Um dos traços mais belos da obra de Alice Rohrwacher é a forma de nos dizer que o presente já contém em si muitos tempos e que as pessoas e as gerações falam a partir dos seus mundos. As palavras e as relações são essa “máquina do tempo” que nos dá ver distintas camadas de sedimentação e choque. Em Le meraviglie (O País das Maravilhas, 2014) essa tensão era-nos dada através da ruralidade italiana tentada pela lente da quimera televisionada. Em Lazzaro felice (Feliz Como Lázaro, 2018), talvez o seu melhor filme, essa fricção era ainda mais ostensiva, com a presença de um Lázaro do passado diante da inevitável modernidade. Nesta sua mais recente obra, La chimera (A Quimera, 2023), Rohrwacher torna essa sedimentação mais literal — um mundo que caminha sobre vestígios de outros mundos. E a atravessá-los só podiam estar um amaldiçoado e um bando de saqueadores de tumbas (os tombaroli). Um movido por amor e os outros por dinheiro.
É interessante pensar que ao imaginário da realizadora italiana continuam a afluir certos ventos do passado: a caverna do programa televisivo e agora os túmulos; a presença de uma ancestralidade histórica no presente pela cultura etrusca; ou o subtexto mitológico (as falsas deusas televisivas, a figura de Lázaro, agora Eurídice e Orfeu). E, nesse sentido, é impossível não pensar também nesse outro vento do passado, esse tesouro do cinema italiano, Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954), onde Roberto Rossellini também filma a figura do estrangeiro inglês em Itália — aqui o protagonista Arthur (Josh O’Connor) e no “clássico” do cinema moderno o casal Joyce (Ingrid Bergman e George Sanders) — e onde os mortos do cemitério de Fontanelle ou o casal enterrado nas cinzas do Vesúvio fazem ver ao par à beira da ruptura que, como se ouve a dada altura em La chimera: “a vida é temporária”.
O vestígio arqueológico tem assim essa dupla função: ela carrega uma simbologia cinematográfica, ao mesmo tempo que permite a Rohrwacher colocar o seu olhar crítico e irónico sobre a Itália presente em perspectiva. O artificialismo crescente da cultura italiana, o exploração laboral e, agora, essa mercantilização da história por via do mercado clandestino da arte. A etiqueta de (neo)realismo mágico para o seu cinema é isso o que justifica: uma visão alongada que olha o agora em função de uma sucessão de tempos e, arriscaria dizer, um mundo que ausculta os seus submundos, os vivos cuja sobrevivência demanda a profanação do sagrado. Será essa a grande quimera deste filme?
Medidas as coisas, parece-me que La chimera fica um pouco aquém das obras anteriores. Pela primeira vez, o gesto discursivo, o élan romântico, um certo lirismo performativo parecem querer tomar a dianteira em certos momentos.
Pergunto-me se seria inevitável que o dramas mágicos e familiares dos filmes de 2014 e 2018 não tivessem como seguimento natural a comédia e, aqui em particular, uma certo romantismo decadentista. A outra herança de Rohrwacher, o gesto onírico e de ensemble de Federico Fellini, parece indicar esse caminho. Por exemplo, as sequências em que os tombaroli passeiam de tractor pela vila de Riparbella, na zona rural da Toscana, ou as sequências de festa e dança voltam a fazer lembrar o mestre italiano. Talvez seja a tragédia romântica, Connor que procura, como Orfeu, resgatar a sua Beniamina /Eurídice do submundo (interessante a câmara invertida como se de um contracampo dos mortos se tratasse) o mais difícil de suster em La chimera.
Por um lado, creio que o casting de O’Connor e sua representação baseados na sua boa aparência, silêncios e olhares tristes não é suficiente para atribuir a necessária espessura e autenticidade à dor interior da personagem. Por outro lado, esse subtexto romântico desfoca um pouco a obra da sua dimensão de fresco de época e de uma lógica de filme de aventuras que a dado momento a autora parece buscar. A sublinhar essa menor precisão está por exemplo a personagem de Italia (Carol Duarte), suposta estudante de canto, que Flora (Isabella Rossellini) alberga e que esconde dois filhos. Além do interesse romântico pelo charmoso estrangeiro pouco mais há para fazer além de servir a metáfora de uma Itália pobre a quem se dá ordens e que se opõe, perto do fim, a esse devassar da sacralidade das tumbas.
Medidas as coisas, parece-me que La chimera fica um pouco aquém das obras anteriores. Pela primeira vez, o gesto discursivo, o élan romântico, um certo lirismo performativo parecem querer tomar a dianteira em certos momentos. Os apartes para a câmara, a aceleração da imagem, a visualidade dos sonhos de Connor, as várias línguas, a súbita e exemplar comunidade que ocupa a estação de comboio abandonada, a linguagem gestual antes do beijo, o curso intensivo de italiano, os rosnares pelo preço da estátua no final são tudo índices dessa performatividade que tornam o todo mais heterogéneo. Talvez um filme mais belo, mais solar, certamente mais agradável, mas menos incisivo.
★★☆☆☆