A imagem imóvel, agitando os fantasmas da fotografia, será sempre “um outro” no reino do cinema. A paragem representa esse saque primordial, roubando ao cinema o seu quid, o movimento, e conferindo-lhe uma espécie de “efeito de morte” lançado à eternidade. Perante saques desta natureza, quase que apetece exclamar: “o cinema morreu! Viva o cinema!” Mas se exerço essa prerrogativa do – já não tão novo assim, oh cara Laura Mulvey! – “espectador possessivo” e paro a imagem de um dos últimos planos de The Other (O Outro, 1972), obra repleta de figuras de espanto que nos fazem sentir na espinha o fantasma da fotografia, faço-o com um sentido múltiplo: uma obra toda ela sobre “o outro” ausente-presente – Susan Sontag falava da imagem fotográfica como pseudo-presença… – é assim interrompida no seu fluxo de imagens, sendo-lhe imposto uma espécie de parto violento.

O produto desse esforço é, então, o “diabólico” fotograma. Esta imagem, fixa, interpelante, é, estava a tentar dizer, duplamente profanante: não só “pára” o movimento de um filme sobre duplos, sombras e o trauma – o trauma do duplo e o trauma da sombra – como interrompe o movimento da câmara que parece não parar um segundo quieta de Robert Mulligan. Mulligan foi o mestre das panorâmicas, tendo encontrado a sua assinatura autoral na constância de planos inconstantes, que ora vão da esquerda para a direita, ora da direita para a esquerda, ora em movimento para a frente, ora movendo-se para trás, tirando partido do carril da dolly ou do ligeiro zoom. Não interessa especificar demasiado: em Mulligan, tudo é movimento e, em particular, neste filme governado pelas movimentações pendulares de uma criança que alucina o seu irmão gémeo morto (ambos interpretados com uma entrega notável pelos gémeos na vida real, child actors que misteriosamente se eclipsaram, Chris e Martin Udvarnoky). A liberdade de movimentos da(s) criança(s) não conhece qualquer freio aqui (a morte não impede que um brinque com o outro), pelo que tudo “vai e vem” entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A indistinção entre os planos da existência faz-se em regime pendular. O que importa é não parar, não dar sossego para que essa distinção – muito “lá deles, dos adultos” – não dê de si e venha reclamar a condição estável da realidade comummente percebida e vivida. A câmara de Mulligan é intempestiva, por isso, o meu exercício de paragem, que seria sempre profano, é-o ainda mais neste caso, porque, como seria quase inevitável, não só na imagem paro o “andamento” do filme – vertendo-o aqui, neste texto polvilhado de stills idênticos – como interrompo um dos vários planos movediços que o enformam.
Isolo no filme e no movimento da câmara uma figura de espanto que me tem assombrado desde que dei de caras com esta obra-prima escondida – bem enterrada! – dos seventies. Foi na Cinemateca Portuguesa, na sala Félix Ribeiro, no passado ano, “entre confinamentos”, que vi e nunca mais me esqueci deste plano, mas foi fundamentalmente este instante congelado (por mim, na minha cabeça, “sem flash visível”) que me fez quase “saltar da cadeira”. Constituiu para mim um autêntico “choque eléctrico” aperceber-me que o protagonista estava, afinal, vivo. Ao mesmo tempo – sobreposição de questões que tornam o peso sobre a imagem desse instante perto de insustentável – interrogava-me: “mas quem é o ‘eu’ que sobreviveu ao incêndio que – sugeria o filme – iria pôr termo ao desenrolar de uma tragédia tingida pela mais doce ternura de infância? Foi Niles quem sobreviveu ou foi Holland? Foi Niles quem sobreviveu fazendo-se imagem (imago, duplo) do falecido, Holland? Enfim, quem raio está à janela, afinal?”
