Deu-se a feliz coincidência (e costuma dizer-se que “não há coincidências”) que nesta quinta-feira, dia 6 de Dezembro de 2018, estreassem nas salas comerciais portuguesas os mais recentes filmes de Jean-Luc Godard e António-Pedro Vasconcelos: Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018) e Parque Mayer (2018). O que liga estes dois realizadores, além dos três nomes, do hífen entre os dois primeiros, e da idade avançada (88 um, 79 o outro), é que para o segundo o primeiro foi (e é) fundamental na sua perspectivação na (e da) cena cinematográfica. António-Pedro Vasconcelos foi um dos mais fervorosos defensores do cinema do cineasta franco-suíço durante os anos 1960, 1970 e meados dos anos 1980, tendo escrito profusa e entusiasticamente sobre os seus filmes e batido-se publicamente pela sua exibição aquando da triste polémica promovida pelo então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Nuno Krus Abecasis, a propósito de Je vous salue, Marie (Eu Vos Saúdo Maria, 1985).
Tanto Perdido por Cem… (1973) como, e especialmente, Oxalá (1981) estão pejados de referências e piscadelas de olho à obra de Godard. E lendo os textos de Vasconcelos desse período, percebe-se que para ele o olhar godardiano era a chave para a compreensão do cinema, do mundo e da vida. Algo ter-se-á passado no final dos anos 1980 que levou o realizador português a saltar a barricada e a colocar-se na posição diametralmente oposta do espectro estético. Jean-Luc Godard passou a ser símbolo do que estava mal no cinema Europeu e, em particular, do que estava mal no cinema de autor. O aprendiz de feiticeiro matou o mestre e renegou toda a sua magia. Tudo aquilo que era sublime em Godard, passou a ser a própria causa do asco. Nesta edição dos RECORTES DE CINEMA pesquisei alguns dos textos críticos de António-Pedro Vasconcelos sobre os filmes de Godard (entre o final dos anos 1960 e o final dos anos 1970) na Biblioteca da Cinemateca Portuguesa – Museu de Cinema e justapus esses excertos com outros dos seus artigos e entrevistas recentes. Um zig-zag histórico que revela um crítico atentíssimo e quase profético (imbuído de um espírito revolucionário abrileiro) e um cineasta com desejo de se reescrever e re-inscrever num cinema vocacionado para o público e para a linguagem comercial do mainstream (cabecilha do dito “cinema dos produtores”). Os sublinhados são meus.
(…) Ele [Godard] é, não apenas entre os novos cineastas franceses, mas também em relação à transformação do cinema nestes últimos dez anos, a personalidade mais importante, tão importante como foram noutros tempos um Griffith, um Eisenstein, um Orson ou um Rossellini. Eu diria mesmo que ele me aparece como um das figuras mais importantes para a história da cultura ocidental nesta segunda metade do século (…). Ele vai tão depressa que qualquer texto está automaticamente desactualizado e mesmo, em certos casos, desacreditado pelo filme seguinte. Portanto, e com a consciência de não podermos abarcar aqui toda a complexidade de uma obra tão rica (…), parece-me que será mais revelador para Portugal, onde o público apenas viu o Pierrot le fou [Pedro, o Louco, 1965] que nós tentemos por aproximações sucessivas fazer aqui um retrato robot do que é essa criatura fascinante e vertiginosa que ilumina, melhor diria que queima, as várias etapas da história do cinema nestes últimos dez anos. (…) Godard exemplifica melhor do que nenhum outro essa viragem da idade decisiva na história do cinema que é, antes de mais, consciência do próprio cinema e portanto reflexão sobre ele.
