Júlio César, de William Shakespeare, é uma peça sobre o poder e a insuficiência das palavras. Essa afirmação essencialmente ambígua reflete a ambiguidade essencial que está no coração da peça: pois, ao abordar o apocalipse civil da República Romana, Shakespeare exercita, de forma talvez não igualada alhures, seu pendor ao ceticismo estético e à equanimidade filosófica. Júlio César nos dá o relato de um universo dilacerado pelo confronto de facções políticas irreconciliáveis – e em momento algum de seus cinco atos podemos dizer com certeza de que lado o Poeta está.
Shakespeare apresenta as ideias, as paixões e os destinos de seus personagens com uma mescla de distanciamento e intimidade (ambos em nível extremo, vertiginoso), como se, ao mesmo tempo, habitasse e desabitasse a mansão do discurso humano – e como se descrevesse, para as mentes de um futuro longínquo, talvez para os próprios deuses, a espetacular confusão e o mistério de ser-se humano. Adaptar às telas uma dança dramática de tão sutil equilíbrio é desafio de titãs. Talvez apenas um diretor fascinado pelo palco e pelas palavras – pela sua força no dizer e no desdizer; pelo que revelam no ato de ocultar, e pelo que ocultam em sua própria revelação – pudesse traduzir em imagens esse jogo de fatalidade e oratória. E, nesse quesito, poucos cineastas de qualquer tempo superaram Joseph L. Mankiewicz – diretor do maravilhosamente palavroso All About Eve (Eva, 1950)[que sempre estará ao lado de Les Enfants du Paradis (Os Rapazes da Geral, 1945), de Marcel Carné, no panteão dos melhores retratos cinematográficos do mundo teatral]. Não por acaso, sua adaptação de Julius Caesar (Júlio César, 1953) é não apenas um triunfo, como um caso de estudo no mundo das adaptações shakespearianas. E já veremos por quê.
Antes, contudo, falemos um pouco mais sobre A Tragédia de Júlio César, peça que William Shakespeare escreveu provavelmente entre março e maio de 1599 e que figurou entre as atrações iniciais do recém-construído Teatro Globe (é mesmo possível que tenha sido o primeiro espetáculo encenado naquele palco). Os fatos históricos que a peça reelabora vêm das Vidas de Plutarco, que o dramaturgo lera na tradução inglesa de Sir Thomas North (baseada, por sua vez, na tradução francesa de Jacques Amyot). O enredo se desenrola em 44 A.C., época em que Júlio César, após uma série de vitórias militares, era o homem mais poderoso de Roma. Para ser rei, de fato, só lhe faltava uma coroa; temendo que suas ambições o levassem a derrubar a República, um grupo de aristocratas conspira para assassiná-lo. Inicialmente, a trama é conduzida pelo “esquálido” Cássio – homem que “lê muito”, “raramente sorri” e “enxerga o espírito por trás da ação” (todas as citações da peça são extraídas de minha própria tradução, publicada pela Penguin Companhia em 2018). Porém a mais importante figura na conspiração é Marco Bruto – amigo dileto de César e talvez seu filho bastardo. É ele quem desfere a facada final, nos Idos de Março (Plutarco diz que César foi apunhalado 23 vezes, mas Shakespeare arredonda o número para 33). Outro personagem crucial é Marco António, que se mantém fiel a César e jura vingar sua morte – embora, inicialmente, tenha de fingir resignação, para não ser ele próprio assassinado.
O momento mais celebrado na peça vem na segunda cena do terceiro ato, quando Bruto e Marco António, em dois discursos sucessivos, cortejam o ânimo da multidão romana e tentam ganhá-la para suas respectivas causas. Assim como o povo o romano, o leitor ou espectador também oscila entre os dois oradores – sabemos, por testemunhos da época, que as plateias no Globe ora aplaudiam Bruto, ora aplaudiam Marco António. E o drama mantém-se até o fim nesse patamar de imparcialidade veemente, apresentando o entrechoque de perspectivas sem jamais assentar-se numa posição simples. Daí o caráter perturbador dessa Tragédia em que a fala humana tem o poder de arrastar almas e devastar países, porém jamais dá conta de esclarecer a verdade profunda do mundo, nem clarear as névoas da História. Pois todos esses caudais de palavras conduzem ao mesmo destino inescapável: Bruto, algoz de César, se atira sobre a própria espada no Ato V; Marco António, algoz de Bruto, também há de tirar a própria vida em outra “peça romana” de Shakespeare (Antônio e Cleópatra, de 1606).
