.” Está a haver uma discussão e eu a pensar “cabrão, aquele gajo tem sempre os candeeiros mais giros”, porque há um excesso. Da mesma maneira que nos primeiros filmes do [Pedro] Almodóvar aquilo funcionava muito bem, era uma coisa de época e as pessoas eram assim, mas cada vez mais se foi transformando num estilo, coisa que, por exemplo, o Hitchcock nunca teve. Mudava de filme para filme, porque tinha consciência de que a direcção de arte era uma coisa narrativa. O Almodóvar criou um estilo, o “estilo Almodóvar” e basicamente a direcção de arte é sempre assim. Quando um gajo fala do Hitchcock esquece-se que ele estava constantemente a mudar. Eram as histórias que contavam, não era o estilo.
Ricardo Vieira Lisboa – Este filme, O Que Arde Cura, é todo passado dentro de um estúdio.
JRGM – Para já, queria trabalhar nalguma coisa que nunca tivesse trabalhado. E que fosse muito desafiante para mim. E que fosse qualquer coisa que entusiasmasse a equipa. E eu tinha a melhor equipa do mundo: o melhor gajo na fotografia, tinha o melhor gajo no som, tinha o melhor gajo na direcção de arte (que não era eu), tinha os melhores maquinistas, os melhores electricistas. Isso, sim, é um dream team. São gajos que já fizeram mais filmes do que eu alguma vez na vida iria fazer, mesmo que quisesse. Para eles, era mais um filme. Para mim, era o meu filme. Portanto, eu tinha de fazer uma coisa que para eles não fosse mais um filme também. Fosse quase um desafio para todos nós. E não se filma em estúdio em Portugal praticamente, tirando o [Manoel de] Oliveira. E depois precisava de filmar em estúdio, porque a partir do momento em que concebi o meu filme eu percebi que aquilo só podia ser feito em estúdio, era preciso mexer paredes e andar com aquilo à volta e não sei que mais. E como eu queria que aquilo se parecesse um espaço concentracionário, ou seja, como se o gajo não pudesse sair dali e umas vezes fosse asfixiado pelo exterior, que, no fundo, é o interior dele. Porque aquilo, se calhar, passa-se tudo na cabeça dele, não sei, nem me interessa. Eu precisava de filmar em estúdio, precisava que aquilo fosse um desafio, e, às tantas, se o filme peca por alguma coisa, e são críticas que me têm feito, é por ser sobretudo visual. E vivemos numa época em que não é suposto um filme ser visual. É suporto ter umas mensagens, umas coisas e tal. E estou-me a cagar para a mensagem dos filmes. Há coisas que são muito mais importantes. E, se calhar, há filmes que não têm mensagens e acabam por ter mais significado e fazer as pessoas pensarem mais do que propriamente filmes que têm mensagens. Por exemplo, o meu filme põe as pessoas a pensar em imensas coisas, nomeadamente, no facto de eu trabalhar com o João Pedro e o João Pedro trabalhar comigo. Que é uma coisa exterior ao filme, mas que levanta outro tipo de questões. E só por isso, se calhar, o filme já tem interesse. Põe as pessoas a pensar: “como é que isto funciona?”; “como é que os gajos resolvem as coisas de uma maneira tão…”
JL – O vosso cinema, o teu e o do João Pedro Rodrigues, parece que bebe mais do próprio cinema do que da realidade.
JRGM – Eu detesto cinema que faz referências…
RVL – O China China (2007) tem aquela referência ao The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939), os sapatinhos a baterem. O Odete (2005) tem o Breakfast at Tiffany’s (Boneca de Luxo, 1961)… a música e as personagens que vêem o filme.
JRGM – Talvez mais os sapatinhos do que propriamente o Breakfast at Tiffany’s. Os casais, às vezes, têm músicas, têm filmes… Se fores a ver o Odete está mais próximo dos filmes do [Douglas] Sirk…
JL – E há essa influência do Sirk muito clara.
