Tem dias em que a linguagem é sentida como se fosse uma jaula, da qual gostaríamos de escapar ultrapassando os limites das palavras e penetrando em algum reino oculto supra verbal, onde tudo fosse ao mesmo tempo intuitivo e misterioso, contemplativo e sensorial, livre e envolvente. Dessa jaula não se escapa a não ser por meio das artes (ainda que também atreladas às suas respectivas linguagens), especialmente em tempos de comunicação saturada.
Como em Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999), em que o diálogo é proscrito por uma realidade secreta paralela, o cinema oferece um vislumbre dessa lanterna mágica ao mesmo tempo que interpela o espectador, solicita uma garantia de atenção plena, questiona o conhecimento do código: seja Fidelio, Rosebud ou outra que tivermos aprendido, ainda é uma palavra que precisa ser pronunciada para que se abram as portas desse castelo fascinante e aterrador. Outras vezes nos deparamos com alguma frase lapidar que encerra um universo inteiro em si, batendo a porta bem no nosso nariz: “Forget it, Jake, it’s Chinatown”; ou nos colocando diante de um espelho a dialogar com nossa própria alienação (“You talking to me?”); ou, quando a nostalgia é irresistível, “We’ll always have Paris”.
O som dos diálogos talvez seja o elemento mais familiar da linguagem cinematográfica, o que ajuda a explicar, por um lado, o seu grande apelo popular (na esteira das radionovelas), como também, por outro lado, a dificuldade que muitos de nós temos em estabelecer uma ligação íntima com os filmes da era do cinema mudo. Quantos de nós, a propósito, já não brincamos a tirar o som de um filme qualquer e observar as imagens estranhamente animadas por uma vida enigmática, cujas figuras humanas parecem mover-se por motivos absurdos, as bocas movimentando-se no vazio? O feitiço do cinema, o seu caráter de sonho, aparece como se exposto pelo avesso, e esse simples exercício lúdico de distanciamento parece retransmitir o estranhamento de volta à realidade; nos pegamos a pensar se, como diz Macbeth, “a vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.” (trad. Beatriz Viégas-Faria)
SEMPRE TEREMOS (ALGUMA) PARIS
Paris, Texas (1984) parte justamente desse esgotamento da realidade: já tendo perdido a fé no espetáculo inútil de som e fúria da vida humana, um homem de expressão idiotizada atravessa o deserto. Mesmo quando for resgatado ao seio familiar, barbeado, alimentado, cuidado e bem-vestido, ainda não ouviremos a voz de Travis (Harry Dean Stanton), ainda não decifraremos qualquer sentido na sua expressão; a sua recusa ao diálogo cria um elemento de estranhamento na realidade circundante, semelhante ao da tecla mute do controle remoto. Durante o processo de retomada da fé nas palavras, há um momento decisivo durante a projeção caseira de um Super-8 com imagens do passado, também elas mudas. Prepara-se o terreno, assim, para o diálogo mais esperado do cinema.
Diferente do caloroso abraço de reconciliação entre mãe e filho, o reencontro de Travis e Jane (Nastassja Kinski) é intermediado por um vidro-espelho, com as vozes ouvidas através de caixas de som, em um cenário temático artificial, numa cabine escura — metáfora do próprio cinema e da nossa condição de espectadores diante da tela. O falso espelho funciona como meio e obstáculo, a um só tempo, de aproximação e de distanciamento, como uma tela que vai conformando a imagem à narrativa e vice-versa; os elementos da cena remetem para as relações entre o espectador e o filme, entre a ficção da narrativa e a realidade que ela espelha, evidenciando a verdadeira magnitude dos segredos, desejos, desilusões, memórias, arrependimentos e esperanças compartilhados entre o espectador e os personagens.
A metáfora da sala de cinema reforça que não é o conteúdo do diálogo o que mais importa, e sim que volta a fazer sentido prestar plena atenção no que alguém diz – e que a história contada por um idiota, cheia de som e fúria, tem um significado inerente à sua própria forma, independente do vazio que assola a realidade.