Como na fotografia, há o positivo e o negativo. Isto é, o gémeo bom e o gémeo mau? Não sei, só sei que um vive no mundo da alucinação – o segundo, Holland – e o outro (supostamente) no mundo tangível, em que as acções produzem efeitos irreversíveis (o mais irreversível, claro, é a morte) – caso do primeiro, Niles. Há um momento significativo em que Holland, vindo do reino dos mortos, chama por Niles. E este último, mesmo nesta altura ciente de que está a ser assombrado pela “imagem” do irmão, que lhe é perto de idêntico na aparência, deixa-se levar pelos apelos de uma sombra. É literalmente uma sombra que chama por ele. Só depois a câmara deslizante de Mulligan nos dá a ver Holland, em contra-campo.
Isto tudo faz-me lembrar a investigação que dura há décadas da artista visual Lourdes Castro sobre o mundo das sombras. Dizia ela, numa conversa realizada em 1970, e colocada online nos preciosos RTP Arquivos, que não sabia explicar o motivo por que gostava tanto de sombras; que talvez gostasse delas por serem habitualmente esquecidas e não falarem. Em certo sentido, o trabalho de Lourdes Castro presta-se a ouvir o esquecimento a que as sombras, esse mundo “duplo”, negativo do nosso, parecem estar votadas. O género pré-fotográfico, bem popular nos séculos XVIII e XIX, das silhuetas apresentava também esse potencial: o recorte do rosto, oferecendo à eternidade nada mais do que o seus contornos, era eloquente a capturar o essencial do retratado. Lourdes Castro, nessa mesma conversa gravada para a televisão, também diz que, para seu espanto, os bordados que produzia em torno dos contornos das sombras de amigos revelavam tanto ou mais dos retratados do que uma fotografia. As silhuetas, como as sombras que se projectam no chão ou nas paredes a partir do nosso corpo (cinema do corpo, da matéria que “nos persegue”, que “não nos larga”, e que por isso é movediço…), contêm essa virtualidade: dão tudo sobre nós, capturando apenas os nossos contornos, isto é, pondo em evidência quase nada.

Talvez a silhueta-sombra mais famosa da história do cinema seja a de Alfred Hitchcock. Para muitos, a assinatura sob a forma do seu perfil anafado, de nariz e bochechas proeminentes, captura a essência do sentido (auto-)irónico e ao mesmo tempo a “presença de peso”, inconfundível, desse metteur en scène. Em cada filme, esconde-se, literalmente, a presença de Hitchcock – sabemos bem – mas o que essa presença representa é a tal ideia de assinatura, de, para voltarmos à nomenclatura fotográfica, imprint ou mesmo “impressão digital” sobre o mundo dos filmes que realizou. Enfim, podemos dizer que a assinatura, desenhada no contorno do perfil de Hitchcock, representa a verdadeira entronização do cineasta como autor dos seus filmes. Como se exclamasse, bem de dentro, aquilo que de modo coloquial muitos de nós, espectadores maravilhados, dissemos face a uma obra de Hitchcock: “é a cara dele!”
Ao mesmo tempo, o cinema de Hitchcock está repleto de histórias de sombras, duplos ou “jogos de aparências”. Talvez aquela que sintetiza melhor tudo o que aqui estou a tentar explanar pertença a Psycho (Psico, 1960), obra de absoluta viragem na história do cinema de Hollywood, em que uma equipa de televisão – habituada a rodar episódios para a série Alfred Hitchcock Presents (1955-1962) – pôs mãos à obra para filmar um thriller em que a primeira morte estava reservada à única star do elenco. “[O] assunto pouco me importa, as personagens pouco me importam (…) Psycho foi o cinema puro”, disse Hitchcock na célebre entrevista conduzida por François Truffaut. Quem assassina essa star que “pouco importa” é uma silhueta viva (avatar mais perfeito do cinema, “o que importa”), uma sombra de faca em punho que faz sangrar o corpo despido da actriz na banheira como um porco suspenso num chambaril. Víramos antes essa mesma “figura”, ao longe, em contra-luz, por uma das janelas da mansão onde (aparentemente) viviam Norman Bates e a sua mãe. A figura que aparece à janela parece ser a mesma figura que assassina Janet Leigh cruamente na casa de banho. E esta é distintamente feminina, apesar de não descortinarmos feições, de esta não passar, num nível estritamente fenomenólogico, de uma sombra animada (Lotte Reiniger para adultos? É mais ou menos isso).