JRGM – Mas a citação é uma coisa, a influência é outra. O que eu disse foi que não gostava de citações. Um gajo ser influenciado é natural. A única maneira de fazer cinema é a ver cinema. Uma pessoa que vê muitos filmes, que gosta de certos filmes, obviamente que tem tendência a querer aproximar-se de modelos. Uma pessoa que faz filmes com referências é como uma pessoa que fala com citações, não tem nada para dizer. Há pessoas que só falam “como dizia o não-sei-quantos, como dizia o não-sei-quê”, não têm nada para dizer, se não, falavam eles em vez de se apropriarem das citações das outras pessoas. Mas quando queres revelar que tens uma grande cultura acabas por mostrar que não tens nada para dizer e aparentemente os outros já disseram tudo. Eu acho que é bom as pessoas sofrerem influências e depois essas influências aparecerem nos filmes. Há críticos americanos que dizem que o João Pedro está sempre a fazer o mesmo filme, na medida em que a questão para o João Pedro é sempre a mesma, ele anda à procura de uma resposta para uma questão qualquer que ele tem, seja ela qual for. E está a procurar de várias formas.
JL – Nas co-realizações, consegues dizer o que vem de cada um?
JRGM – De mim, quase sempre, vem disparate. E depois o João Pedro controla-me o disparate. Estou a falar a sério. Eu suponho que a minha contribuição… tenho mais cultura pop do que o João. Sou muito influenciado por música, sou muito influenciado por livros policiais, por comics, BD em geral… Aquilo que os intelectuais chamavam trash. O João tem muito mais uma cultura clássica, seja a nível músical, seja a nível de literatura, seja a nível de pintura. E eu sempre estive na arte moderna e contemporânea e o João sempre esteve mais na arte antiga, por exemplo. Se calhar, é por isso que as coisas às vezes funcionam, porque conseguimo-nos encontrar no meio e onde há elementos em comum. Mas é um facto que, da maior parte das vezes, eu digo disparates… É bestial dizer disparates quando estás a trabalhar com uma pessoa como o João Pedro, porque às vezes esses disparates, depois de trabalhados, não são assim tão disparatados. E trazem mais qualquer coisa, conseguem fazer com que o João se liberte um pouco de certas coisas, que a liberdade criativa ainda seja maior. Mas se calhar estou a ser um bocado pretensioso ao dizer isto.
JL – Aquele lado noir que se nota mais nas co-realizações vem de ti ou não?
JRGM – Pois, é uma boa pergunta, não sei. Quando estás a preparar uma obra, tu ainda percebes onde é que estás a contribuir; depois da obra estar feita, eu não sei exactamente o que é que é meu, o que é que é dele. Às tantas, perdemos um bocado a noção. Por exemplo, eu sei que o China China, que foi escrito por mim e depois trabalhado com o João Pedro… eu tenho a certeza que o João Pedro jamais poria uma arma na mão de uma chinesa a apontar para o marido e para o filho…
JL – Ou um filme do John Woo…
JRGM – Ou um filme do John Woo a passar na televisão. E o João Pedro adora o John Woo. Nunca se lembraria de fazer a combinação entre uma tipa que está na iminência de matar o marido e o filho e o marido e o filho estarem a ver um filme ultra-sangrento do John Woo. Aliás, o China, China está proibido na China, está no Index dos filmes que não podem passar em território chinês, porque dá uma má imagem da diáspora chinesa. Esta está no meu currículo… quer dizer, não está, mas devia estar. Isto foi-me dito pelo Embaixador português em Pequim.
RVL – Nós notamos que os filmes co-realizados parecem mais violentos do que os que são só do João Pedro.
JL – É uma violência mais física…
JRGM – Mais física, não. Os filmes do João tem uma fisicalidade diferente.