(…)
Eu suponho que talvez se possam marcar, portanto, três épocas na obras do Godard: primeiro a fase do cinema, fase em que ele se liberta da paixão pelo cinema do passado, em que o critica, o destrói e passa adiante. Uma segunda fase em que ele se vira para as imagens e os sons da sociedade do consumo, para a americanização progressiva da França (os títulos dos filmes são elucidativos a esse respeito: Made in USA [1966], Week End [Fim-de-Semana, 1967] e os «filhos de Marx e da Coca-Cola» que ele propunha como subtítulo de Masculin féminin [Masculino Feminino, 1966]). É a fase em que ele se vira, portanto, para a publicidade e o que isso representa (Une Femme Mariée [Une femme mariée: Suite de fragments d’un film tourné en 1964 (Uma Mulher Casada, 1964)], 2 ou 3 choses que je sais d’elle [Duas ou Três Coisas que eu Sei Dela, 1967], ou seja os filmes sem Karina). Finalmente uma terceira fase em que ele se sente atraído pela «revolução cultural» e decide apropriar-se dos slogans, dos cartazes, dos grafitis, eliminando todas as suas referências cinematográficas, mantendo-se quando muito ligado à influência de Eisenstein, i.e. dum cinema anti-realista, um cinema de manipulação total. (…) O melhor filme dessa fase é esse filme profético e genial que é a La chinoise [O Maoísta, 1967] em que ele faz tábua rasa, aí sim, com todo o cinema do passado e com os seus filmes anteriores. La chinoise é o grau zero do cinema e da revolução. Não é por acaso que o filme seguinte se chama One + One [1968].
A.-P. V., Jornal de Letras, n.277, Julho 1979, “2 ou 3 Coisas que Sabemos Dele” mesa redonda entre A-P V, Alberto Seixas Santos e Paulo Rocha, p. 44-53.
Já na segunda década do século XXI o realizador, em entrevista promocional de A Bela e o Paparazzo (2010), refere-se nos seguintes moldes ao cinema de de Jean-Luc Godard.
O Godard, que foi um dos cineastas que mais me inspirou nos anos 60, foi um dos grandes responsáveis pelo estado em que isto está. Ele, que era uma figura fascinante e brilhante, levou o cinema europeu para um determinado caminho, teve muitos seguidores, mas depois deixou-os na estrada. Porque foi incapaz de tomar o poder. E traiu toda a gente. O que é feito, hoje, dele? Já não representa nada. (…) Eu gosto muito desse filme [Je vous salue, Marie], como gosto muito do Prénom Carmen [Nome: Carmen, 1983]. São filmes que ainda tentam contar uma história. A partir do momento em que o Godard entra numa fase de poesia esotérica, eu desacompanho-o totalmente. Passo a ser um dissidente.
A.-P. V., Público, 28 de Janeiro de 2010, “António-Pedro Vasconcelos: «Sou um dissidente do cinema europeu»” entrevista de Sérgio C. Andrade.
Mas se o problema de Godard é ter deixado de contar histórias, no idos anos 1970, essa era a razão da sua grandeza.
Queixam-se algumas pessoas à saída que não percebem o filme (querendo com isso dizer, é claro, que não perceberam a «história»). Porque será? (…) Made in Usa tinha aproveitado o «policial» (…) como tema do próprio filme, isto é: tratava-se de filmar o mundo como um intriga. Tudo isto para dizer o quê? Para dizer aos espectadores que saem do filme desconcertados que Paula Nelson (Anna Karina) é a primeira a aperceber-se disso («não percebo nada», diz ela), que é uma forma de perceber precisamente que a intriga a ultrapassa, a ela protagonista (…) como a nós espectadores e que é essa a própria moral da história (senão da História com letra grande). Infelizmente, o público, demasiado habituado a que o cinema seja a vida privilegiada pelo «écran», «perdoa» facilmente ao pintor e ao romancista as liberdades que condena no cinema. Há aqui, porém, neste filme belo e cristalino e a muitos títulos proféticos, que eu considero um dos melhores filmes de Godard, «uma ideia por plano» como acontecia nos filmes americanos dos bons tempos, só que aqui a ideia não é uma ideia de mise en scène, mas uma mise-en question dum[a] mise en scène tradicional (…) e daquilo que sustentava esse belo edifício, espelho que pretendia ser de um modo lógico, organizado, inapelável.
