O western se constitui a partir do Nada de suas imensidões.
J.-L Rieupeyrout, «A grande rota do western ou o Far-west revisitado», Présence Du Cinéma
Se a saúde física era algo evidente, nos tempos heróicos, não ocorre mais o mesmo: o cowboy pode estar tuberculoso. Ele pode mesmo ser cego. Sua função o leva a sentir-se mal.
P.L. Thirard, As metamorfoses do velho cowboy
Os filmes sádicos mais bem-acabados são finalmente aqueles onde a parte de criação do Inconsciente predomina (…).
Jean Curtelin
O western, como todos os itinerários clássicos, tende à reconciliação: a volta para o lar, a retomada dos valores primevos, as núpcias entre o indivíduo e a Comunidade. A diferença notável é que no western esta reconciliação se dá às custas de um tormentoso, áspero, paroxístico percurso: o cenário de fundo é desolador ( as pradarias, os ventos revoluteantes, os Apaches, a presa a abater como troféu de caça); o herói do western necessita provar-se de force nesta via-crucis da desterritorialização e do desenraizamento impostos pelo deserto para ter o direito a uma Primeira vez, uma dialética agonística se instaura aí, se nutre de seu sangue e de sua têmpera: caça ou caçador, alternada ou simultaneamente, como nos arquetípico-psicológicos de Anthony Mann (Adão e Caim em Winchester ’73). O reencontro consigo mesmo e com os seus , a fundação da Cidade são impensáveis sem os revezes da travessia do deserto: são seus efeitos, como a Unio mística com Deus o é para o anacoreta que sacrificou os usufrutos da carne ao ascetismo do mel e dos gafanhotos.
Mas The Shooting (Disparo para Matar, 1966), dirigido por Monte Hellman em 1966, destes aventurescos percursos entre Mesmo e Outro, canyons e Cidade, selvageria e Civilização parece abolir os termos desta equação dialética e preferir a tabula rasa de uma errância sem Princípio nem fim, sem prêmios nem consolação, irreconciliável; as motivações dos personagens são obscuras, sua psicologia opaca, seus gestos esparsos, a linha reta e teleológica ( embora íngreme) do caminho iniciático ou justiceiro é substituída pelo ziguezague adunco de uma impossível quête: um Absoluto se designa no horizonte, mas não conhecemos sua natureza nem sobre que horizonte se descortinam os seus auspícios. Hellman privilegia o Segredo à previdência, o Acaso à providência, a transversal às paralelas. O seu filme é o deserto do deserto, a autópsia do western. Assim como a história de Jó desvela para nós ( apesar de e contra a unção final de Jó) as implicações niilistas do monoteísmo- afinal, se de Deus advém tudo, por que não a Morte, o pecado e o infortúnio?_, The Shooting retém, em um concentrado perverso, apenas as premissas niilistas contidas nesta travessia sem Ethos nem Nomos do deserto, na qual o western clássico privilegiou sobretudo os fins reconciliáveis. Ao merry-go-round épico dos westerns, a balada mortuária de uma peregrinação vaticinada ao fracasso do rodopio em círculos, da incomunicabilidade, da estratégia deficitária e da pulsão de morte- a insolência cruel da Mulher, a psicopatia do personagem de Jack Nicholson.
