“A morte nos afeta mais profundamente sob o reinado majestoso do verão”
Charles Baudelaire, Os paraísos artificiais
“A decadência, resultando ao mesmo tempo da situação de uma classe na sociedade e da evolução individual de um personagem pertencente a esta classe (…), é designada como o momento a partir do qual os fortes tornam-se fracos e são agora incapazes de vencer as influências que em outros tempos podiam rejeitar ou digerir sem prejuízo.”
Jacques Lourcelles, sobre The Gypsy and the Gentleman (A Cigana Vermelha, 1958)
Quando dirigiu Maria Callas em encenações que marcaram uma considerável revolução do bel canto italiano, Visconti soube imprimir às mãos da cantora uma notável flexibilidade protéica: ora as mãos eram um sudário mortuário que envolviam o rosto sulcado de spleen (La sonnanbula, Gioconda), ora véu ebúrneo, destinado a proteger o rosto amado dos dardos ameaçadores do Real (La traviata, Lucia de Lamermoor). O rosto de Maria, artefato preciosista engendrado pelo chiaroscuro, era indissociável desta derme suplementar, que se integrava a ele como o verme ao musgo ou o solitário à imagem evocada de sua amada. Nos melodramas líricos dos 50, as mãos são o delicado tabernáculo onde se depositava a inocência ainda possível, a reserva de divino que as convenções sociais ou as turbulências dos afetos mantinham oclusa. Em Der rosenkönig (O Rei das Rosas, 1986), de Werner Schroëter, temos uma outra fenomenologia para estes baluartes ou contrafortes do rosto: as mãos lívidas e calcinadas de Madalena Montezuma já não asilam ou resguardam nada, pois não restou inocência para preservar; são mãos culpadas, corrompidas, destinadas à consumação da vindicação trágica. Se Anna (a mãe) e Albert (o Filho) fugiram do deserto, o deserto não fugiu deles: “Não olhe diretamente para o abismo, senão o abismo vai olhar de volta para você” (Nietzsche). A mão se destina agora à tessitura de um ritual secreto, que tem por objeto sacrificial a Natureza: a crucificação de um gato, a prisão e afogamento do sapo em uma redoma, os tiros a esmo. Se a mãe e o filho abandonaram o deserto, o deserto no entanto se deixa impregnar em cada gesto tíbio com que as mãos de Montezuma suspendem o sudário memento mori sobre a Natureza: em um mesmo Abacadabra, castração e consagração. Montezuma é uma bruxa, encarregada de transformar o recalque em uma experiência de sublime; o recalque é o horror à Natureza, o opróbrio de ser um corpo, a abominação que consiste em submeter um espírito livre às engrenagens da Necessidade. Na pequena vila mediterrânea portuguesa, os exilados alemães buscam perpetuar o deserto: a impossibilidade de lidar com a Alteridade, o medo à Natureza (o deserto é um conjunto de ciclos que se bastam, perpetuação da Morte no seio da vida), o culto da Morte. Ontem, alemães como Winckelmann e Mann buscavam na Itália uma alternativa ao Mesmo: aos serões noturnos, às catedrais sem deuses ( interdição da imagem), hierarquias rígidas. O Mediterrâneo é uma oferta de Graça e de graça, sem a qual a vida não pode afirmar-se soberanamente. Mas como os desgraçados personagens de Mann, a mãe e o filho estão comprometidos com o Mediterrâneo até a morte e o delírio; eles só o podem fruir através do masoquismo, da conspurcação do objeto adorado em uma lenta e lúgubre mise en scène, na qual o jardineiro precisa travestir-se em um São Sebastião “maneirista”para merecer ser supliciado. Uma santa com o nariz carcomido é a testemunha desta heresia, na qual o Amor só atinge o sublime ao conciliar-se com a Morte. “A confecção da rosa mais perfeita deste mundo” é o leitmotif dos personagens; mas esta rosa perfeita, liberta dos declives e fissuras da finitude, só pode ser uma rosa moribunda. Este filme sublime de horror, que se passa no pachorrento Verão português, em verdade repousa sobre a psicose do idealismo alemão: mãe e filho competem para elaborar a “mais bela e perfeita rosa”, mas para perfazer esta iniquidade terão de sacrificar um Outro. O Rei das Rosas manifesta, sob a suntuosidade fúnebre de suas cores (o dourado, o encarnado, o negro), uma profunda desconfiança para com a estética. Porém, como toda grande obra dialética, este terror secreto diante da Beleza só pode ser exorcizado ao nos deixarmos seviciar, em um grau agonístico, pela própria Beleza. “A arte é o começo do terrível”, lembra-nos Rilke. E não seriam este filho e esta mãe precisamente monstruosos por sentirem a injunção de transformar uma criatura da Natureza em uma obra de arte? O sangue exerce o papel mediador desta conversão de natureza idealista (tara particularmente alemã), de moeda de troca libidinosa entre a vida e a Ideia; um mediador “encarnado” entre as vicissitudes da finitude e a gloriosa imarcescibilidade da flor ideal.
