Este é o primeiro artigo do novo Dossier Diálogos: exploração/ exposição da oralidade no cinema, uma parceria Estado da Arte/À Pala de Walsh.
Pensando em formas de começar este breve artigo, lembrei-me de ter lido, certa vez, estas linhas de Manoel de Oliveira: “(Carl Theodor) Dreyer pressentiu o cinema futuro, pois teve a força de filmar a palavra. Antes dele não se ousava, dizia-se que a palavra era para o teatro. O cinema tinha o papel de mostrar o movimento e o que se via, mas não a palavra. Dreyer superou esta atitude, e vocês veem o que isso proporcionou.” (1).
Uma vez vindas à mente tais palavras, ficou-me claro que a abertura acima tinha de contê-las, não por causa da inegável importância dos filmes falados de Dreyer para o cinema moderno — pois muito já foi escrito acerca disso —, e sim porque elas tocam no ponto de interesse deste texto: a oralidade em Ordet (A Palavra, 1955). Em A Palavra, a oralidade encontra-se na base dos conflitos dramáticos e da mise-en-scène. As personagens conversam entre si, mas nem sempre há comunicação; Johannes (Preben Lerdoff Rye), com sua voz dolorida, discursa, mas é ignorado; e a mise-en-scène, a partir dessa dinâmica proposta pelo texto – adaptado de uma peça teatral de Kaj Munk –, estabelece a posição e performance dos atores, o trabalho de câmara e a relação das personagens com o espaço cênico, entre outras coisas.
Dou-lhes exemplos retirados do próprio filme: Morten (Henrik Malkberg), o patriarca da família Borgen, está sentado à mesa, fumando seu longo cachimbo, e Inger (Birgitte Federspiel), sua única nora, também sentada à mesa, quer tornar o sogro mais simpático à ideia de que o filho mais novo dele (Cay Kristiansen) deseja se envolver romanticamente com uma moça (Gerda Nielsen) cuja família, de sobrenome Petersen, professa um cristianismo diferente do dos Borgen. Enquanto jogam conversa fora, sem que o assunto espinhoso ainda tenha sido abordado, Johannes sai do seu quarto e prevê a tragédia que irá se abater sobre seus parentes, mas nenhum dos dois lhe dá atenção. Morten, depois de colocá-lo no quarto novamente, continua conversando com a nora, até que ela diz finalmente o que pretendia, e ele, sentindo-se traído pelos próprios familiares – que haviam combinado um jeito de convencê-lo –, decide ficar um tempo sozinho em outro local da fazenda.
Nessa longa cena, a dificuldade de conversar sobre a união de duas pessoas de religiões diferentes – um tabu para aquela sociedade de valores rígidos e enraizados – reflete-se nos subterfúgios usados por Inger a fim de deixar Morten mais aberto ao que será dito e nas perambulações deles, que rodeiam pela casa antes da questão central ser, enfim, levantada. Geralmente, eles aparecem juntos no mesmo quadro – às vezes, relacionando-se com algum objeto, como o retrato da matriarca da família, quando falam dela –; em outras, o foco está em Morten ou Inger, de acordo com a predominância momentânea de seus dramas internos.
A total incomunicabilidade, por sua vez, é vista no momento em que Morten reage à impressão de que aquilo que Inger havia feito nos minutos anteriores fora uma espécie de esquema para que ele aceitasse ou visse com melhores olhos o envolvimento amoroso de seu filho mais novo. Já em relação a Johannes, quando ele aparece – com a sua postura distante, como se o corpo estivesse na Terra e a alma, nos céus –, a câmara, que enquadrava Morten e Inger à mesa, movimenta-se, mostrando-o sozinho e à margem dos outros moradores da casa e do que está sendo vivido por eles. Essa lógica visual se repete em mais cenas, pois, embora Johannes ande constantemente para que suas palavras sejam ouvidas, ele é tido como insano pela família, que ora ou torce – no caso de Mikkel (Emil Hass Christensen), que é ateu – pela sua melhora.