E como Mankiewicz traduz em imagens esse complexo tabuleiro em que jogam o verbo e o destino? Em primeiro lugar, banindo de sua adaptação a pompa e a soberba visual que caracterizavam tantos filmes sobre Roma, como Quo Vadis (1951), produzido também pela MGM em 1951. É bem verdade que Mankiewicz e o produtor John Houseman aproveitaram restos do cenário de Quo Vadis para construir sua versão de Roma; mas fizeram-no em uma escala muito mais íntima e humana. Em vez de nos dar grandes panoramas do Circo Máximo, o filme se concentra em esquinas, becos, fachadas e escadarias – uma Roma chã, vista pelos olhos do povo, aquele mesmo povo cuja alma Bruto e Marco António terão de disputar. A urbs construída por Cedric Gibbons, Edward C. Carfagon, Hugh Hunt e Edwin B. Willis ganhou o Oscar de melhor cenografia, e talvez possamos detectar sua influência, décadas depois, na série Rome, da HBO (2005-2007) – que exacerba o desnudamento da Cidade Eterna, esquecendo seus mármores e concentrando-se em suas rachaduras e pichações. No filme de 1953, o cenário sucinto evita que o dialeto de Shakespeare se disperse e que a retórica se degenere em grandiloquência: face a face com os personagens, nós os olhamos de perto e os ouvimos falar, atentos aos mínimos movimentos de seus rostos.
O Júlio César de Mankiewicz deve seu sucesso estético, precisamente, à excelência de seus diálogos e discursos, no que apresentam de ritmo, circunstância e simbolismo. Vale aqui acrescentar que, nessa peça, Shakespeare escreve numa linguagem única e irrepetível: um inglês parcimonioso e direto, com menos invenções linguísticas e menos arroubos passionais do que em peças anteriores (como Henrique V, escrita pouco antes) ou posteriores (como Hamlet, escrita pouco depois). Temos aí um Shakespeare frugal e intenso, digno e certeiro: em outras palavras, romano. A direção igualmente digna e frugal de Mankiewicz nos dá a medida certa dessa romanitas shakespeariana.
Toda adaptação cinematográfica shakespeariana, para funcionar, depende da habilidade do cineasta em fundamentar a palavra nas imagens, ao mesmo tempo em que sustenta na palavra o desenvolvimento de sua imaginação visual. Para exemplificar esse trabalho no filme de Mankiewicz, destaco dois momentos.
I. No primeiro ato da peça, há um diálogo crucial em que Cássio desencadeia o dilema pessoal de Bruto, lembrando-o de seu dever cívico como defensor da República e tentando atraí-lo à trama. A verdade é que Cássio revolta-se contra César por ciúme: pois homens assim “jamais ficam em paz/ Enquanto houver alguém maior que eles”. Mas Cássio sabe que Bruto não inveja César, e que a única forma de o converter em conspirador é apelando a seu patriotismo estoico. Bruto precisa ser convencido de que sua responsabilidade é matar o próprio amigo.
No filme de Mankiewicz, Cássio é interpretado pelo inglês John Gielgud, ator de treino shakespeariano, em seu primeiro papel em Hollywood. A mise-en-scène é essencial para que as palavras de Cássio perturbem não apenas a Bruto, mas também ao espectador. O diálogo ocorre em uma vereda franqueada por bustos de grandes romanos; e Gielgud dirige sua fala tanto a Bruto quanto às estátuas, que parecem observá-los. A decisão de Bruto, portanto, não acontecerá na privacidade insular do desejo individual: quem o interpela não é apenas Cássio, mas a própria História. Em determinado momento, há uma subtil mudança de ângulo, e a câmara abarca, sobrepostos em plongée, o busto de César e o rosto de Cássio, que, então, pronuncia os versos cabais: “E ele agora é um deus, e o pobre Cássio / É um ser abjeto e deve se curvar / Sempre que César faz um mero aceno.” A ênfase da imagem atua como força retórica. Assim se inicia o jogo de perspectivas que traduz o ceticismo discursivo de Shakespeare: com quem as imagens concordam?
Pouco depois, quando Bruto se retira, Gielgud interpreta de forma impecável o solilóquio em que Cássio revela sua face manipuladora, mas também sua determinação algo heroica em levar a trama até o fim:
“A tua alma é nobre, Bruto, mas percebo
Que esse metal precioso pode ser moldado
Perdendo a forma original: melhor, portanto,
Que as almas nobres andem só com seus iguais
Quem é tão firme que não possa ser dobrado?
(…)
E então aguarda, César, sobre o trono brando:
Vamos te derrubar, ou perecer tentando.”
