Tantos são os temas como os filmes, as formas como as ideias, na obra do prolífico Jean-Gabriel Périot que à média de dois filmes por ano tem produzido filmes que são já por si exemplo da confusão e saturação de imagens que os múltiplos ecrãs nos oferecem. Mas é exactamente na construção da torrente como meio de recuperação simbólica e emocional de certas imagens que o seu cinema se mostra mais surpreendente. O excesso como caminho para a revelação. Este ano o festival IndieLisboa dedica uma retrospectiva integral ao realizador, mostrando um total de 27 curtas-metragens e a sua primeira, e até ao momento, única longa-metragem, Une jeunesse allemande (2015), que integrou a competição internacional de longas do festival em 2015. A propósito da visita do realizador o ano passado, fiz a entrevista que se segue com especial enfoque nesse filme e no pendor político dos seus filmes de arquivo.
Qual foi a primeira imagem, ou imagens, ou filmes, que espoletaram Une jeunesse allemande?
Creio que foram talvez duas: pessoalmente o filme mais importante foi Deutschland im Herbst (1978), um filme colectivo, em particular a curta do Fassbinder que acabei por usar no meu filme. Foi realmente impressionante quando vi esse filme pela primeira vez e na verdade foi o primeiro que vi sobre este tema. A segunda imagem foi uma que mudou algo em mim, foi quando eu descobri Ulrike Meinhof num documentário em que se exibia um excerto dela a falar. E eu fiquei espantado, esta mulher é forte. Ela não era apenas uma terrorista, ela tinha uma vida incrível. Estas duas imagens ajudaram-me a prosseguir. Foram elas que começaram o filme.
Quando trabalha com arquivos crê que existe uma diferença entre cinema e outros materiais, como programas de televisão e notícias televisivas?
Nem por isso… Obviamente que não é o mesmo tipo de material. Eu posso comover-me tanto com um excerto de um filme como com um de televisão. Mas apostamente também posso achá-lo terrível. Claro que sou mais sensível ao cinema, mas por vezes descubro material maravilhoso em arquivos televisivos, principalmente documentários. Aliás, a televisão desses tempos nada se compara com a de hoje. Nessa altura eras capaz de encontrar uma entrevista de duas horas a um filósofo. Até apenas como espectador é maravilhoso encontrar alguém a falar sobre o que se estava a passar. E muitos destes programas estão muito mais próximos do cinema do que da televisão que temos agora. O que é estranho. Mas é óbvio que compreendo mais facilmente as intenções de um realizador de cinema do que os responsáveis de um programa televisivo. Por isso é que são tendencialmente esse que mais me emocionam.
Neste filme usa materias de vários arquivos. Houve algum que achasse mais interessante que os demais?
A cinemateca alemã obviamente, porque eles possuem todos os filmes da dffb [Deutsche Film und Fernsehakademie Berlin] e como tal todos os filmes feitos pelos estudantes estão lá. Não é que tenha lá passado muito tempo, devo lá ter ido uma três ou quatro vezes. Mas foi importante porque obrigou-me a mergulhar mais fundo no arquivo, já que a dffb não era muito organizada nessa altura. Provavelmente por isso encontrei lá os filmes mais interessantes da minha pesquisa.
Reparei que um dos filmes que usou é um remake de um filme sobre como fazer uma bomba – Wie baue ich einen Molotow-Cocktail? (Making a Molotov Cocktail, 1968) de Holger Meins. Acha que sendo um remake tem o mesmo poder que o original.
Sim… Acho que a única coisa que lhe falta são as margens da película, já que o remake tem um aspecto demasiado novo. Mas a forma como eles fizeram o filme foi muito precisa e dá uma óptima ideia de como era o original. Além disso é um filme em que o mais importante é transmitir uma ideia, mostrar como se faz um cocktail Molotov, muito mais do que pensar em cinema. Por isso é fácil refazê-lo. Mas o último plano do filme é o único fragmento preservado do original. Ninguém nota… mas esse último plano com o Holger Meins vem do original. Um pequeno pedaço antigo dentro do novo… fiquei feliz por descobrir isso.
Fiz-lhe esta pergunta porque a ideia de reconstrução cinematográfica me interessa e nos seus filmes ela surge, em particular neste Une jeunesse allemande onde há uma grande porção que é essencialmente arqueológica. Encontra várias peças e tenta colá-las como um vaso fenício.
Sim, mas há uma diferença: na arqueologia tenta-se encontrar a forma do vaso original ou de um corpo humano, mas para mim, com o conjunto das peças eu faço uma Quimera… eu junto todas as peças mas no final não tem nada que ver com um esqueleto ou qualquer objecto reconhecível, tem uma nova forma composta de muitas pequenas peças. Após exumar as imagens do arquivo não me interessa fazer algo que estabeleça qualquer relação com a forma original.