The Shooting é uma autópsia de todos estes elementos que ainda ancoram ou estruturam o western como trama edificante, aliciante ou fundante
Se o jovem e apaixonado Corey é o único personagem positivo de The Shooting, é porque ele ousa imprimir uma significação narrativa ou uma mais-valia afetiva àquele deserto (afetivo, existencial) do deserto: a oferta do relógio para o desconhecido com a perna quebrada, o presente à Mulher que zomba dele e o abandona no meio do caminho, e finalmente o gesto heróico final ( filmado num diapasão épico-lírico que contrata violentamente com a morosidade tautológica, vertiginosamente concêntrica, “sem sair do lugar” do resto do filme), em que se lança para vingar-se do personagem de Nicholson como um cavaleiro de balada medieval. Se Corey é sacrificado (abandonado em meio ao deserto, e finalmente assassinado), é justamente por sua positividade plena, pelo fato de buscar e esforçar-se por dar sentido à empresa niilista: o amor à Mulher, a caridade para com o desconhecido, a filiação simbólica (típica dos westerns mais clássicos) com Willet ( Warren Oates). Corey, a princípio, é tanto o cordeiro sacrificado para purgar nossos pecados quanto o bode expiatório que os judeus expulsavam da cidade para distanciá-los dos pecados de que não podiam livrar-se, e entregá-lo ao anjo Azazel; a tradição cristã identificou o sacrifício de Cristo a estes dois arquétipos, transformando-o num ente místico-dialético no qual o Yom Kipur e o Pessach judaicos se sincretizavam. Mas o que acontece aqui é que a morte de Corey não é exatamente sacrificial, pois não expia nem salva ninguém, com exceção de Willet, personagem positivo mas que não tinha a autonomia “salvífica” de Corey, já que também é um homem prático, um caçador de recompensas, um vaqueiro. Corey, a rigor, é morto por nada e em nome de nada; não há transcendência na errância “sem fim” de The Shooting porque o que importa aqui é a pura imanência da errância, as depressões e os declives do percurso, as anfractuosidades do caminho, a desolação dos canyons na profundidade de campo onde os corpos são erodidos, as demonstrações significativas de Poder ( a morte do cavalo branco e do pássaro). Se espaço ficou para a significação, não foi certamente para o sentido salvífico da morte de Corey, assassinado simplesmente como os animais ao longo do filme, sem “amor ágape” algum para resgatá-lo- e sim para o stand de tiro dos animais; a significação aqui é uma plataforma de meios e fins que serve à Morte e nutre-se dela como de uma seiva larvarmente fatal.
Joel McElhaney, em seu livro sobre A morte do cinema clássico, fala-nos do fascínio experimentado por Hitchcock diante dos espaços desconectados e da figuração in extremis ( no limite do amorfo, do rarefeito, do atomizado, em suma do infigurável), presente na sequência na neblina de um filme como Il deserto rosso (Deserto Vermelho, 1964). De alguma maneira, The Shooting reflete em outra dimensão e diapasão o fascínio de diretores como Mann e Boetticher por estas experiências limítrofes do gênero, em que o western mostra-se, pela dispersão e irregularidade exasperantes de seu décor natural, um cadre ideal para transgressões dramáticas mas também figurativas. Mas Mann retém a psicologia em seus filmes, embora a intensifique em um tal paroxismo de Gesta que a aproxime das vertigens do imaginário mitológico: a freqüência de plongées em The Furies (Almas em Fúria, 1950) eleva aquele confronto de família a um combate de titãs contra deidades sulistas. E Boetticher, se intensifica o realismo até as raias da crueldade, mantém sempre uma certa sobranceria sóbria que reconduz o filme a uma faceta de ordem clássica que se constitui na alternativa ao impetus épico: a diafaneidade elegíaca (Comanche Station é um filme que em seu pace e circunspecção me lembra os primeiros Bressons, ainda tocados pela Graça mas sobretudo controlados por um método cartesiano temperado pela candura fantasista de um Giraudoux).