(…)
Godard passava de um plano ao outro, de uma cena à outra sem respeitar essa gramática, sem a preocupação mecânica de manter essa continuidade dramática que garantia a bela ilusão do cinema. Era esse, aliás, quase diria, o próprio tema do filme [À bout de souffle (O Acossado, 1960)] como o será de certo modo de todo o seu cinema: o que aproxima o cinema da vida é que nele tudo é contínuo por definição, na medida em que os fotogramas se sucedem fatalmente uns aos outros reproduzindo o movimento. É nesse sentido que Meliès e Lumière se confundem e que no cinema de Godard o lado «realista» e o lado «desenho animado» se confundem. O que conta é o próprio movimento do filme e não uma continuidade falaciosa ou a identidade do espaço, do tempo e das próprias personagens, onde Godard apercebe, pelo contrário, uma descontinuidade que é como que a ferida central do seu cinema: o mundo e a consciência que dele temos são sentidos como descontínuos , onde o que transparece não são as rupturas, os lapsos e os hiatos, ou, noutros termos, a traição [itálico no original], tema central do seu cinema.
A.-P. V., Rádio e Televisão, n. 815, 24 Junho 1972, “MADE IN USA: O mundo como uma intriga“, p. 45-46.
E por falar em traição.
A partir do momento em que se destruiu o modelo, caiu-se na arbitrariedade. O que me interessava na Nouvelle Vague era o quebrar de formas antiquadas mas também a possibilidade de se criar uma nova forma de ficção. Esperava que os novos autores tomassem o poder, mas Godard traiu essa ambição.
A.-P. V., Publico, 9 de Abril de 1999, “Ele diz: «I’m back!»” entrevista de Vasco Câmara.
Mas aquilo que interessava ao crítico Vasconcelos na obra de Godard era a sua qualidade rebelde, contra-poder.
[…] todo o cinema do Godard, que é um cinema em luta aberta contra os privilégios. A noção de hierarquia, noção de que há cenas que devem ser filmadas, outras não, que o personagem é mais importante do que o décor, que a intriga por sua vez é mais importante do que o personagem, por exemplo, ou de que a montagem é menos importante do que a filmagem, ou o som menos importante do que a imagem, com tudo isso, tudo que sustentava afinal o belo edifício do cinema clássico, desde John Ford a Visconti, com tudo isso ele acaba sistematicamente. É a sua maneira de lutar contra os privilégios. Isso leva-me a outra consideração. Todo o cinema dele é fundamentalmente antiburguês, passe o chavão. Tudo o que na vida burguesa constitui uma determinada noção do mundo, uma determinada ordenação social de que o cinema é um dos reflexos, constitui para ele um elemento de antagonismo. O seu cinema deixa de ser reflexo (condicionado) do mundo burguês para ser uma reflexão sobre esse condicionamento. Ora uma das coisas sobre a qual assenta o universo ideológico e económico da burguesia é a noção de propriedade. O Godard é estruturalmente um indivíduo que não tem a noção, nem portanto o respeito, por essa noção de propriedade. «Quanto mais se tem, menos se é», dizia o outro e isso aplica-se às mil maravilhas ao Godard. Portanto, não admira que ele substitua a noção de propriedade pela noção de apropriação. Isso explica muita coisa na sua obra, desde o uso e abuso que ele faz por exemplo da citação até ao uso que as suas personagens fazem de tudo o que representa os objectos de base desse mundo burguês: a casa, a mulher, o automóvel, o dinheiro que se ganha. (…) Eu pergunto-me se o papel de um cineasta, que não é, no plano da luta de classes, um indivíduo integrado em qualquer classe social, que é um marginal, eu pergunto-me se não é essa a sua forma de ser revolucionário.
A.-P. V., Jornal de Letras, n.277, Julho 1979, “2 ou 3 Coisas que Sabemos Dele” mesa redonda entre A-P V, Alberto Seixas Santos e Paulo Rocha p. 44-53.
E poucos meses após a Revolução de Abril, o jovem crítico vai ainda mais longe no fervor anti-capital.
