O novo filme de Paul Thomas Anderson, falando rápido e à boa maneira popular, “tem tudo no sítio”, qual perfeito manual introdutório ao seu cinema. O pace convulso, ritmado por uma quase ininterrupta e sempre inspirada banda sonora de Jonny Greenwood; as personagens bigger than life, nas suas ambições, nos seus fantasmas e nas suas neuras; uma pequena grande história americana que ganha balanço a partir do passado para se projectar vertiginosamente na “actualidade” – ou não estariam aqui escarrapachados os primórdios dessa “nova” forma de fanatismo religioso chamada Cientologia – e actores fenomenais a arrancarem do corpo personagens de uma intensidade, de uma fisicalidade mesmo, que fazem uma inusitada tangente não só ao óbvio Orson Mr. Arkadin Welles mas também (por que não?) a um Cassavetes (tirado do corpo, mas também da boca e do riso).
Tudo isto é “a força” de The Master (2012), a fraqueza é a incapacidade que me pareceu evidente, sobretudo na recta final do filme, de transformar todas estas “visões do cinema de PT Anderson” numa visão una e equilibrada – numa palavra, fazer desse “tudo…” um todo. Malogrado sai o desenho clássico do arco dramático, perfeitamente traçado em There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007), como se a certa altura o filme não conseguisse mais que mimar aquele exercício esgotante da personagem interpretada pelo transfigurado Joaquin Phoenix: andando de um lado para o outro, apalpando aqui e ali, à procura de uma coisa que não se sabe bem o que é. Pesando os “prós e os contras”, diria que este será um dos filmes menos conseguidos de PT Anderson, ainda que nele haja demasiados pontos fortes (o principal sendo a fisicalidade quase grotesca dos corpos ou a forma como estes imergem num “venenoso” delírio colectivo) para o descartarmos como “mais um filme de Hollywood”. A economia não está para esbanjamentos, por isso, das cinco palas que tenho aqui, dava-lhe três.
Lian lian feng chen (Poeira no Vento, 1987) é uma história de amor sobre a distância entre o tempo ou a temporalidade dos afectos e aquilo que o “destino” nos reserva. O amor entre Wan e Huen parecia escrito para a eternidade nos seus corações, não fossem as circunstâncias da vida acabarem por desfazer essa ligação. O tempo aparece, aliás, como uma personagem implacável: é a sua ocupação que se discute entre o casal na cidade e, no fundo, é pela sua destruição que o rapaz “combate” enquanto está longe da sua amada, a cumprir o serviço militar obrigatório. Huen, numa carta (o medium por excelência no cinema de Hou), chega a dizer que faltam 367 dias, acrescentando, num lamento profundo, que isso são muitos dias para contar. Antes, na cidade, quando podiam comunicar face-a-face, as suas vidas preenchiam-se a sobreocupar o tempo; depois, à distância, em regime de separação física, o tempo passou a servir apenas para desocupar e destruir. De uma maneira ou de outra, o amor que existe – e de facto existe – entre os dois permanecerá unicamente dentro deles mas não entre eles, ligação que o tempo – que nunca dá tempo, como escrevia Susan Sontag – se encarregará de levar com o vento.
Hou Hsiao-Hsien parece ir beber a Yasujiro Ozu ou até Satyajit Ray para “temporalizar” (para não dizer, piscando o olho ao cineasta nipónico, “almofadar”), ao ritmo daquelas nuvens que vão lançado luz e sombra sobre a aldeia dos protagonistas, a história serena, mas nem por isso menos dramática, desse amor desencontrado. Planos sempre feitos à altura das suas “personagens não-extraordinarias” que, a espaços, quase silenciosamente, produzem imagens de uma beleza tão arrebatadora quanto purificadora do olhar e da alma. A cada um e a todos eles confio quatro das minhas cinco palas de Walsh.
O tema da guerra na Bósnia é sempre delicado e complexo. O tema dos efeitos dessa guerra nas novas gerações será, talvez, ainda mais delicado e ainda mais complexo. Entre outras coisas – demasiadas coisas, a meu ver -, Djeca (Children of Sarajevo, 2012) procura produzir a síntese de dois momentos históricos: flashes, com imagens de arquivo, de Sarajevo em ruínas, envolta no ruído das sirenes e dos ataques aéreos, entrecortam o filme “propriamente dito”, desenrolado no presente e centra do no dia-a-dia de dois irmãos órfãos. Disse “propriamente dito” porque, precisamente, a convocação das imagens documentais surge sempre como um enxerto de realidade que em vez de complementar ou se integrar na narrativa principal, aparece – de modo pouco hábil – como “separador” ou suposta “legendagem histórica”. Este é o primeiro ponto negativo deste filme bósnio, mas não é o único: a tentativa de importação tout court do dispositivo formal dardenniano, de um Le fils (O Filho, 2002), serve bem o objectivo de “acumular tensão”, mas acaba por esconder sempre (ou lançar literalmente “para trás das costas”) os rostos das suas personagens e, logo, o que neles se projecta, de tão frágil e humano.
