
Nas últimas semanas têm estreado alguns títulos bastante mediáticos, casos do português Listen (2020) de Ana Rocha de Sousa, multi-premiado no Festival de Veneza, mas que não parece ter convencido os walshianos (algumas das razões são abordadas nesta correspondência); Borat Subsequent Moviefilm (2020), a nova aventura de Sacha Baron Cohen que reúne algum consenso positivo; The Nest (2020), de Sean Durkin, que para já tem encantado; o novo filme de Philippe Garrel, Le Sel des larmes (2020), que deixou as opiniões mais divididas; The Nest (O Ninho, 2020) de Sean Durkin; e o novo filme de Aaron Sorkin, The Trial of the Chicago 7 (2020), que parece ter desapontado. Além disso, outras estreias são alvo de pequenas notas nas linhas que se seguem.

Era precisa uma nova adaptação de The Witches, de Roald Dahl, depois da versão de Nicolas Roeg, com Anjelica Huston, do idos de 1990? Na verdade, não. Mas tomara que todas as reciclagens contemporâneas de títulos das décadas de 1970 e 1980 (espremendo a teta da economia da nostalgia) fossem tão limpas como esta, realizada pelo único tarefeiro escorreito que ainda resta no sistema de estúdios de Hollywood, Robert Zemeckis. A elegância do seu olhar transparece ao longo de todo o filme, apesar das cores histéricas que a Disney impôs como imagem de marca a todo e qualquer universo de fantasia familiar e, também, apesar da omnipresente tecnologia de animação digital, o dito CGI. Zemeckis é, talvez, o último defensor (comercial) de um humor que advém do que acontece em plano fixo (Jerry Lewis!), a partir do jogo entre diferentes níveis de acção que se repartem entre diferentes profundidades de campo. Veja-se, por exemplo, o momento em que o exterminador de ratos visita o quarto de hotel enquanto o menino-rato-glutão não consegue resistir a uma baga de uva. Ou a longa pausa que se segue ao início de (Sittin’ On) The Dock of the Bay, de Otis Redding, a tocar no gira-discos. Foi a partir da pureza destas formas dramatúrgicas que se construiu todo o discurso da política dos autores, cristalizado na noção de mise en scène. Zemeckis entende tudo isso a partir do silêncio discreto em que encena os momentos mais tocantes (e mais divertidos) do filme. A sua realização não confunde visão com virtuosismo vistoso – coisa que se vem tornando rara.
Ricardo Vieira Lisboa, 3 de Novembro

O filme de Marília Rocha representa muito do ar dos tempos, e nesse sentido as suas duas actrizes e a sua encenação documenta melhor uma juventude à deriva sem saber o que quer (nem o que não quer), sem grandes objectivos, desiludida, anti-utópica, aborrecida, tentando prolongar um enfezada inocência infantil para a idade adulta, do que qualquer possível documentário tradicional. Aliás, é na própria deriva do filme por territórios fluidos e híbridos da doc-fic (ou do fic-doc) que melhor se encontram as suas personagens, elas mesmas também perdidas entre territórios (literalmente, dada a sua condição de emigrantes portuguesas no Brasil) e entre culturas e formas de ser. Um dos pormenores mais delicados do filme passa pelo modo como toda a narrativa é solta e meio sem-propósito. Vagueante. Uma flânerie narrativa apenas ancorada a duas mulheres: uma introvertida que encontra defeitos em tudo o que a rodeia, e outra, deslumbrada com os defeitos do mundo e portanto saudosa de não os poder abraçar todos de uma vez. A forma como os diálogos surgem em ritmos estranhos, com enormes silêncios entre as palavras e as deixas, mostra, de forma subtil, como evitar o típico sobrecarregar da banda de som. A juntar a isto, a qualidade leitosa da luz que perpassa o filme, numa calma apaziguante que tem o dom de evidenciar o desespero sem nunca o sublinhar, e tem um efeito reconfortante. Neste sentido A Cidade Onde Envelheço fala, sem falar — como nas conversas de amigos —, sobre uma geração; ele próprio feito (anti-)manifesto de um movimento sem rumo, sem cabeça e sem vontade.
Ricardo Vieira Lisboa, 29 de Outubro