RVL – São mais sangrentos…
JRGM – E vocês ainda não viram A Última Vez Que Vi Macau. Então aí vão ver como nós nos passámos desta vez. Aliás, foi o que eu disse ao João Pedro: “epá, quem não gostar do filme vai perceber que a culpa é minha. Vão perceber que tu enlouqueceste porque foste atrás das minhas ideias.” E metade das ideias são dele, ainda por cima. Eu não tenho qualquer fetiche com armas, mas realmente é verdade, há assim uma coisa um bocadinho violenta, há. Por acaso, nunca pensei nisso, mas é giro…
JL – Como disseste romances policiais…
JRGM – Pois, A Última Vez Que Vi Macau é um autêntico filme de série B… ia dizer Z… É um film noir, meio ficção científica. É basicamente um filme lúdico. Lúdico mas na verdadeira acepção da palavra, é um filme de tal maneira disparatado, que acho que vamos ser crucificados quando for exibido cá. Então em Macau, até tenho medo da reacção dos portugueses em Macau. Se calhar, esse lado mais violento é também um lado mais leve. Se calhar, os filmes do João Pedro são muito mais pesados, muito mais densos. Nem todos os filmes têm de ser grandes statements e às vezes uma coisa leve, às vezes uma coisa artificiosa pode trazer mais qualquer coisa. Porque às vezes até pode pôr uma pessoa a pensar… Sei lá, os críticos franceses ficam doidos a tentar perceber o que é que acontece ao João Pedro quando ele trabalha comigo. Porque estão lá as marcas do João Pedro, mas ao mesmo tempo parece que ele teve uma alucinação qualquer. Uma das críticas que eu li recentemente, já não sei de quem, ao A Última Vez Que Vi Macau, dizia que era um filme menor na gloriosa cinematografia… mais parecia uma coisa escrita por um estalinista. E eu disse: “estás a ver, a culpa é minha.”
JL – Mesmo o Alvorada Vermelha (2011) é extremamente violento.
JRGM – É. E tem uma direcção de arte extraordinária, e não foi preciso fazer nada. Incrível. Como alguém me dizia: “Foda-se, tu até uma tesoura com o cabo vermelho foste lá pôr.” E eu disse: “não, não fui”. Filmei-a, o que é diferente. Reparei que ela era vermelha e filmei-a. E aquele filme surgiu porque o Mercado Vermelho era um dos sítios onde ia sozinho quando era puto, porque aquilo fascinava-me e na altura ainda se comia cão em Macau e todos os bichos e não sei quê. Era terrível, absolutamente terrível, era mesmo um filme de terror. E era, para mim, absolutamente fascinante. Era um cheiro absolutamente nauseabundo, que agora já não é tão nauseabundo como era. Cheirava a coisas mortas-vivas… Quer dizer, esfoladas vivas, que ainda estão vivas mas já não estão vivas… Aquilo é muito influenciado pelo Le sang des bêtes (1949) do [Georges] Franju. Muito. Mas o Le sang de bêtes é um filme político, foi feito a seguir à Ocupação Alemã de França, é filmado num matadouro e é terrivelmente violento, mas é um filme poético. Começa de uma maneira poética e é um filme lindíssimo, dentro de toda a crueldade. Nós não queríamos fazer nada um filme político, mas aparentemente fizemos… As pessoas fazem leituras do filme. Sei lá, nós nem falamos, ainda para mais temos umas sereias esquisitas que aparecem, uns sapatos e umas coisas que andam para lá. Quando nós chegamos ao Mercado Vermelho para filmar o A Última Vez Que Vi Macau, começamos a reparar que tudo era vermelho e não eram só os tijolos. As luvas eram vermelhas, os aventais eram vermelhos, o sangue era obviamente vermelho. E o filme nasceu por causa disso, porque nós percebemos que aquilo tinha de ser um objecto autónomo. Porque se fosse posto dentro de um filme, era só exótico. Mas, sim, realmente é muito violento e, sim, a culpa de existir o Alvorada Vermelha é minha. O João Pedro achava que nós não tínhamos material para fazê-lo. E também foi minha a opção de não mostrar as tartarugas a serem esfoladas vivas e os outros animais, porque aí seria mero exibicionismo. Até eu acho que tem de haver um limite para as coisas. Da mesma maneira que foi opção do João pôr aquela enguia a espernear durante não-sei-quantos minutos. E eu achava que era tempo a mais. E mais uma vez o João é que tinha razão, era fundamental o filme terminar com aquele bicho ali em sofrimento. Porque no fundo era o que algumas pessoas estavam a sentir ao ver o filme. Afinal de contas, o João também tem assim às vezes umas ideias um bocado sanguinárias.