O mistério da sombra à janela voltou a assombrar-me naquele momento decisivo inscrito na panorâmica do filme de Robert Mulligan? Talvez, porque o grande trauma em Psycho parte da cisão, que verdadeiramente nunca se resolve na nossa cabeça, entre a sombra que manda e o homem que acata ordens – ou será ao contrário? A janela também é essa “moldura” que marca territorialmente o espaço dramatúrgico, entre um “lá dentro” e um “cá fora”. Nós olhamos de fora para dentro, de baixo para cima, e o que vemos? Alguém, indistintamente. Sabemos – sentimos – que esse alguém importa e é poderoso para lá dos nossos wildest dreams.
É aquela dúvida miúda e penetrante – “será ao contrário?” – que transforma o filme de Mulligan num dos contos mais negros sobre a infância. Tudo nele brilha, tudo nele é movimento, mas tudo vai sendo tomado – atraído, leve e airosamente – pelo jogo macabro da morte. Niles gosta de jogar um jogo especial com a sua querida avó russa (papelão de Uta Hagen). Ela diz para ele olhar para um corvo, fechar os olhos e concentrar-se. O rapaz concentra-se tão intensamente que se dá um transfert da sua subjectividade para a subjectividade do pássaro. Quando a avó se apercebe da condição do neto, notando que este julga de facto partilhar as suas brincadeiras e “jogos interditos” com o irmão falecido, uma tese parece ganhar forma na sua consciência: será que a culpa é daquele jogo especial?
Sabemos como não é a sombra mas o espelho a protagonizar, nos primeiros anos da nossa vida, a cisão essencial que nos permite distinguir o nosso corpo do corpo dos outros, começando, claro, pelo corpo da nossa mãe. A fase do espelho, naturalmente, foi mal conseguida por parte de Norman Bates. Apetece dizer que, em The Other, temos uma “fase da sombra” que torna irredutível a ligação de um irmão a outro, de um “eu” ao outro mais idêntico, entre um “ser” e um “parecer” que se misturam, lançando a confusão sobre supostos planos distintos da realidade. O jogo “projectivo”, digno “efeito do cinema”, levou, de facto, a que Niles reanimasse a subjectividade do irmão quando se confrontou com a imagem do seu corpo no caixão. Holland não é igual a Niles, ele nunca deixa de ser uma entidade diferente, com uma personalidade própria (repetimos: pode não parecer, mas são ambos interpretados por dois gémeos reais, papéis que figuram entre os mais prodigiosos levados a cabo por child actors). Ele é como uma sombra com vontade própria: essencialmente parecido, mas existencialmemnte “outro”.

Quando nós, espectadores, como, aliás, a avó no filme, nos apercebemos que a querida personagem de Niles participou em tantos jogos nefastos, voltamos à imagem do rapaz, atirando sobre ela, em jeito acusatório: “Foste tu! Quer dizer, foi o teu ‘outro eu’ quem causou esta e esta morte!” O problema é que o “outro eu” é o “eu do outro”, um “eu” que é tomado ou que se deixa tomar – algo de moralmente mais gravoso – pelo tal “outro eu”. Se Norman Bates se mascarava de mãe, deixando-se subjugar à própria máscara, aqui Niles projecta-se no irmão Holland, escondendo-se atrás dele, nos crimes que comete, como se fosse a sua sombra. O horror dos actos de Niles, sombra viva do irmão morto, torna-o irremediavelmente responsável face à lei da moral, pelo menos aos olhos da avó. Talvez por isso eu esperasse que Niles, quer dizer, “Niles por detrás de Holland”, não pudesse sobreviver ao incêndio provocado por um acto quase bíblico de sacrifício levado a cabo pela avó, a grande figura materna nesta história (já que a mãe de facto cedeu há muito ao além da loucura mais plana).