De maneira precisa, esses exemplos reúnem, na forma de um microcosmo, quase tudo o que está em jogo em A Palavra: a oralidade como meio de comunicação ou de mal-entendidos; a possibilidade de que ela não seja realmente ouvida, até mesmo por entes queridos; os silêncios e espaços que sua ausência ressalta – quando os personagens se deslocam de um ponto a outro –; possíveis discrepâncias entre o que deseja ser falado e o que é dito por ela; sua capacidade de trazer à tona sentimentos íntimos; e seu poder de determinar toda uma encenação de corpos e almas.
Além disso, também se nota nessa cena – como em outras que aparecem anterior e posteriormente –, no momento em que Johannes é ignorado por Morten e Inger e praticamente calado pelo primeiro ao ser posto de novo em seu quarto, o tema central do filme: a diferença que pode existir entre fé e religiosidade. A religião está muito presente na vida dos Borgen e dos Petersen. Inicialmente, por exemplo, a religião motiva Morten a não aceitar a garota pela qual seu filho está enamorado, porque a família dela acredita em outro tipo de cristianismo. Pelo mesmo motivo, a religião também faz com que Peter Petersen, o outro patriarca, não concorde com o relacionamento dos dois jovens. No entanto, essa religiosidade é incapaz de fazer com que todos vejam no comportamento de Johannes uma manifestação divina. Em certa ocasião, na presença do novo pastor local (Ove Rud), Johannes diz que as pessoas acreditam no Cristo morto e nos milagres de 2000 mil anos atrás, mas não no Cristo vivo, que continua operando atos miraculosos. Em outras palavras, pode-se dizer que aquelas pessoas acreditam no que leem nos textos sagrados, mas não no que ouvem quando Cristo manifesta-se à sua frente.
E é justamente na potência da Palavra dita, vibrante como cordas vocais e infinitamente maior do que qualquer credo formado a partir dela, que reside a essência dessa obra-prima de Dreyer. Após a amorosa Inger morrer, deixando todos profundamente desamparados, uma de suas filhas pede a Johannes – o qual, sem sinais de “loucura”, havia dito anteriormente que ninguém tivera a ideia de pedir a Deus para Inger ser ressuscitada – que ele a reviva. Vendo aquela fé livre de qualquer concepção religiosa cínica – a criança, a melhor do reino dos céus –, ele pede, em alto e bom som, que Deus lhe dê de novo a Palavra, ou seja, o poder de ressuscitar. Como resultado, Inger ressuscita. E, assim,um milagre acontece, a fé de todos é renovada, a morte dá lugar à vida e Dreyer filma o momento mais belo da história do cinema, um que transcende a celuloide.
Pois – e, aqui, para finalizar, tomo a liberdade de recorrer a estas palavras de João Bénard da Costa, que, embora escritas, ecoam em minha memória como se eu as ouvisse -: “No cinema não há nada mais fácil do que conseguir um milagre. Todos sabem que a atriz que está a fazer o papel de Inger não está morta e que ressuscitá-la depende apenas de uma ordem do realizador. Mas o prodígio daquela mise en scène (desde a composição dos planos à sua iluminação) é fazer-nos acreditar que, na verdade, vimos um milagre e vimos um corpo morto ressuscitar em toda a glória da vida. Na mais clássica das planificações torna-se evidente para nós a promessa de Cristo. ‘Se um dia, com verdadeira fé, disseres àquela montanha que se mova, a montanha mover-se-á.’ As montanhas nunca se moveram, como os mortos nunca ressuscitaram (a não ser no “caso especial” de Cristo também evocado no filme). Vi isso acontecer (e é, sem dúvida, o mais pasmoso dos milagres) neste filme. Se me disserem que é cinema eu respondo que não é, não” (2).
Miguel Forlin, crítico de cinema e colaborador de diversas publicações na área.
Notas
- https://estadodaarte.estadao.com.br/foco-elogio-a-gertrud/
- http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-ordet.htm
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.