JL – Tu puxas esse lado dele?
JRGM – Não sei, eu acho que no Odete, matares o amante no princípio do filme e o filme começar tão bem, tão queridinho e fofinho, e matares logo, é um bocado violento.
RVL – Não é tão cru como nos filmes que fazem juntos.
JRGM – OK, mas eu jamais conseguiria filmar sexo como o João Pedro filma. Nem sequer escrever. Sabes porquê? Porque tinha medo que fosse pornográfico. E eu vejo os filmes do João, incluindo O Fantasma (2000), e não vejo pornografia ali. Mais, o que eu vejo ali é qualquer coisa de terrível. O sexo é uma coisa terrível, não tem nada de pornográfico. O que é encantador — e “encantador” é uma expressão linda — é que quando se tira aquilo do contexto aquilo funciona como uma coisa para bater punhetas. Mas dentro do filme é completamente diferente. Portanto, se calhar, eu sou mais artificiosamente violento. Se calhar, a minha violência é mais exterior. A do João é muito mais interior. É uma violência visceral. E a minha é mais visual.
JL – A Última Vez Que Vi Macau era para ser um documentário. Quando é que decidiram ou por que é que decidiram passar para a ficção?
JRGM – Eu não ia a Macau há trinta anos e desde que conheço o João que pensamos em ir a Macau. Há vinte anos que andamos a pensar… Já estivemos ali ao lado e nunca conseguimos ir. E o João não tinha nenhum projecto de filmes, porque não tem histórias na gaveta e para ele escrever um argumento é uma coisa muito difícil… Depois fazer o filme é tão fácil, é impressionante. Como o João não tinha uma história, eu disse: “Epá, vamos apresentar uma proposta ao ICA para fazermos um documentário sobre Macau. E a premissa é baseada nas minhas memórias, que são memórias vividas, mas que são ficções, porque todas as memórias são ficções, nós alteramos as nossas memórias consoante nos apetece, e as tuas memórias de Macau que não são nenhumas, mas que, no entanto, existem através do cinema, da literatura, da pintura. E vamos fazer um documentário que é o confronto dos dois em Macau.” A coisa correu bem e os gajos gostaram da ideia, não sei porquê. Ele lembro-me que escrevi coisas absolutamente extraordinárias como “arqueologia da memória”, que é uma coisa que não faz sentido nenhum, nem sociologicamente nem antropologicamente, não existe. São aquelas frases que os júris gostam. Pá, chegámos a Macau… Nós fomos a Macau três vezes ao longo de três anos, depois vínhamos a Portugal, víamos os rushes, catalogávamos tudo. O João Pedro é absolutamente metódico. E nós temos muitas, muitas, muitas horas. Temos para aí 170 horas de material. Era mesmo preciso aquilo estar muito bem arquivado para nós depois conseguirmos fazer alguma coisa com aquilo. E mesmo assim demorámos oito meses a montar a merda deste filme, que tem 78 minutos. Chegámos a Macau a primeira vez, começamos a olhar à volta, começamos a dizer: “Foda-se, esta merda é uma granda chatice.” Será que o mundo precisa de mais um documentário sobre Macau? Já há tantos, são todos iguais. E focam todos os casinos e o exotismo e os templos… Percebemos que não conseguíamos fazer um documentário. E acabámos por fazer um documentário, vocês ainda não viram, mas aquilo é um documentário, só que é uma ficção. Um dos gajos que é uma grande obsessão para mim é o Chris Marker, porque eu detesto docu… ou melhor, eu adoro documentários. Eu não suporto é as pessoas que dizem que os documentários são a realidade, porque os documentários não documentam a realidade, documentam aquilo que a pessoa que está atrás da câmara decidiu filmar. Logo, não é a