David Bordwell, num videozinho sobre Ohayô (Bom Dia, 1959) do mestre Ozu, diz que as suas linhas rectas, a composição, a simetria, entre outros traços, deixavam claro que estávamos na ozuland. Pois bem, na garrel land os alicerces partem, como sabemos, de uma economia de produção – 35 mm, muitos ensaios com os actores para poupar takes, reescritas, aproveitamento de gestos e nuances – resultando em home-street movies, contidos, relaxantes, amorosamente cada vez mais anacrónicos (ou assim parece, ferozes vão os tempos que correm) que o próprio diz que poderiam ser pequenas peças de teatro filmadas em décors naturais. Na garrel land, são as relações – sobretudo amorosas, mas não só – aquilo que está a ser ensaiado, como mapa de possibilidades. Mas e então como navega o espectador na garrel land, nesse mapa de suaves ironias e decepções ao virar de cada elipse?

A questão é periclitante. A naturalidade do trabalho de Garrel assume o seu tempo, a sua idade, uma visão sobre o Outro. Isto quer dizer que filma sem medo que o espectador hipercativo detecte rapidamente nos seus filmes a sublimação de uma inevitável decadência através da encenação do corpo jovem, ou as alegrias e desalentos da conquista e do romance no início da idade adulta. Ou ainda um formalismo estéril, petit bourgeois, expresso através do encanto pelo corpo feminino, esbelto, nu, apetecível. Na garrel land, o espectador rapidamente corre o risco de devir psicanalista de um autor e de uma forma de viver o presente e seu desejo através da arte. Essa facilidade deve-se, em meu entender, pelo facto dos filmes de Garrel assumirem uma tal depuração, um tal je-m’en-foutisme face a um dado julgamento moral, que se torna ténue e fluída a linha divisória entre a abertura das suas personagens e uma estética intelectual light.
Nesta economia de produção Garrel é o artesão/marceneiro supremo. Nada está a mais. Tudo o que é do drama convencional – mortes, gravidezes, desencontros, abortos – acontecem de súbito, em off.
Só isso permite explicar que Garrel fazendo sempre o “mesmo filme”, faça obras tão díspares. Por exemplo, em L’ombre des femmes (À Sombra das Mulheres, 2015) estava mais à vista a problematização da influência feminina na psyche masculina. Um filme com corpo. Já em L’amant d’un jour (O Amante de um Dia, 2017), apenas dois anos depois, a trama parecia volatilizar-se ante o prazer de ver a troca dos parceiros e a pura jouissance. Um filme sem corpo (mais dado à psicanálise de autor, como referi). É nestas oscilações que Garrel se move e com ele os viajantes do seu cinema. Se olharmos para este mais recente Le Sel des larmes (O Sal das Lágrimas, 2020) a bússola parece apontar mais para um filme-corpo: uma obra onde o seu tema constante – “Mas que raio é isso do amor!? Como se encontra!?” – faz mover as peças, perdão… as personagens em função dessa busca.
Garrel e Jean-Claude Carrière imaginaram a história de Luc, filho de um velho carpinteiro, que vem à capital para concorrer a uma universidade de artesanato. Depois o tradicional enrodilhar no novelo das relações femininas: uma menina em Paris, outra na sua cidade (que reencontra depois de terem sido namorados na escola) e novamente outra menina em Paris. Ele não está preparado para o que lhe vai acontecendo e não sabe o que é estar mesmo apaixonado. Por duas vezes, Luc irá dizer que o que lhe aconteceu não foi bem ele que quis, foram as mulheres com quem esteve que o levaram ali (ainda a sombra das mulheres). Este trajecto torna-se cruel e irónico. Aliás, pode parecer que Garrel é um tanto impiedoso com as suas personagens mas elas justamente estão em modo odisseia, ao serviço de um quê que ninguém sabe como agarrar: o amor. Por isso, elas vão e vêm, morrem subitamente, apaixonam-se, enciumam-se, têm os sonhos desfeitos e podem mesmo ser enterradas sozinhas à espera do amor que nunca virá.
Nessa economia de produção que falava, Garrel é o artesão/marceneiro supremo. Nada está a mais. De filme para filme, a maré do que poderia estar “a mais” recua sempre, os cenários são os mínimos, as cenas cada vez mais precisas. Tudo o que é do drama convencional – mortes, gravidezes, desencontros, abortos – acontecem de súbito, em off. Em Le Sel des larmes parece que o realizador francês tem prazer em fazer chocar as personagens entre si, bolas de pinball jogando o jogo das combinações possíveis. Mas o verdadeiro prazer é o de as ver reagir a esses acontecimentos ilididos, reacções que podem ser tardias, rimas que ficaram por fazer, mas que configuram parte do que é viver entre o prazer e a decepção. Decepção que é também por vezes a nossa, pois o herói garreliano é impulsivo e normalmente não perde uma oportunidade de se enrodilhar mais e mais (mesmo que seja uma acção que nos pareça censurável), desde que isso lhe permita uma nova sensação.
Uma das coisas mais bonitas neste filme de Garrel é que ele não tem medo da contradição. Ou melhor, contradição que é um nome para remover do pensamento a complexidade da existência. Não há final mais triste do que o de Le Sel des larmes: um filho a quem lhe morre um pai, um desencontro final, uma porta fechada e nem o conforto de um céu onde ele poderá estar. Esse tempo do “não estar mais lá” e da remoção, é ainda o mesmo tempo do “estar todo aí”, dos corpos bonitos e jovens, ardentes de desejo, que víamos cenas antes dançando, fazendo carpintaria de corpo e tensão. É a garrel land dos abraços, dos toques, dos enganos, dos esquemas para se sentir mais e melhor, com uma regra apenas: tudo é passível de ser vivido, todas as combinações são válidas.
E essa vida em primeiro lugar faz de Le Sel des larmes um filme inquietantemente belo e agora distante. Uma obra de presenças em que a reafirmação do romantismo da nouvelle vague parece hoje, 2020, máscara metida na fuça, um outrora estranho, de assalto a distâncias de segurança.