The personal is political. Carol Hanisch
Ver Les Années Super 8 (Annie Ernaux: Os Anos Super-8, 2022), um dos melhores filmes que poderemos ver no cinema (e não só – estará em DVD e streaming na Filmin e restantes videoclubes aquando da sua estreia comercial) ainda este ano, levou-me pela segunda vez no decurso de umas semanas de volta ao documentário de Dominique Auvray, Marguerite, tell qu’en elle-même (2003), uma tentativa de mapa da mente compartimentalizada de Marguerite Duras. Como mencionei numa recente crónica para o Ípsilon, nele Duras ensaia o porquê da escrita e aponta para a vingança. E as várias notas que vou escrevendo no meu caderno entrecruzam-se. No primeiro filme de Rita Azevedo Gomes, O Som da Terra a Tremer (1990), a escrita é mencionada enquanto forma de algo fazer. “Porque é que você escreve? Provavelmente para agir, não sei”. Mas e a especificidade dos escritos, o que os exorciza? “Tem-se sempre alguém em mente”, confessa no documentário de Auvray. Num discurso sorridente e hábil, como os vídeos da história no-la apresentam, esta completa o raciocínio dizendo que o lugar de fruição, a intenção e tudo mais eventualmente derretem e o texto transforma-se em algo diferente, inesperado, mas que, com toda a certeza, começa na ideia de vingança enquanto resposta, numa forma lúcida e organizada de falar com e para alguém.
Durante a curta mas incisiva duração de 61 minutos, o mesmo cozinhar de géneros, subjetivos mas impessoais, privados mas comunais, em que a sua magnum opus Les Années, publicado inicialmente em 2008, reveste e espelha o filme que a escritora e o filho, David Ernaux-Briot, apresentaram no Festival de Cannes este ano, precisamente no canto da Quinzaine des Réalisateurs – Ernaux é uma das escritoras mais cinemáticas do seu tempo; uma realizadora antes de alguma vez ter feito um filme, na sua ampla investigação das imagens escritas do passado. Em Les Années Super 8, a vingança não é só da escritora e activista. Partindo de material de arquivo, o filme começa logo por se anunciar enquanto extensão da sua obra.
Annie sai à procura de coleccionar mais e mais frascos da sua história. É um trabalho frenético, importante, socialmente mobilizador; esse procurar, revisitar, desagregar, e depois transplantar.
Escrevia o New York Times em 2020 que “Ernaux é uma memorialista incomum: ela não confia na sua memória. Ela escreve na primeira pessoa, e depois abruptamente muda e fala sobre si mesma à distância, convocando Eus passados (…)”. Não é auto-ficção. O seu ‘Eu’ é político e torna-se rapidamente em ‘O Outro’ e depois em ‘Nós’. E o tempo é tão impossivelmente linear como em qualquer mapa das nossas experiências enquanto seres na terra. Numa só rua, estão em fila todos lugares habitados. A Albânia maíosta na esquina de um quarteirão, férias de inverno na Cordilheira des Aravis no seguinte, o Maio de ‘68 em Paris no próximo. E tanto os eventos históricos que marcaram o tempo como também a concreta finitude da vida e do eventual esquecimento de tudo, como se esta, na verdade, não nos pertencesse. “Todas as imagens irão desaparecer.”, assim começa Les Années. O que Georges Perec ou Marcel Proust tentaram fazer a vida toda foi extrair a verdade da forma mais precisa possível dessas memórias. Mas como quem extrai sangue para frascos de vidro, o que fica registado no final é, claro, uma versão alterada. Porque é imensa e já foi vivida e misturada com outra matéria desde o seu acontecimento. Annie sai à procura de coleccionar mais e mais frascos da sua história. É um trabalho frenético, importante, socialmente mobilizador; esse procurar, revisitar, desagregar, e depois transplantar.