Mas The Shooting é, como disse acima, uma autópsia de todos estes elementos que ainda ancoram ou estruturam o western como trama edificante, aliciante ou fundante – não só de uma comunidade, mas também de um Ethos e de uma sensibilidade. O seu niilismo me parece de ordem metafísica, na medida em que parece transcender (sua finalmente única transcendência) motivações ou causas de ordem moral ou afetiva e se situar em uma atmosfera de rarefação máxima, frígida ou álgida, próxima à forma com que as paixões paroxísticas de Racine são-nos restituídas em versos impossivelmente modulados pelo padrão do honnête homme. Deleuze, em seu Diferença e Repetição, interpreta a pulsão mortífera dos personagens sadianos como um duplo processo: primeiro, o homem é desinvestido de suas pulsões eróticas; em um segundo movimento, este “espaço vazio” é contra-investido por forças de ordem intelectual ou espiritual. A Mulher e Spear talvez sejam sádicos desta espécie: para além do escrutínio moral do valor ou da impregnação do afeto, são joguetes estruturais de forças cuja função é unicamente cumprir sua necessária função; destruir a todos e a si mesma, como bem define o personagem de Oats. Chegamos a um espaço limítrofe, tormentoso à força de aéreo, lancinante à força de alienado, no qual das relações de força ou das afecções restou a mecânica de sua representação: se Corey e Willie escapam ao automatismo gestual e facial dos outros dois personagens é como se fossem superfícies nas quais devessem ser sismografadas “tudo o que restou”- como estes corpos piramidais sadianos que servem ainda e apenas para as demonstrações kantianas de Dolmancé e Duque de Blanchis. É neles que a engrenagem se engrena, que a mecânica se experimenta, que o deserto cicatriza: são as testemunhas-presas do jogo infinito de bifurcações mortais que é sobreviver num meio inóspito (América, 1966). Em muitas sequências, são apenas aqueles tênues peões que se movem com esforço na infinitude animosa dos despenhadeiros.
A Mulher e Billy Spear são os verdadeiros produtos (senhores) daquele meio fatal que finalmente, no crepúsculo de 1966, resolveu mostrar-se como uma máquina bem torneada de aniquilação de entes: homens, animais, mas igualmente afetos e intenções. Se Hellman mantém ativos alguns elementos convencionais, como os dois personagens positivos e um filigrana de plot, é para que sintamos com uma perversidade ainda maior ( e a perversão é uma questão sempre de inflexão, de pequena diferença que se instala insidiosa e mortalmente sobre a convenção) a inanidade de tudo e de todos, o extravio de qualquer referência, o exílio de qualquer humanidade. O niilismo de Shooting é ainda mais intensivamente ativo que o de Zabriskie Point (Deserto de Almas, 1970), no qual ainda é dado à personagem sonhar uma possível reação, na implosão entrópica final dos bens de consumo: aqui, os personagens são absorvidos por uma imanência pantanosa, pois permanecemos ainda num território, embora ínfimo, de convenção – então, não são possíveis delírios ou evasões heróicos, como aos jovens hippies do filme de Antonioni: afinal, temos aqui apenas três cavaleiros e um quarto que fica pelo caminho. A convenção remanescente concede ao filme de Hellman uma funcionalidade prático-inerte que é possivelmente o mais terrível dos pântanos nos quais a reificação já afundou o homem (e do que mais trataria o filme?): o dever de cumprir um dever e de fazer o que se deve, embora já não se saiba o que fazer nem bem como fazer. Dois outros desertos no cinema contemporâneo apontaram becos sem saída semelhantes: Il grande silenzio (O Grande Silêncio, 1968) de Sergio Corbucci e Se sei vivo spara (Django Kill… If You Life, Shoot!, 1967) de Giulio Questi, só que com um tônus espetacular inexistente aqui. Mas o deserto da reificação designado por Hellman pertence não apenas ao seu western anti-climático, mas a todos os nossos desertos; daí o filme ser também uma grande parábola sobre nossa danação fatalmente moderna.
No faux-raccord em câmera lenta do plano final (justificado tênuemente pelo plot, já que o homem procurado era possivelmente o irmão gêmeo de Willie, Conie), vejo o mesmo curto-circuito niilista com que se encerra outra obra-prima, Two-Lane Blacktop (A Estrada Não Tem Fim, 1971), com o rolo de filme que irreversivelmente se auto-destrói: Fim de jogo, finis hominis.