Depois de vermos todas as mortes, crimes, suicídios, vinganças, que este The Devil All The Time (2020) tem para nos ofertar creio ser de bom tom perguntarmo-nos se será Antonio Campos um realizador nietzschiano. Não que estas duas horas e vinte sejam a apologia do niilismo, mas antes uma reversão – ou melhor, um vai-e-vem moral – entre a sociedade americana cristã do pós segunda Guerra Mundial, regida pela Bíblia e seus ditames, e uma latência da acção do mafarrico, pejada de sangue, dor e pecado que vai dar à Guerra do Vietname. Campos diverte-se a construir esta teia na qual as suas personagens passam através de uma ideia de bem e moralidade e, para lá dela, encontram o mal e a tragédia. Shotgun Stories (Histórias de Caçadeiras, 2007) de Jeff Nichols vem à memória, bem como o grotesco sulista de Flannery O’Connor ou o violento evangelismo dessa obra-prima chamada There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007) de Sr. Paulo Tomás Anderson. Claro que no meio de todos estes filhos do senhor – tarados, violadores, doentes, suicidas, pregadores, inocentes, vingadores – a acção corre lesta, a voz off ajuda, mas sente-se por vezes demasiadamente à vista esse esquema da morte a invadir, jogada a jogada, o xadrez de Campos. É, contudo, uma obra importante para compreender essa cegueira religiosa e a repressão dos instintos numa sociedade comunitariamente casta e “boa”.
Carlos Natálio, 28 de Outubro

Se o filme anterior de Anna Muylaert, Que Horas Ela Volta? (2015) existia no terreno típico da telenovela, aqui a realizadora, embora abraçando também um enredo de forte carga emocional e comentário social, procura utilizar uma nova linguagem. Muylaert deixou-se inspirar pelo caso verídico do sequestro de uma criança, ocorrido em Brasília em 1986, contando-nos a história de Pierre, um adolescente que vem a descobrir que a sua mãe é, na verdade, sua sequestradora. Segue-se o difícil acolhimento por parte da família biológica, reforçado pela estranheza da procura de laços próximos com uma criança que já não é criança. Mas se no filme anterior o resultado era competente, já em Mãe Só Há Uma, embora haja a tentativa de pisar terrenos mais arrojados, veiculando um olhar actualizado sobre os dramas da adolescência, não podemos deixar de sentir que o filme falha nos seus propósitos, nunca se aproximando o suficiente das suas personagens a ponto de nos deixar sentir-lhes o pulso e caindo, por vezes, no grotesco. E assim se perde, por exemplo o impacto de uma das estratégias inteligentes do filme, que passa por ter a mesma actriz a desempenhar o papel da mãe adoptiva e da mãe biológica. O filme acaba por ser melhor nos momentos em que as personagens saem do seu torpor, como sucede no simples acto de partir a loiça para soltar a raiva.
Daniela Rôla, 15 de Outubro