Volto a Les Années. Tenho que reler este Natal. Fala-se a uma determinada altura de uma câmara super-8 Bell & Howell, dos filmes caseiros que acabariam por ser feitos com ela e de quão estranho era a família rever-se na tela de projecção na sala. “Nós andávamos, os nossos lábios moviam-se, nós sorríamos silenciosamente enquanto o projector fervilhava no background.” Seriam estes os excertos de vídeos que vemos em Les Années Super 8? Decididamente que sim. Uma amostra do que aconteceu e foi gravado pelo na altura marido de Annie, pai dos seus dois filhos, Philippe Ernaux, durante o período de 1972 a 1981, o que temos à nossa frente não é só o clarão da memória, mas o desenho do formato dela. Por um lado, as paragens, as férias, as viagens do mapa do reconhecimento…por outro, a duração de tempo que o espectador demora a identificar o carácter puramente literário deste “cinema de contracampo”, como assim o definia a investigadora Maria do Carmo Piçarra na conversa pós-filme durante a sessão de antestreia deste no Cinema Ideal. Cinema este que denuncia que estamos ali para receber o seu tecido, todo aquele celulóide que humaniza a experiência, em nós.
“Nenhum dos três sabe o que fazer. (…) Ninguém fala. Quase se pode dizer que estão a posar para uma fotografia que nunca parará de ser tirada.”, diz-nos Les Années. Se existe uma ideia autêntica de imagem-movimento, infinita na sua suspensão, que nos fala da passagem do tempo e da nossa passagem por ele, é esta.
“Se não intervir no mundo, então filmar era ser o seu repórter”, começa a voz de Annie, que compôs o texto depois do filho juntar as imagens, como quem faz arte com a palavra da memória – oferece o peso do seu significado, temperando-a com a narrativa lúcida das mulheres e das escritoras, para sempre “nas linhas da frente do tempo” porque desenraizadas socialmente desde o desventre – com a ideia do que é ou não, ou poderá ser, o tal destilar da verdade que se encontra agarrado à autobiografia quando a ela se junta o abolçar da sociologia. Para o efeito, evoca a ajuda da colagem de elementos da cultura popular – a comida, os livros, a música e os filmes que marcavam aqueles seus anos (Ernest Hemingway, Jules Dassin, Alain Tanner e Eric Rohmer…) – os movimentos activistas e políticos (em ‘81 a vitória lacrimejante de François Miterrand, que se tornou o primeiro socialista presidente da República) e os vais e vens, os avanços e os recuos do papel de mulher, mãe, esposa e escritora.
Mais do que o verter arqueológico – algumas memórias até a mim me enternecem porque me levam às minhas (como a da canoagem no Serpentine em Londres) -, Les Années Super 8 aponta para o que o objecto do fazer do filme vem a significar. Não procuramos o passado, afinal. Olhamo-lo através da lupa do seu presente. O fluxo destas imagens tem, na sua origem, um “olhar humano, coeficiente e elevado em mistério” que esconde algo, como nos diz a voz analítica de Annie, que veste o papel tanto de observadora como de crítica do seu próprio arquivo. “Há um segredo aqui”, pontua o editor do Ípsilon, Vasco Câmara, no início da conversa, e tudo o que até ali poderia ter feito sentido deixa de importar.
O filme já tinha acabado, e no entanto continuava naquela sala, fora e dentro de nós. Fervilhava como na tela de projecção montada na sala dos Ernauxs. Por entre as brechas por onde a luz entra, fala-se da compra da câmara enquanto dramatização na vida daquela família, que entretanto assim que chega a Portugal, depois da gastroenterite do filho em Espanha (lembramo-nos sempre dos momentos de doença, onde o corpo falece), não prossegue e desvirtua-se por cima da calçada portuguesa. Onde se encontra Annie no meio disto tudo? Quem é o verdadeiro autor do filme? Por trás da mulher que povoa (nunca chega a habitar – “Estou a mais na vida dele”, diz ela) os vídeos e a vida de Philippe, como se de mobília se tratasse, situa-se a quintessência da injustiça intolerável da mulher na sociedade. Já para não falar dos filhos ou da restante família, todos vultos, que Philippe filma, mas nunca dá a conhecer. “Nenhum dos três sabe o que fazer. (…) Ninguém fala. Quase se pode dizer que estão a posar para uma fotografia que nunca parará de ser tirada.”, diz-nos Les Années. Se existe uma ideia autêntica de imagem-movimento, infinita na sua suspensão, que nos fala da passagem do tempo e da nossa passagem por ele, é esta.