Revisitava o instante através do tal “decisivo congelamento” e ocorria-me outro filme marcado pela imagem da janela e cindido por um trauma desencadeado no período da infância: Mystic River (2003) de Clint Eastwood. Este filme, se o leitor se recorda, começa em modo de conto infantil sombrio, como uma nova versão da história do capuchinho vermelho e do lobo mau. O lobo ou os lobos são, na realidade, os homens que sequestraram um dos três amigos entretidos a jogar hóquei numa rua de Boston. Dave, o infeliz “escolhido”, acabou por ser abusado durante quatro dias seguidos, até que arranjou forma de escapar. Ele conseguiu escapar do inferno mas o inferno não se escapou dele. O título brasileiro do filme é feliz no sentido em que põe a tónica no drama contido neste episódio que abre – como uma ferida – a narrativa, um dos últimos grandes melodramas de todo o cinema americano: “Sobre Meninos e Lobos”. Nunca me esqueci desse estrondoso mas breve plano em que os dois miúdos poupados pelos raptores vêem um regressado a casa Dave, a partir do passeio, detectando a sua figura (a sua sombra) à janela – de novo ela, a janela, e de novo ela, a silhueta ou a sombra reveladora, mostradas em contra-picado. Dave regressou tomado pela sua sombra, pelo fantasma da culpa e da dor. A sua sombra, vista assim à distância, transmitia eloquentemente todo o sentimento a partir do qual corria o rio gelado de Mystic River.
O menino que está à janela em The Other não é uma silhueta, dir-me-ão. É verdade, mas Niles é também uma criança que não se reconhece, que não reconhecemos mais – e, contudo, parece que nunca reconhecemos tão imediata e estrondosamente -, quando a vemos à janela. Todos os horrores conduziram até essa imagem e pertencem à mesma linguagem de fábula atravessada pela dor inescapável associada ao tal mundo ditado pelas regras dos adultos. Em The Other, o mito circula, premonitório, sob a forma de conto para crianças, inclusivamente narra-se, no filme, a história de duendes cruéis que substituíam recém-nascidos por crianças de aparência tão horrenda que os seus pais acabariam por rejeitá-las. O mito encadeia realidade e alucinação contra as precipitações e crueldade do mundo dos adultos. Na amizade com a sombra ou o fantasma, a criança encontra o refúgio possível. Talvez nele ou com ele, o brilho da infância não se extinga totalmente.
Pelo menos em mais dois outros filmes de Mulligan, descobrimos o mesmo fascínio pelo território da infância ou pelo início da adolescência, paisagens mentais que são manchadas indelevelmente pelo acontecimento da morte. Summer of ’42 (Verão 42, 1971), filme já repleto dessas tais voluptuosas panorâmicas e eivado do brilho associado à eufórica descoberta do sexo na puberdade. Esse brilho é interrompido pela irrupção do trágico na vida do protagonista; pela decepção mais cruel e inexplicável provocada pela notícia de uma morte que vem de longe, do palco da guerra. O amor de Verão radiante é convertido numa história rumorejante, solene como um luto, sobre o processo de iniciação na (dura) realidade da idade adulta. No derradeiro filme de Mulligan, The Man in the Moon (O Homem da Lua, 1991), com Reese Whiterspoon, a infância também cintila intensamente no início, mas, perto do fim, numa guinada chocante, acaba atravessada, com um certo requinte macabro, pela decepção mais cruel e inexplicável.
Esta atracção pelo embate mais cruel e até macabro com o mundo estava já bem patente na viagem/experiência profundamente fascinante e perturbante – de panorâmica em panorâmica até à panorâmica final – que consubstancia The Other e que, na minha cabeça, se condensa exemplarmente no dito instante “à janela”, moldura fotográfica que é como um além-vida. Um além-vida que, deste modo, imponho, agora, à boleia deste texto, ao movimento cinemático, voluptuoso, da “escrita” de Mulligan. Eis, enfim, a história da interrupção de uma panorâmica em benefício de um “terceiro sentido” pós-fílmico que torna a fotografia instância de revelação de sentidos profundos. Revelação como “re-velação”, um jogo de esconde-esconde (velamentos) de onde se sai mais vivo ou capaz, finalmente, de ouvir as sombras que nos fazem companhia.