O contexto político e social que produz Antebellum é por demais conhecido: o re-acendimento (se é que alguma vez se extinguiu essa brasa) das tensões raciais, com o crescimento dos movimentos nacionalistas brancos e a revolta dos movimentos de libertação negros. Parece-me, no entanto, que o contexto cinéfilo dos realizadores é igualmente relevante: o filme corresponde ao produto aritmético de The Village (2004) com 12 Years a Slave (2013), a dividir pelo revisionismo pop de Quentin Tarantino. O resultado é portanto hiper-previsível, já que aqui só se trabalha a aplicação competente de fórmulas já bem estudadas (quase sempre numa estética anónima de série televisiva mas sem o desenvolvimento de personagens destas – o discurso “político” da personagem de Janelle Monáe é embaraçosamente bacoco, composto por uma aglutinação de termos avulsos). Talvez o interesse maior do filme de Bush e Renz se prenda na forma como se deliciam (e isso é palpável) no exercício da reconstituição histórica, com uma câmara que filma como quem mostra/demonstra. O início do filme é disso bem exemplificativo: um enorme plano sequência que percorre uma propriedade sulista pré-Guerra Civil, da mansão à plantação de algodão, isto é, das crianças brincando no baloiço às costas suadas e vergastadas dos escravos. E aí, na forma como os realizadores até terão recuperado a mesma lente usada para filmar Gone with the Wind (1939), que se revela uma subtil perversidade no retrato do sofrimento esclavagista. O gozo da violência e do ódio como matriz constitutiva da América – à imagem de Inglourious Basterds (2009), Django Unchained (2012) ou The Hateful Eight (2015) – revela-se, aqui, na sua forma mais pura, porque aparentemente inconsciente (e terrivelmente “bem intencionada”). Olho por olho, dente por dente.
Ricardo Vieira Lisboa, 15 de Outubro

A indústria norte-americana parece ter reagido ao movimento feminista digital #metoo com um reforço das protagonistas femininas em filmes de acção. Como se costuma dizer, a um homem com um martelo, todos os problemas se parecem com pregos. Não compreendendo necessariamente a crise do cinema de acção popular, os estúdios apostam em filmes de pancadaria de baixo orçamento mas com uma cartada pseudo-política pela representação e emancipação das mulheres. Veja-se como, no espaço de poucas semanas, estreiam nas esvaziadas salas portuguesas, além de Ava, The Old Guard (2020, Gina Prince-Bythewood), Rogue (Selvagem, 2020, M. J. Bassett), no encalço dos recentes sucessos de Luc Besson, Lucy (2014) e Anna (2019). Agentes especiais, espias, ex-militares, alterações genéticas ou o consumo de cocktails experimentais para aumento de desempenho são os panos de fundo onde dançam, de G3 em riste, mulheres lutadoras e decididas que têm dificuldade em manter uma estabilidade familiar ou relações de longa duração. Alegorias (simplistas, naturalmente) sobre a mulher moderna, assoberbada pelo trabalho e por tudo o resto que se espera dela. Dos cinco título citados, o melhor é, certamente, Anna, que descobre na duplicidade palindrómica da identidade e do desejo uma saída dos espartilhos morais do amor, da precariedade laboral e das expectativas de género. Ava, pelo contrário, cai rapidamente num dramalhão telenovelesco, ou não fosse Tate Taylor o mesmo realizador de The Help (As Serviçais, 2011).
Ricardo Vieira Lisboa, 6 de Outubro

Chamado a comentar Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990) de Oliveira, no documentário de Ariel de Bigault, Fantasmas do Império (2020) João Botelho a certa altura sai-se com esta frase que me tinha vindo a rebolar na cabeça: “porque o cinema são ideias”. O cinema de Botelho, e como exemplo, esta sua adaptação de Saramago mostra bem essa veia cerebral do seu cinema. Por um lado, é uma obra tributária dos escritores, na medida, em que procura escrever entre linhas, ser-lhes fiel, introduzir-se numa linha de artistas que, como eles, reflectiu os destinos portugueses. Por outro lado, emerge, da pior maneira, uma certa dimensão do interesse de Botelho pela história, suas referências e reconstituição. Se é certo que existe um filme noir metido ali dentro [e que mesmo com boa vontade, começamos a imaginar Pessoa como um Sjöström em Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957) ou Reis como um Fonda em Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança, 1939)] o realismo fantástico tem o condão de chamar Jeunet, ou as inúmeras cenas de leituras de jornal, o pior da melancolia tuga de uma série como Conta-me Como Foi. E neste desequilíbrio vemos emergir a teatralidade dos diálogos. E também a atenção às “ideias” que têm como principal problema esvaziar as personagens e insuflar cada cena de uma ambição historicista. Como se o apaixonado pela História Botelho, comandasse a psyche do cineasta Botelho.
Carlos Natálio, 6 de Outubro