A conversa na sala continua e ferve-se a gás. Lá fora, o dilúvio, Lisboa inunda-se. Mas ainda não o sabemos, porque ali dentro só se sente a felicidade de usar um bisturi para cortar aos pedaços, retirar dos eixos a mágoa e ambição da mulher educada para a liberdade. A câmara era de Philippe. Annie não toca no objecto do qual se espera um teatro da realidade, a tecnologia que na sua simples presença morfa (melhorando a aparência, mentindo?). Quando este abandona o agregado familiar, deixa com Annie as imagens, fazendo dela a “guardiã” daqueles movimentos que o filho lhe entrega décadas depois. Mas Philippe leva a câmara com ele. O papel da mulher era o da preservação, o do homem a visão.
Para lá da estratégia profundamente romanesca, ouve-se na reactivação que as palavras fornecem às imagens de arquivo, e nas incontáveis camadas que subitamente dão de si, o contrastante preto no branco das letras escritas no papel, difíceis de dizer em voz alta, que coloca as coisas a andar. O tom é emocional pela natureza do que faz, mas distancia-se da nostalgia, rejeita o sentimentalismo. Vasco entretanto equipara movimentos de câmara à sua literatura, querendo deixar bem claro de que o cinema já lá estava antes. Os travellings de Les Années, o flashback de L’événement, as panorâmicas e os grandes planos a recair no estender da nossa memória (neste meu caso, os parágrafos que se empilham como um vulcão em erupção)… Um trio criativo junta-se no grafismo apressado das minhas notas. A matéria videográfica, feita de imagens fixas, as palavras, as imagens em movimento, e ao longe o teclar que vai acontecendo de forma inconfundível daquele que escreve sobre alguém que está sempre a escrever. Ali está a Annie do passado e a Annie do presente. A Annie de sempre, cujo primeiro livro ainda estava para ser publicado.
O segredo sempre foi o que ela escondia de si mesma, mas sabia ser verdade no íntimo…Annie Ernaux iria conseguir dar relevo à tarefa, já na altura. O olhar da mulher que vemos no filme pode ser cabisbaixo e tímido, mas é, talvez por ser assim mesmo, terrivelmente sabedor. A vingança é só o início.
E porque este texto já vai longo, e provavelmente precisa de afinamento porque tudo o que me vem neste momento jorra e sinto uma urgência tremenda em assim escrever antes de perder as palavras – é a única certeza no meio de tudo -, esta é nada mais do que uma aglomeração de um recordar de um filme visto num passado recente sobre a dimensão do que é colectivo mas nem sempre foi assim entendido. Ando então para a frente até ao testemunho de uma sábia senhora na audiência que tão naturalmente conclui e arruma as bolhas de pensamento de todos os presentes. “Ela vinga todas as mulheres!”, diz. A sala ressoa de agradecimento e os convidados agradecem-lhe. Essa é a verdade. A viagem de carro para casa no meio das poças que cobrem as rodas do carro nas grandes avenidas lisboetas exactificam os mecanismos de encaixe. Esta é a história dos vencidos. Toda a obra de Ernaux o é. A jovem mulher, já mãe de filhos na altura, escrevia livros de forma clandestina. Não ousava dizer o que esperava deles, mas não conseguia parar. Não podia.
Les Années Super 8 não só se evidencia enquanto a prova clarividente de como esta mulher se auto-resgata, como alguém dizia durante aquela conversa – a montagem é determinada por Annie, a visão é dela! -, como re-confirma que tem passado o tempo ao longo da sua obra a dar visibilidade àqueles que nunca a teriam de outra forma, seja através dos seus livros ou agora nesta acumulação de imagens que Philippe abandonou com ela. Escrever é devolver luz. Escrever é, como Duras bem dizia, vingar. “Eu escrevo para vingar os meus” (J’écrirai pour venger ma race), volta a explicar Annie no seu discurso de agradecimento à Academia do Nobel no passado dia 7 de Dezembro pela maior distinção que um escritor poderá alguma vez receber. O segredo sempre foi o que ela escondia de si mesma, mas sabia ser verdade no íntimo…Annie Ernaux iria conseguir dar relevo à tarefa, já na altura. O olhar da mulher que vemos no filme pode ser cabisbaixo e tímido, mas é, talvez por ser assim mesmo, terrivelmente sabedor. A vingança é só o início. Agora, uma Annie com 82 primaveras, continua o seu trabalho não de cuidadora, como assim a queriam ver, mas de criadora, dia e noite, putting our world to rights, oferecendo a liberdade concretizada, nunca por imaginar.
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