Digo isto porque não há razões para tratar Marija Pikic como a mulher banal que não é (= Pikic não é uma Rosetta…), ela que se converteu ao Islão para (desde logo) se esconder, com um lenço a tapar o cabelo, das agressões do mundo envolvente (o da guerra e o dos homens). Interessava-me mais conhecer o passado desta personagem tal como desvendar a superfície do seu rosto – muito belo, por sinal – do que vê-la “de costas” a servir de testemunha aos maus caminhos do irmão delinquente. A realizadora Aida Bejic, talvez (repito, talvez) precisamente por ser mulher, não soube fazer de Pikic o símbolo feminino (a musa sacrificada, por assim dizer) de um país destroçado, de feridas ainda bem abertas que estão visíveis e são audíveis em cada esquina de Sarajevo – e o design de som, mil vezes mais interessante que a solução semi-documental que referi, funciona muito bem como caixa de ressonância do Trauma. Pelo som e pelo potencial estético do rosto de Pikic, dou duas palas.
A certa altura, a personagem interpretada soberbamente por Jean-Louis Trintignant – que, já um octogenário, está praticamente irreconhecível – diz qualquer coisa como “há coisas que não devem ser mostradas”. A questão da intimidade ou o aproveitamento profanador/objectificador de que é tantas vezes alvo pela câmara de Michael Haneke surge aqui, pela boca de um homem idoso a braços com “o que resta” da parceira de uma vida, como motivo de (auto-)reflexão. De facto, na minha opinião, Haneke nem sempre soube disfarçar o seu desejo voyeurista de mostrar o que deve permanecer “caché”. Não que seja um pornógrafo requintado, ou melhor, não o será seguramente sempre, mas, de qualquer modo, todo o seu cinema (a)parece contaminado por uma vontade de fazer jogo – “funny games” – com o lado mais profundo e íntimo do espectador. Haneke é frio, calculista e, muitas vezes, imoral. (Apesar disso, está mais na moda que Trier…) No entanto, fez-lhe bem o confronto com a morte na companhia de um casal de idosos que – e aqui reside a luz que derrete o gelo – se amam.
Ela, interpretada por Emmanuelle Riva – que, ao contrário de Trintignant, preserva a mesma luminosidade de outros tempos – deixa escapar, ao mesmo tempo que folheia um velho álbum de fotografias, uma frase nada insignificante: “como é bela a vida”. Mas e a morte? A morte pode ser bela? Penso que esta é a grande interrogação de Haneke e esta interrogação fez-lhe bem, porque o efeito-choque não precisou de ser procurado. Pelo contrário, o exercício aqui foi – tinha de ser – inverso: pode a morte ser uma forma de amor? Confesso que me faz confusão o twist perturbador antes da “entrada” no além (que é, na realidade, uma “saída de casa”) e confesso também que considero, feitas as contas, e ponderada a sensação com que fiquei do filme no seu todo, que seria de mais colocar aqui e agora o nome de Bergman [sobretudo, o seu Saraband (2003)] ao lado do de Haneke. A velhice e a morte são temas de uma dignidade acima de qualquer outra coisa quando tratados pela câmara do sueco, ao passo que não é pacífico que o mesmo aconteça em Haneke – o seu lado “perversozinho” continua lá, mesmo que agora (de novo, estrategicamente?) muito mais “controlado”. Três palas para a pal(m)a de ouro Amour (2012).
Gosto da tranquilidade com que tudo é captado aqui: a protagonista, uma jovem investigadora/escritora que dá aulas de japonês em Taiwan, volta a casa, no Japão, para comunicar ao pai e à madrasta que está grávida e pronta para assumir a criança na ausência do pai. Lá reencontra-se com amigos de longa data, como o livreiro Hajime, jovem com um estranho fascínio, diria pós-lumièriano, por comboios. A fluidez narrativa, a questão do matrimónio ou não, da responsabilidade parental ante o futuro da única filha, o Japão como cenário, tudo isto seria suficiente para falarmos aqui (de novo) em Yasujiro Ozu a propósito de um filme de Hou Hsiao-Hsien. Contudo, o fascínio fetichista daquela personagem por comboios parece elevar Ozu ao quadrado. Na realidade, Café Lumière era para ser parte de uma trilogia, realizada a várias mãos, dedicada ao mestre nipónico. Com o falhanço deste projecto, Hou decidiu autonomizar este filme, mas a homenagem está lá confundida na sua matéria com a própria “origem” do cinema: é que o nome desta paragem não é Café Ozu mas Café Lumière.
Faz todo o sentido: Ozu amava a imagem dos comboios e o traço que estes desenhavam na paisagem. Hou não se limita a “imitar” essa paixão, ele vai mais além e, suavemente, a actualiza, até porque o algo excêntrico Hajime não filma “chegadas de comboios”, na realidade, só lhe interessa captar o som das estações, do andamento ou da passagem das locomotivas. Uma espécie de irmãos Lumière em reverso já que estes não puderam dar uma orelha ao seu primordial cine-olho. Este pormenor – mas o filme é feito apenas de suaves e doces pormenores! – fez-me voltar a uma das notas mais inspiradas de Robert Bresson e que não me parece ser suficientemente citada: “O olho (em geral) superficial, o ouvido profundo e inventivo. O apitar de uma locomotiva dá-nos a visão de toda uma gare”. O olho relaxou e, portanto, Kôhî jikô (Café Lumière, 2003) merece umas boas três palas de Walsh, com a promessa de uma quarta com novo visionamento.