Diante de Week End não sabemos o que mais admirar: se essa espécie de inteligência do cinema (…) que transparece e nos exalta em todos os filmes de Godard e que tem aqui, talvez, o seu ponto mais alto, se a violência, a raiva destrutiva, o alarme e o ódio já impossível de conter, esse vento (…) que tudo promete varrer ao ponto de de fazer de Week End como sempre acontece com Godard, um filme premonitório de um estado de espírito e de uma grande mudança (…). Week End, anterior a uma tomada de consciência política (é assim que se diz?) levada nos anos que se vão seguir, às suas extremas consequências, é ainda um filme de um anarquista, anarquista que talvez nunca Godard tenha deixado de ser, onde se acumulam o horror, a violência e a vergonha por uma França burguesa tornada irrespirável, alienada e opressiva e parece obedecer a um programa que ele próprio enuncia próximo do final do filme para quem o queria ouvir: para ultrapassar, o horror da burguesia é preciso mais horror ainda [negrito do texto original] (…).
A.-P. V., FestFigueira, n. 807, Agosto de 1974, “Fim de Semana (Week End)”, p. 18-19.
No entanto, tudo isso virou radicalismo, com os anos e com a idade.
De todas as artes o cinema é a mais difícil porque é uma arte hipnótica. Se o espectador perde o fio à meada ou se não percebe descola do filme. Um filme tem de ser feito ao milímetro (…). Um bom script é aquele em que os actores e espectadores não têm que fazer perguntas. Sou fiel ao que Truffaut sempre disse: “Não podemos desligar-nos do público”. O radicalismo estético, no fundo a linha Godard, foi fatal para a deriva do cinema europeu e, por arrasto, o português.
A.-P. V., Sol, 27 de Setembro de 2014, “António-Pedro Vasconcelos: «Não queria um filme piegas»” entrevista de Alexandra Ho.
No fundo, o que mudou foi a relação com o espectador, vulgo público. Hoje em dia, o público é rei e senhor, mas em 1979 o público era… ignorante.
[…] uma das preocupações «chaves» do Godard é precisamente a não-separação, digamos assim, das categorias filosóficas clássicas, como são, neste caso, a essência e a existência. Ora por volta do Pierrot, ele apercebe-se que não basta discutir e interrogar-se sobre o que é a essência do cinema, porque ela é inseparável da sua existência. É a partir daí que a obra dele ganha uma nova dimensão, na medida em que ele toma consciência dum fenómeno muito moderno, que é a capacidade de recuperação imensa que tem a sociedade em relação às obras que a contestam. Quero dizer, ele apercebe-se a partir do Pierrot le fou que, apesar de tudo, os seus filmes, sendo o mais violentamente antiburgueses, contestatários da sociedade em que se inscrevem, são, no entanto, recuperados por ela como espectáculo. Se Pierrot le fou fez grandes receitas é porque é confundido pela maior parte dos espectadores, graças a uma leitura superficial, com o último exemplar das grandes histórias de paixão, na linha de Romeu e Julieta, do Tristão e Isolda, o último exemplar do romantismo em suma. Poderíamos dizer que ele descobre aí que não basta analisar o mundo (e o cinema que dele faz parte) que é preciso transformá-lo [negrito no original].
A.-P. V., Jornal de Letras, n.277, Julho 1979, “2 ou 3 Coisas que Sabemos Dele” mesa redonda entre A-P V, Alberto Seixas Santos e Paulo Rocha p. 44-53.
Esta mudança foi, obviamente, um processo progressivo de despertar para uma nova realidade.
Não me afasto de maneira brusca, gosto muito de Nome: Carmen e Eu Vos Saúdo Maria, que têm uma grande força poética. Mas ao perder as ilusões políticas, recusando o seu poder e retirando-se para a Suíça, deixa de me interessar. Aproxima-se da videoarte e tira ao cinema a função de uma arte narrativa e da representação, numa radicalização do discurso político que, ao falhar, chega a uma radicalização do discurso estético. Isso é fatal, conduz à hegemonia do cinema americano e ao afastamento do público do cinema europeu, dando-lhe o terreno.
