“Acho que gostava muito de ti como realizador. E acho que vais passar um mau bocado por minha causa.” As palavras de despedida de uma das personagens femininas de Haebyeonui yeoin (Mulher na Praia, 2006) têm o sabor agridoce que me parece prevalecer em qualquer filme de Hong Sang-soo. Espécie de mal-estar confortável que puxa sempre a obra seguinte. Aqui, Mun-suk (Go Hyun-jung) fala ao telefone com Jung-rae (Kim Seung-woo), o realizador com quem teve um breve caso amoroso, e sem contemplações, mas com um grão de meiguice na voz, identifica a angustiazinha masculina dominante. A saber, Jung-rae vive numa relação obsessiva com a imagens. Mais especificamente, ele, que estava preso à imagem-fantasma de uma traição da ex-mulher, encontrou ainda noutra mulher a imagem idêntica de Mun-suk, numa verbalizada semelhança física que o espectador não consegue acompanhar. Ou seja, elas não são parecidas, mas é como se a imagem feminina tivesse um feitiço inexplicável. Esse que certamente o vai fazer passar um mau bocado depois de tudo ter terminado. É a maleita das imagens.

Haebyeonui yeoin tem lugar numa estância balnear meio deserta em época não estival. Começa com Jung-rae a convencer um amigo a acompanhá-lo até lá, e este, concordando, leva consigo Mun-suk, que surge primeiro como sua namorada, embora o equívoco do predicado se resolva com um momento de embaraço que abre a porta ao interesse romântico do realizador. Este último, a atravessar um bloqueio criativo, tenta trabalhar no argumento de um novo filme. Uma ideia que chega a expor aos outros dois e que ela se apressa a elogiar, mesmo não tendo entendido bem a explicação. “Tem muito jeito com as palavras. Gosto de pessoas eloquentes”, diz, já encantada pelo realizador que projecta imagens no ar enquanto passeiam na praia vazia e cinzenta. Ele, por sua vez, tem mais prontidão em elogiar-lhe as pernas.
Estes dois modos de apreciação masculino/feminino criam uma dinâmica própria: ela deixa-se seduzir pela forma de pensar dele (pelo filme dentro da cabeça, enfim, pelo “realizador”), e ele encaixa a beleza dela numa misteriosa procura de imagens. Em Hong Sang-soo isto liga-se, naturalmente, ao comentário humorístico que se faz à masculinidade sul-coreana, de resto, bem patente numa das cenas em que Mun-suk refere as suas aventuras com homens ocidentais, quando estudou música na Alemanha, acabando mesmo – mais tarde – por assumir que não respeita lá muito os homens sul-coreanos. Já Jung-rae não consegue apagar a imagem mental de Mun-suk a dormir com estrangeiros…
Há uma precisão admirável neste filme. Um laço etéreo entre as palavras e a forma, as ideias e as imagens.
Dividido em duas partes, com um separador que indica a passagem de apenas dois dias, Haebyeonui yeoin vai permanecer na visão daquela praia invernosa que testemunha o romance com a outra mulher “parecida” com Mun-suk. “O meu cinema assemelha-se ao processo de conhecer pessoas”, dirá o realizador-personagem de outro Hong Sang-soo, Ok-hui-ui yeonghwa (O Filme de Oki, 2010). E é, de facto, esse processo que alimenta o jogo das variações, a coreografia de contextos e conversas até que, neste caso, tudo se resuma à imagem de um passeio na praia a reverberar formas de encontro e de solidão (não é esta última que define também a circunstância de Joan Bennett no homónimo The Woman on the Beach, de Jean Renoir?).
Assim como as praias de Agnès Varda são cenário para a projecção de memórias, as praias de Hong Sang-soo – de Bam gua nat (Noite e Dia, 2008) a Bamui haebyun-eoseo honja (Na Praia à Noite Sozinha, 2017) – figuram como paisagem ideal para pôr os pensamentos em ordem ou agarrar efémeras fantasias noturnas. É isso que acontece em duas das cenas doces de Haebyeonui yeoin: uma quando Jung-rae leva Mun-suk para o breu do areal húmido com a intenção de lhe dar o primeiro beijo debaixo das estrelas (que não vemos, porque a câmara só escolta o diálogo, mas são o assunto principal), a outra quando a ocasião se repete com a cópia certificada dessa primeira mulher e os dois gritam “Amo-te” para o mar fora de campo.
Há uma precisão admirável neste filme. Um laço etéreo entre as palavras e a forma, as ideias e as imagens, que, desde logo, corresponde ao que Jung-rae afirma quando tenta apresentar o seu argumento idealizado ao amigo e a Mun-suk. Diz ele que “as pessoas só acreditam em coisas muito sólidas”. Ora Haebyeonui yeoin (felizmente) não é um filme-corpo. Assume-se antes na ligação de pequenas coisas, em motivos internos, numa lógica de composição musical e, sobretudo, na suave reminiscência feminina à beira-mar.
Haebyeonui yeoin (Mulher na Praia, 2006) está disponível na plataforma Filmin. Descubra outros filmes da filmografia de Hong Sang-soo na mesma plataforma, aqui.