Enquanto essas palavras são ditas, a câmara recua ante o avanço de um Guielgud sombrio e fatal; seu rosto domina a tela por um instante; depois ressoam trovões e tomba a tempestade. Nossos olhos mergulham nas profundezas de uma noite febril e conspiratória, cheia de ventos, raios, tochas e capuzes. Então compreendemos que este filme nada tem a ver com “teatro filmado”; pois tanto as palavras quanto as ideias ganham, nas mãos de Mankiewicz, uma força cinética irresistível. As palavras não pesam, crepitam: são o vento e o fogo que agitam a imaginação e a fazem arder.
II. A peça central do filme é a cena em que Bruto (James Mason) e Marlon Brando (Marco António) se dirigem ao povo romano, diante do Fórum, logo após o assassinato de César. Brando, que ganhara fama interpretando Stanley Kowalsky em A Streetcar Named Desire (Um Eléctrico Chamado Desejo, 1951), não tinha experiência com peças de Shakespeare. Inicialmente, muitos críticos duvidaram que pudesse encarnar Marco António. O colega John Guielgud o ajudou a treinar a voz no pentâmetro iâmbico, dando-lhe fitas com gravações de discursos shakespearianos, que Brando estudava diariamente para aperfeiçoar sua dicção. No fim das contas, Brando mesclou a entonação do verso com certa crueza emocional que lhe era típica, realizando a façanha de criar um personagem que parece ao mesmo tempo implacável e condoído, maquiavélico e sincero. Sua atuação é um espetáculo, e até mesmo os críticos ingleses – geralmente céticos ante abordagens norte-americanas do Bardo – tiveram de admitir que o filme de Mankiewicz continha as melhores interpretações shakespearianas até então vistas no cinema.
A cena dos discursos sucessivos é uma maravilha cinematográfica, em que não faltam ecos de Eisenstein e Dreyer. Enquanto os oradores dizem suas palavras, o povo de Roma cobre não apenas as ruas, como as paredes e os telhados. Pessoas empoleiram-se em gruas e escadarias, acotovelam-se em vielas, fazem desaparecer as estátuas antigas. Assim, cada orador se contrapõe a uma muralha de feições e ânimos, que há de se transformar em oceano benfazejo ou turbulento, conforme a destreza ou a insuficiência das palavras. James Mason confere ao discurso de Bruto a dignidade serena e quase ingênua de alguém que realmente acredita estar certo e espera logicamente que a razão dos seus atos seja compreendida por qualquer criatura racional. Tem-se vontade de aclamá-lo, como o povo o aclama, quando diz: “Quem de vocês é tão abrutalhado que não deseje ser um romano? Se houver alguém, que fale: a ele eu ofendi. Quem de vocês é tão abjeto que não ame o seu país? Se houver alguém, que fale: a ele eu ofendi.”
Mas quando Marlon Brando entra em cena, carregando nos braços o cadáver de César, envolto num sudário sangrento, tudo muda. Seu discurso, que começa apenas como uma apologia do morto, transforma-se de forma gradual e imperceptível numa acusação dos assassinos. “Bruto é um homem muito honrado”, ele repete diversas vezes; mas a entonação que Brando dá à palavra “honrado” pouco a pouco converte o elogio em sarcasmo e finalmente em acinte. Em determinado momento, a voz de Brando fraqueja de forma incrivelmente realista; ele faz uma pausa e dá as costas à multidão, como para esconder suas próprias lágrimas; mas um súbito close-up então revela a expressão de Marco António ao escutar o súbito rumor que suas palavras despertaram no mar humano. Expressão sombria: marca do fado que age. E, quando o corpo de César finalmente é revelado, um travelling mostra os rostos individualizados da turba – rostos inicialmente silenciosos, que pouco a pouco começam a murmurar “Traidores!”, “Vilões!”, até que vem o grito: “Queremos vingança!”. A rua se insurge, a cidade arde, a Fortuna lançou seu dado. E é assim que as palavras oblíquas de Marco António, pela boca de Brando, espalham devastação e “soltam os cães da guerra”.
As grandes obras não são setas cravadas em seu próprio tempo, mas flechas voadoras que cruzam as décadas e os séculos: conhecemos sua origem no passado, mas sua trajetória é uma fuga que aponta o infinito. O Júlio César de Mankiewicz comprova que a palavra do Bardo é uma dessas flechas que atravessam séculos, mentes e meios. Cássio tinha mesmo razão ao dizer: “Em quantos séculos vindouros será reencenado nosso grande feito, em línguas do futuro e em terras por nascer?”
José Francisco Botelho é jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema. É autor de A Árvore que Falava Aramaico (Zouk, 2011) e Cavalos de Cronos (Zouk, 2018) – grande vencedor do prêmio Açorianos de 2019. É um dos mais importantes tradutores de Shakespeare, tendo traduzido Romeu e Julieta e Júlio César.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.