É comum dizer, e Une jeunesse allemande reflecte isso, que os anos 1960 correspondem à ultima época em que o cinema foi usado como arma política. No entanto muito dos seus filmes, especialmente as curtas metragens, têm essa característica.
Acho que são políticos, mas não são armas políticas… Não são do tipo de filmes em que depois de os veres queres começar uma revolução. Quem me dera que isso fosse possível, mas não tem o mesmo tipo de energia dessa altura. Estávamos a falar de como se faz um cocktail Molotov, esses filmes são de primeiro grau, eles ensinam a fazer algo que ajudará a revolução, são muito concretos. Nos meus filmes há uma distância maior, não são participativos, apenas estou a tentar questionar, a questionar a própria política…
Crê que com a Internet o papel do cinema e do vídeo é ainda importante nesse questionamento da política e na promoção das revoluções?
Sim, claro. Há sempre um exemplo para tudo e por exemplo quando estava a acontecer a Primavera Árabe vários tentaram fazer filmes e alguns cineastas estavam envolvidos. Mas é um grupo de pessoas muito reduzido aquele que está interessado em fazer filmes com intenções revolucionárias, muito mais pequeno do que era nos anos 1960. Mas é importante continuar a fazer filmes que coloquem questões. Mas parece-me que hoje em dia são as redes sociais o sítio de promoção revolucionária, muito mais do que o cinema.
Vendo o seu filme fiquei com a ideia de que a revolução começou na escola de cinema. Foi assim que aconteceu, ou esta ideia resulta apenas do facto de ser lá que se filmava o que estava a acontecer?
No filme eu uso muito material de arquivo da dffb por caso do Holger Meins e talvez por isso tenha ficado sobredimensionada a sua importância… Mas de facto a dffb foi importante no momento estudantil, eles começaram as greve e fizeram vários filmes políticos mal o movimento se iniciou. A escola de cinema foi um local importante mesmo que os alunos não tenham estado propriamente no centro do movimento. É semelhante ao que aconteceu em Paris durante o Maio de 68 em que a escola de design gráfico fez imensos cartazes, imprimiu-os e afixou-os nas ruas. É aquele tipo de locais que dão o sabor de um movimento, que lhe dão a cor.
E é exactamente porque o estudantes da dffb produziram imagens que são agora recordados, ao contrário dos estudantes doutras escolas. Se não há imagem, não há história?
Sim… Uma das questões do filme prende-se com o terrorismo e a forma como este é representado. E por exemplo, quando hoje em dia há um ataque terrorista a primeira imagem que nos ocorre é a de uma pessoa terrível, violenta, de uma pessoa que cresceu com violência. Todos temos esta ideia, esta imagem, de um terrorista. Por esse motivo quis que os personagens do Une jeunesse allemande surgissem como figuras proeminentes que eram convidadas para aparecer na televisão e faziam cinema. Senti que era necessário regressar ao passado para recuperar essas imagens esquecidas que mostram como eles eram pessoas normais e bem educadas. Ele tornaram-se terroristas… mais tarde. Eles não nasceram terroristas. Isto é importante, para que as pessoas hoje, quando ouvem a palavra terrorista tentem evitar o preconceito. Não é apenas um terrorista, é um ser humano que recorreu à violência – e podemos discordar disso, claro -, que não é necessariamente um louco. É mais complexo do que isso. E não é que essas imagens fossem impossíveis de encontrar, mas estavam sob outras imagens… Repara na Ulrike Meinhof, ela era bonita, inteligente, esperta… eles todos o eram.
Muitas das suas curtas metragens trabalham proximamente com a música, isso é algo que não acontece com Une jeunesse allemande. Foi muito diferente trabalhar num formato longo?
É capaz de ser a primeira vez que faço um filme em que a música não é muito importante. A principal ideia da montagem foi respeitar os materiais. Por isso sempre que eu usei materiais de um arquivo com música eu simplesmente deixei-a na banda sonora. Apenas pedi a um compositor para elaborar uns pequenos trechos musicais de modo a ligar alguns fragmentos de arquivos que haviam perdido o o som ou se limitavam a imagens paradas. Mas isso só ocorre duas vezes em todo o filme. Provavelmente a única música que é importante para mim é a última, feita por uma cantora dos Panteras Negras que ajuda os espectadores a descansar e abandonar calmamente o cinema, e também pela sua força e significado.
(Esta entrevista foi realizada durante o IndieLisboa 2015 por motivos promocionais e foi publicada parcialmente no catálogo do mesmo festival em 2016 a propósito da retrospectiva dedicada ao realizador.)