A.-P. V., Público, 4 de Março de 2011, “António-Pedro Vasconcelos (n. 1939) sobre Jean-Luc Godard“.
Só que aquilo que apaixonava Vasconcelos, na obra de Godard, era, nem mais nem menos, não ser narrativo nem representativo… mais exactamente auto-reflexivo.
«Pierrot le fou c’est le film d’un homme sage». Assim começaria eu por falar do mais confessional até à data dos filmes de Godard, o mais sincero dos seus filmes e, por isso mesmo, o mais cheio de fingimento, aquele em que o autor põe a máscara à vista do público para depois nos tentar convencer que é o seu rosto de todos os dias. Por outras palavras, é um enorme bluff, mas um bluff em que o jogador finge não ter jogo quando tem um poker de ases na mão, e não o contrário. (…) [O] cinema não é uma janela mas um espelho, para o mais germânico dos cineasta franceses, onde as balas como a verdade fazem ricochete no écran. (…) Godard faz-nos crer que Pierrot, como tudo à sua volta, tem uma existência real mas que na realidade ele tem a impressão de estar num filme. Ou que se a vida é uma verdade de que é preciso desconfiar, o cinema (…) é, pelo contrário, uma mentira em que é preciso acreditar. (…) [N]o centro do absurdo, a comédia e a tragédia têm o mesmo rosto, cuja máscara comum é a vida, e se esse Pierrot desconcerta é porque Godard, ao contrário de Chaplin, filma a comédia em grande plano e a tragédia em plano geral. (…) E assim este filme ao mesmo tempo anárquico e rigoroso, disperso e linear, desesperado e lúcido, cínico e lírico, em que se cita Rimbaud ao lado de Prévert, Picasso juntamente com os Pieds Nickelés, oferece ao público apenas a máscara do que é: neste ajuste de contas entre Godard e Karina, é preciso ver antes a mais bela confissão de amor que o cinema já alguma vez dedicou a uma mulher.
A.-P. V., Tempo e o Modo, Janeiro de 1967, “Pierrot le fou – O poeta é um fingidor”, p. 116
Ou melhor, desta vez sobre Week End.
Dir-se-ia que Godard faz do cinema o seu interlocutor, que o interroga, que o obriga a confessar-se e a mostrar as suas razões. Tudo se passa como se a cada novo plano, as convenções desmascarassem o belo edifício do cinema clássico, isto é o cinema onde as regras da verosimilhança, da continuidade e da identificação não eram nunca contestadas. Poderia dizer-se que é pela contestação do cinema (sua primeira paixão) que Godard chega à contestação política, que ele toma consciência do imperialismo e da linha revisionista ao ver o que americanos e russos fizeram do cinema de Murnau ou de Vertov, e que por sínteses sucessivas ele vai de Chaplin a Lenine e de Rossellini a Mao Tsé-Tung. Cada plano de Godard (entenda-se cada imagem e cada som na sua sucessão e justaposição) é um problema e a sua provisória resolução, socorrendo-se ele de todos os ingredientes da cozinha cinematográfica (…) para os manipular como melhor convém ao seu discurso feito de associações livres, caras aos surrealistas. (…) Seria preciso falar de surrealismo a propósito de Godard: o famoso travelling de Week End tem o valor de certos poemas em forma de inventário, o absurdo instala-se pela mão da lógica e certas justaposições que baralham o tempo e fazem coincidir realidade e fantasia no mesmo presente que é o filme (…).
A.-P. V., FestFigueira, n. 807, Agosto de 1974, “Fim de Semana (Week End)”, p. 18-19.
Ou ainda, de forma muitíssimo eloquente.
[O] que há no Orson [Welles] (…) como há no Godard, é que a noção de «realismo» como categoria burguesa, isto é a ideia de verosimilhança, que é a caricatura burguesa da verdade e a sua caução estética, digamos assim, é permanentemente ultrapassada. Se o Godard no A bout, por exemplo, se serve de um certo «realismo» nos diálogos (…) é paradoxalmente para demonstrar que o cinema «realista» francês da época, realista entre aspas, o cinema com o Gabin a falar «argot», que esse sim, era um cinema anti-realista no sentido mais elementar do termo.