Mas esta morte não pode conformar-se a evocar o deserto do Pai: o classicismo, as linhas retas, o tetê-à-tête com as origens, a abóbada límpida e serena. Esta morte deve instaurar de plenos direitos um deserto do deserto: o barroquismo consiste nesta mais-valia concedida à mise en scène, e é o investimento na mise en scène que vai permitir a conversão da criatura em obra; trata-se de um sacrifício estético, não de um simples assassinato. As pulsões destrutivas devem servir a um arsenal retórico, a um Sturm und drang de teatro e música (sobrecarga expositiva do gesto, ritmo concertante); em Schröeter, a ópera -mas também a canção popular, os ângulos agudos, a foto tenebrista- é um tool que propicia a cristalização da experiência em uma obra de arte crítica de seus próprios meios. Verifica-se, porém, um outro movimento, complementar a este: assim como os personagens experienciam o Amor unicamente através de sua engalanada destruição, o diretor põe em cena os seus momentos privilegiados, seus fantasmas de eleição; mas estes devem sofrer uma deformação masoquista, aliás típica dos maneirismos: o fantasma volta, carcome a cena e as coxias, determina o diapasão, só que agora sob o signo da caricatura ou paródia; a montagem de planos curtos e resfolegantes, os espaços extremamente découpados (que erodem o décor), os ângulos extremos são artifícios que se encarregam de efetivar esta deformação do objeto de desejo: a Mãe, la Callas, Caterina Valente, o São Sebastião “amaneirado”. Poucos planos, em O Rei das Rosas, nos aparecem restituídos segundo uma lógica perspectivada clássica: o que temos são “trechos” ou recortes de cômodos; closes que, como falava Foucault numa célebre entrevista, “figuram não um ser humano, mas uma caravela, um monturo de areia, as anfractuosidades da rocha”. Erodidos pela sombra, recortados pelo trabalho dos ângulos, recitados pela onipresença da música, os personagens só existem plenamente como evocação ou projeção, jamais manifestação. O barroquismo em Schröeter assinala uma fase terminal da figuração, em que esta sofre os estigmas não só do fantasma, mas igualmente da representação tardia: como manifestar o classicismo do plano reto e frontal (fiel ao homem e à sua representação) num mundo aliciado pela fantasmagoria de um coro polifônico de vozes off? Tudo permaneceu no passado, tudo se deixa raptar pelos avatares da imaginação e da memória (o fora de campo): a música, assim como as vozes gravadas pelo filho, exprimem este absoluto décalage do presente do que se mostra e daquilo a que recordamos ou aspiramos- e estes jamais chegarão a se encontrar, na medida justamente em que o filme consiste na narrativa caduca de uma síntese impossível: a identificação entre a Mãe e o amante e a substituição do Pai (ausente) pelo Filho. O rei das rosas assinala este ponto limítrofe do complexo de Édipo, em que todas as coordenadas do drama e de seus devires são subsumidas pelo fantasma, trabalhados segundo uma lógica fantasista, corrompidos pelo despotismo da entropia. Como possuir a mãe sem perder a vida? Inaugurando , com o cinzel da imagem, a Mãe ideal (substituição da Virgem no altar por uma Montezuma hierática e lacrimejante), e metamorfoseando a possessão do corpo gêmeo na adoração de um Outro (Fernando). A homossexualidade consiste na substituição do incesto pelo seu duplo, a única possível salvação: o corpo da mãe e o de Fernando são ofertas do Mesmo, e neste sentido são intercambiáveis; e a prova disto está na montagem paralela, que estrutura o filme, entre o idílio sado-masoquista dos dois homens e os gestos ritualísticos de la Montezuma, encerrada em sua mansão sepulcral, conjugada pelo filho segundo os modos da rememoração, da irisação libidinosa, e finalmente da Morte. O corpo que ele carrega pelo roseiral poderia ser o de sua mãe: temos uma conversão do amor incestuoso em expiação erótica homossexual. O último plano de O Rei das Rosas, com a casa queimando ao fundo e a superposição do fogo ao rosto de Madalena Montezuma, nos mostra que o sacrifício de Fernando é a máscara do verdadeiro crime: a destruição da Mãe pelo filho, das notas no caderninho pelos ersatz da gravação em off, do passado senhoril pelo presente “prático-inerte”.
O gato crucificado, as rosas coalhadas de sangue, a rã afogada em sua redoma de cristal, a casa que queima; a via-crucis da paixão se deixa apreender por este excesso do signo mortificante: quando o filho agarra com precipitação o sexo de Fernando, Schröeter intensifica a percepção do sacrifício pela contiguidade das imagens in extremis. A analogia envolve e implica entes de espécies e modus vivendis distintos, mas no cinema todos estão destinados a se encontrar: este romanceiro familiar esquizo, contado pelo ponto de vista da mãe moribunda, é uma ode ao corpo do ator, mas a sua intensidade aurática só nos pode ser sugerida pelos estigmas de sua ruína. Montezuma, cujo último filme foi este, aparece na plenitude de seus prodígios demiúrgicos, mas em chave duplamente negativa: a decadência consiste, como na citação de Lourcelles que serve de epígrafe a este texto, em uma experiência de imunodeficiência física e espiritual; aquela gente frígida e exangue do Norte, ao encontrar o Mediterrâneo, reconcilia a Morte e o Amor- estas duas forças primeiras e últimas, sob o império das quais o ser se debate-, mas ambas estão sobrepostas a um único corpo. Já não podem opor as mediações da civilização às forças telúricas do Mediterrâneo, porque estão apaixonados, condenados a ser objetos de uma pulsão imemorial; toda a força de seu “espinho na carne” consiste em matar aquilo que amam- haverá, no entanto, índice mais contundente de uma secreta agonia, de uma iminência de Morte, que este melancólico golpe de força? No Götterdämmerung visual com que se encerra, O Rei das Rosas traduz em termos grandiloquentes os efeitos deste devastador combate com o anjo para a subjetividade humana.