realidade, é um ponto de vista sobre a realidade. O Chris Marker andava-me a obcecar, continua-me a obcecar. Eu ciclicamente vou ver os filmes dele, porque são mais documentário do que documentários que são objectivamente sobre um assunto. E o Chris Marker trabalha a memória de uma maneira extraordinária. E obviamente que A Última Vez Que Vi Macau é muito influenciado pelo cinema dele. Mas também é muito influenciada… Houve alguém que escreveu que o filme era uma história contada por um amigo a outro. Se calhar, A Última Vez Que Vi Macau não é sobre Macau, é sobre um território inventado por nós que por acaso se chama Macau. E é film noir, porque o [Josef von] Sternberg está lá, com o Macao (Macau, 1952), e é ficção-científica… e eu não vos posso contar porquê. E tem a ver com o 007, porque o The Man with the Golden Gun (007 – O Homem da Pistola Dourada, 1974) estava a ser filmado em Macau quando eu vivia lá, e eu assisti à rodagem do filme. E tem a ver com o facto de quando era miúdo ver filmes revolucionários chineses sem legendas e era eu que inventava a história. E tem a ver com eu não saber falar francês e o meu pai que era Oficial da Marinha me trazer imensos livros do Tintin e eu inventar… Aliás, foi uma desilusão quando eu percebi que as histórias eram aquelas porque as minhas eram objectivamente muito mais divertidas. Se calhar, tem a ver com o Tintin e o Lótus Azul, que é passado em Xangai. E, se calhar, tem imenso a ver com o cinema clássico que o João Pedro via e me pôs a ver. Tem mais a ver com a memória do que se fosse um documentário. Têm de ver para perceber, mas nada acontece no ecrã, toda a acção se passa fora do ecrã, como se nós estivéssemos sempre a apontar para o sítio errado. Porque a ficção é inventada a partir das imagens. E as imagens são reais, são documentais, mas não estão a documentar nada do que nós estamos a ouvir no som. Acho muito mais interessante fazer-se um não-documentário do que estar-se a fazer mais um documentário sobre casinos e não sei quê. Nós queríamos mesmo fazer uma coisa lúdica, queríamo-nos divertir a nós na esperança que as pessoas também… Pronto, depois as pessoas levam tudo muito a sério, é uma chatice, não conseguem ver o lado lúdico, tudo tem imensas mensagens e não sei quê. As coisas, se calhar, têm mensagens, mas quando as coisas têm mensagens objectivas são muito chatinhas. É mais engraçado uma pessoa estar a ver uma coisa e começar a pensar “olha que isto, se calhar, significa aquilo”… E neste filme há statements. Estou para ver como é que vai ser a reacção em Macau. Há coisas que são ditas ali que são um bocadinho… Eu não tenho certeza se o filme poderá alguma vez passar na China. Para mais, o meu grande sonho quando fiz o China China era que o filme passasse na China. O filme foi projectado ao ar livre no Martim Moniz. A comunidade chinesa, que nunca aparece em lado nenhum, encheu a praça para ver o filme. Eu não sei como é que eles souberam. E os gajos estavam deslumbrados a ver, e, como aquilo é filmado no Martim Moniz, apontavam para os sítios onde as coisas estavam a acontecer. Até que a mãe aponta a arma. E nós estávamos atrás, eles sabiam, e quando a miúda aponta a arma ao marido e ao filho, de repente o Martim Moniz virou-se todo para nós, com uma cara! Eu fiz assim para o João Pedro: “Oops!” E a partir daí os gajos, de não-sei-quantos em não-sei-quantos minutos, olhavam para trás com um ódio que eu disse: “Foda-se, nunca mais posso ir aos supermercados chineses aonde eu vou todas as semanas, que os gajos vão-me…”