(…)
Sou tentado a dizer que se passa com o Godard a mesma coisa que se passou com o Manet em relação a certa pintura. Nesse aspecto, o ensaio de Bataille sobre o Manet é fundamental. Também ele copia aparentemente uma certa pintura, mas afinal para destruir o que nela é fundamental, portanto, para a criticar. Quer dizer, pela iluminação, pela colocação das figuras no quadro, pelo enquadramento, etc. digamos assim, dos seus quadros, Manet acaba por destruir a noção de hierarquia que está ligada à noção tradicional da profundidade, que está ligada por sua vez à perspectiva, e portanto a uma ordenação lógica do mundo. Há uma coisa que o Pernes disse sobre o Noronha da Costa que eu acho que se aplica muito bem ao Godard. Ele fala na substituição da noção de cena pela consciência do «écran» , de plano, portanto. E por aí, na cena do cinema dos Les carabiniers [Os Carabineiros, 1963] (…) ele denuncia o cinema como uma falsa cena, como o tal «trompe l’oeil». Digamos, portanto, que o cinema tradicional é uma ilusão de óptica que acabou por se transformar numa ilusão de ética.
A.-P. V., Jornal de Letras, n.277, Julho 1979, “2 ou 3 Coisas que Sabemos Dele” mesa redonda entre A-P V, Alberto Seixas Santos e Paulo Rocha p. 44-53.
Todo este vai-e-vem deu origem a um texto do crítico de cinema do Público, Vasco Câmara, sobre A Bela e o Paparazzo que suscitou a seguinte resposta do realizador.
Em 1963, Godard decidiu responder nas páginas dos Cahiers du Cinéma aos críticos que arrasaram o seu filme, Les carabiniers. Devo confessar que essa lembrança acabou por me decidir a tomar a palavra (…). [O] ódio de VC [Vasco Câmara] a tudo o que faço e digo tem uma origem remota mas persistente: eu, que, nos anos 80, defendi Godard contra a fúria saloia de Abecassis, a propósito de Je vous salue, Marie, atrevo-me agora a atacá-lo! Mesmo que VC declare que não tem uma relação de fidelidade incondicional com o Mestre, há aqui um ressentimento freudiano: ele sente que eu matei o Pai! Ora, do que eu acuso Godard, que se tornou um eremita amargo, sentencioso e moralista, é de não ter tomado o poder. Os pintores impressionistas, os realizadores neo-realistas, a geração do Vietname americana, todos eles combateram os bonzos do passado e tomaram o poder, como lhes competia. Godard deixou os seus seguidores num impasse, e refugiou-se em Genebra – como fez Chaplin, quando percebeu que, na Suíça, os impostos eram mais leves –, a fazer filmes para o umbigo, com apoios oficiais. O que eu gostei em Godard foi a profissão de fé que ele adoptou quando, em 1966, levou Samuel Fuller a dizer, num momento memorável de Pierrot le fou, que “um filme é como uma batalha (onde há) amor, ódio, acção, violência e morte. Numa palavra: emoção”. Onde é que isso está, hoje (a emoção), no cinema que ele faz e VC defende? Quem traiu o quê?
A.-P. V., Público, 15 de Fevereiro de 2010, “O cinema xunga e os consumidores de «junk food»“.
E como o leitor já imaginará, chega mais uma vez a hora do contraditório, já que nesse texto de 1979, esta era a sua interpretação sobre os críticos que não defendiam (ou atacavam) a obra godardiana.
