Era conhecido o gosto que Serge Daney tinha por postais, que coleccionava e enviava para amigos cada vez que estava longe da sua Paris. O crítico francês dava o postal como exemplo de algo que era inerente à imagem: uma incompletude, uma possibilidade de preenchimento, de escrita nas suas costas. É interessante pensar nessa ideia a propósito das intenções de Jeff Nichols face a The Bikeriders (2023). Há duas décadas, o realizador norte americano encontrou no apartamento do seu irmão mais velho um livro de fotografia. Bikeriders, de Danny Lyon, fotógrafo e nome importante do Novo Jornalismo foi publicado em 1967 e acompanhava nos anos 60 a filial de Chicago dos Outlaws Motorcycle Club, um dos mais conhecidos grupos de motards do país.
Nichols tem dificuldade em perceber o que o fascinou no livro: as motas, os detalhes da cultura erigida em torno desses veículos, as cores e as texturas das imagens, os espaços que acolhiam figuras misteriosas, mas humanas. Ao longo do tempo percebeu que aquelas fotografias o inspiravam a escrever um argumento, juntamente com um longo processo em que vai ouvir as pessoas representadas no livro, conhecendo mais sobre aquela realidade. O realizador não quer adaptar a vida dos retratados — nesse sentido não é um filme biográfico — mas inspirado nessas fotografias. O que nos aponta para uma questão subtil: qual o olhar do filme? Jeff Nichols quer criar um filme nas costas destas imagens — como os postais de Daney — imaginar um drama para aquele imaginário. E, por sua vez, burila um outro ponto de vista, entrando no filme através do olhar da personagem feminina, Kathy (Jodie Comer) que conhece o mundo deste grupo de motards (no filme os Outlaws têm um outro nome ficcional, os Vandals) por se ter apaixonado por um deles, Bennie (Austin Butler).
The Bikeriders constrói bem esse olhar feminino, a partir de um espaço limiar, sobre as múltiplas masculinidades que compõem este universo. Bennie é um jovem frágil e perturbado (Butler procura a pose atormentada de James Dean); Johnny, o líder do gang, é essa massa bruta e silenciosa, corporalidade resplandecente e voz anasalada que é Tom Hardy [com os ecos evidentes de Marlon Brando em The Wild One (O Selvagem, 1953) de László Benedek]; e ainda o trauma subterrâneo da rejeição social face a este modo de vida, trazido pela presença constante nos filmes de Nichols, que é Michael Shannon. Isto além dos boémios, dos cobardes, dos assassinos, dos violadores. O olhar de Kathy é também um posicionamento, uma sobrevivência, um retrato dessa violência masculina.
The Bikeriders olha para este universo como um álbum que se folheia sabendo que todos já ficaram ou estão prestes a ficar congelados no tempo, numa existência, por fim, livre.
Contudo, a encenação do fotógrafo (Mike Faist) a entrevistar Kathy, que vai lembrando todas as peripécias dos Vandals, reforça o seu carácter histórico, um olhar sobre o passado. Nesse sentido, The Bikeriders mais do que procurar escrever nas costas desse imaginário fotográfico, não consegue escapar à ideia de filme-álbum, que se folheia com uma certa nostalgia. Como se esse dispositivo de regresso a um passado fosse ele uma espécie de friso de morte, pontuado com a ominipresente banda sonora (The Shangri-Las, Muddy Waters, The Animals, Johnny Adams, entre muitos outros exemplos) que sublinha essa viagem de recordação, essa espécie de ode ao ocaso de uma contracultura.
Marlon Brando, que não gostou do resultado final de The Wild One, um filme que também procura entrar no modus vivendi dos gangs de motards — e que juntamente com Rumble Fish (Juventude Inquieta, 1983) de Coppola, marcam o imaginário da obra de Nichols — disse: “Começámos por fazer algo que valesse a pena, para explicar a psicologia do hipster, mas em algum momento desviámo-nos do caminho. O resultado foi que, em vez de descobrir a razão pela qual os jovens tendem a juntar-se em grupos que procuram ter uma dada expressão, tudo o que fizémos foi mostrar a violência”.
Provavelmente, Brando não tinha razão: o filme de Benedek é sobretudo sobre um jovem inseguro e sem auto-estima, mais do que um olhar ficcional e “etnográfico” sobre o caos lançado por estes gangs. Mas, não tendo razão, a visão de Brando permite perceber como a questão delicada do filme era como a lei e ordem de uma pequena cidade lidariam com esta outra forma de viver, como responder a esta desordem com uma certa ordem. Curiosamente, essa psicologia de que fala Brando aproxima-nos mais de The Bikeriders. Jeff Nichols encena um subtil triângulo amoroso. Quem ficará com Bennie? A sua esposa, Kathy, ou Johnny, o líder que vê naquele um potencial herdeiro dos destinos dos Vandals? O fotograma acima é eloquente face a esse amor, face a essa “inveja” da juventude, da capacidade de fugir.
Apesar de Tom Hardy e da sua personagem se inspirarem na suavidade do selvagem Brando, ela pertence muito mais ao universo de Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) ou The Godfather (O Padrinho, 1972). A lei, que no filme de Benedek tinha de tomar posição, aqui desaparece. Ao invés, agora são as fissuras internas da organização, com seus códigos de honra, lealdade e traição que estão em causa. Como se o universo tivesse deixado os problemas de responsabilidade social, ou até a alternativa existencial [como no diamante autoral de Hopper e Fonda, ou em declinações menos artísticas (Hells Angels on Wheels (1967); The Wild Angels (1966)] e tivesse recebido a herança do filme de gangsters.
E Tom Hardy, que brilha como nunca no centro deste trauma e destas convulsões, é a face mais evidente dessa passagem. The Bikeriders olha para este universo como um álbum que se folheia sabendo que todos já ficaram ou estão prestes a ficar congelados no tempo, numa existência, por fim, livre.
★★★☆☆