FAMILIAR AGORA, ESTRANHO ANTES
Nem sempre as palavras são tão graves e decisivas. Pois há dias que se mostram receptivos, quando não francamente fascinados, com o burburinho das palavras e com o calor humano ímpar dos diálogos. Dizia um conhecido rock nos anos 1980/1990: “Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada”; a situação que decepcionava os Engenheiros do Hawaii ao assistir os poderosos na TV pode soar particularmente envolvente diante da tela de cinema: eu presto atenção no que Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson) falam sobre Big Mac enquanto dirigem em Pulp Fiction (1994); ou na conversa errática entre Alvy (Woody Allen) e Annie Hall (Diane Keaton) num terraço qualquer de Manhattan em Annie Hall (1977); eu presto atenção nas provocações afetuosamente rancorosas entre Martha (Elizabeth Taylor) e George (Richard Burton) em Who’s Afraid of Virginia Woolf? (Quem tem medo de Virginia Woolf?, 1966); ou nos flertes dissimulados entre Margot (Amanda Langlet) e Gaspard (Melvil Poupaud) em Conte d’été (Conto de Verão, 1996); presto atenção em tantas conversas ao volante nos filmes de Kiarostami; ou nos eloquentes desabafos das personagens de Almodóvar; e todos eles, de certa forma, não dizem nada, são puro som e fúria, loquazes sombras projetadas numa caverna escura por uma ou duas horas, que passam e nos deixam com uma estranha nostalgia.
Atualmente, é sobretudo na filmografia do sul-coreano Hong Sang-soo que temos visto uma instigante exploração dos diálogos como fator de relação entre a familiaridade e o estranhamento. São recorrentes, por exemplo, as situações que contrastam o sentido de silêncio provocado pela neve e pelo frio com o falatório verborrágico (e geralmente ébrio) dos personagens, assim como são recorrentes as imagens de Kim Min-hee (a magnífica musa do diretor) sentada sozinha numa sala de cinema deserta, após a termos visto sentada à mesa replicando argumentos com interlocutores. Aqui o cinema já não surge como metáfora, mas como o espaço concreto do encontro profundo do indivíduo consigo mesmo – da “soberania da alma solitária”, para usar os termos de Harold Bloom sobre a leitura de literatura ficcional, crítico que apontava Shakespeare como o inventor do homem moderno, por ter aperfeiçoado a arte do solilóquio e do diálogo a ponto de dar forma à consciência moderna, que nunca cessa de dialogar consigo mesma.
Em Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da (Sítio Certo, História Errada, 2015) praticamente todo o conteúdo do filme é repetido, mantendo as situações e alterando apenas as nuances dos diálogos. Mais do que emular uma consciência que dialoga consigo mesma, mais do que provocar reflexões sobre a aleatoriedade dos destinos humanos, sobre a relação entre o acaso e o livre-arbítrio ou acerca da densidade efêmera de cada instante, o que se revela a partir desse recurso é que o cinema talvez seja o meio em que encontramos o melhor equilíbrio entre a tagarelice e o indizível, os dois extremos entre os quais nos debatemos. Se, para o bem ou para o mal, a vida mesma está sempre sujeita a se tornar convencional, o olhar do cinema mostra que mesmo sob a aparente banalidade se esconde um revigorante estranhamento, e que no interior do estranhamento mais inquietante pode haver um convite para sentir-se em casa.
Quando, ao final de Sítio Certo, História Errada, a personagem de Kim Min-hee sai da sala de cinema e se depara com o mundo, este já não parece o mesmo. Uma surpreendente neve recobre o espetáculo humano, tão apaixonante e tão mesquinho, um espetáculo de som e fúria em que o cinema ocupa um lugar privilegiado; um espetáculo em que prestamos atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada – e isso faz todo o sentido.
Lucas Petry Bender vive em Porto Alegre. Escreve sobre cinema e literatura.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.