O caso do Benayoun no Positif(…) é bastante típico. (…) ele dava sistematicamente a todos os filmes de Godard uma bola preta no quadro dos Cahiers, porque considerava pura e simplesmente que os filmes do Godard não eram cinema. E aí ele acertava em cheio. Efectivamente, o que se passa é que a reacção do Benayoun é a reacção de que falava o Vailland em relação ao parasita e ao parasitado. Ele dizia que quando o parasitado está em perigo, o parasita defende-o, defende o seu bife. O bife do Benayoun é o cinema. O Benayanoun não suporta que se destrua essa imagem impune que é o filme e que lhes destruam esse prazer de ir ao cinema e ver belas histórias traduzidas em belas imagens.
A.-P. V., Jornal de Letras, n.277, Julho 1979, “2 ou 3 Coisas que Sabemos Dele” mesa redonda entre A-P V, Alberto Seixas Santos e Paulo Rocha p. 44-53.
A pergunta que se impõe é: quem comeu o bife é a quem? E o que é afinal o bife nesta metáfora?
Quanto ao Pierrot, se esses diálogos me lembram alguma coisa é o famoso diálogo do Johnny Guitar [1954], filme que ele de resto cita permanentemente no Pierrot. Aqui, o papel evocativo da palavra multiplica de certo modo aquilo que no filme a imagem recusa, e por aí eleva-o ao nível do mais puro lirismo que se refugia no som por um movimento duplo de pudor e franqueza. (…) O que há no Godard, como havia já de certo modo no Nick Ray (e não é por acaso que o Nick foi o cineasta sobre o qual ele escreveu mais) é uma grande tensão entre os opostos e um sentimento trágico de que essa unidade só se encontra na morte, que é o fim do movimento, negação portanto ao mesmo tempo da vida e do cinema. Dai que a obra de Godard seja uma perpétua mise en question de todas as formas da realidade (e do cinema), que faz com que ele seja um cineasta da contradição permanente e essa é a única definição de progresso que conheço. É um pouco a ideia do Lenine de que o progresso é «um passo atrás e dois passos à frente». São portanto essas contradições que enriquecem a sua obra, que a fazem avançar.
A.-P. V., Jornal de Letras, n.277, Julho 1979, “2 ou 3 Coisas que Sabemos Dele” mesa redonda entre A-P V, Alberto Seixas Santos e Paulo Rocha p. 44-53.
O mais extraordinário é que o crítico António-Pedro Vasconcelos soube identificar o cerne da obra de Jean-Luc Godard logo nos primeiros filmes, aquilo que Godard não deixaria nunca de trabalhar, cada vez mais profundamente… E por isso, quando Godard literaliza aquilo que Vasconcelos nele amou, o amor desfaz-se na concretude de uma relação doméstica caída no aborrecimento do quotidiano. Essa é a maior surpresa que sinto neste exercício, descobrir no olhar crítico de Vasconcelos uma lonjura que se aplica perfeitamente à obra contemporânea do franco-atirador.
(…) [o] Week End (…) ilustra perfeitamente [a] ideia de destruição que atravessa a sua obra. Essa ideia tem muito a ver com uma espécie de delírio, de raiva, que só tem paralelo na obra do Sade, e que é uma maneira de ver a obra do Criador como uma serie infinita de destruições e, de certa maneira, tentar rivalizar com ela. Criar é, de certo modo, exibir a destruição como um troféu e devolver depois a obra ao caos original de que nasceu. Nada escapa a essa voracidade. Não é por acaso que o Week End abre com um cartão onde se lê «um filme encontrado no ferro-velho» e termina com uma legenda que diz «um filme perdido no cosmos». É por isso que essa aventura sui generis, que é a criação, se apresenta na obra do Godard (…) como um esboço permanente: os filmes são uma espécie de detritos, têm um caráter precário, que os expõe livremente à corrupção e à combustão que é o olhar do espectador, uma vez postos em circulação, e que por aí se antecipam orgulhosamente à morte (ao museu), à queima votados.
A.-P. V., Jornal de Letras, n.277, Julho 1979, “2 ou 3 Coisas que Sabemos Dele” mesa redonda entre A-P V, Alberto Seixas Santos e Paulo Rocha p. 44-53.
E quem já viu o Le livre d’image bem sabe que lá tudo arde, lá tudo queima, diante dos nossos olhos.