Desde a semana passada é possível ver em algumas salas portuguesas a versão restaurada em 4K de Ossos (1997), primeiro tomo da trilogia das Fontaínhas, de Pedro Costa. E, num gesto não menos do que surpreendente, o realizador decidiu prefaciar essa sessão com o seu último filme, a curta-metragem As Filhas do Fogo (2023), produzida pela Clarão Companhia. A propósito desta reposição+estreia, deste presente que olha atrás e deste atrás que fura em frente, fomos ao encontro de Pedro Costa. A ideia era perguntar sobre esta sessão em particular. Mas, como no seu cinema, a conversa deveio espaço de comunhão de existências e de partilha de presenças. As horas passaram e há qualquer coisa que se passou, entre o épico e o apaziguamento, e no final, uma sensação de terminarmos mais limpos, um pouco menos sós. Nesta conversa tida, por vezes no limite da lágrima, outras num espaço de revolta, Costa falou-nos do restauro dos seus filmes e dos de Paulo Rocha, também do envelhecimento, da arte como súmula de decisões práticas, do seu método, de música e de fogo e porque não, de crítica de cinema. Disse-nos que por vezes precisávamos de também tirar a pala (de Walsh) para ver pelo olho bom. E nós aceitámos… Eis a primeira parte deste encontro conduzido pelos walshianos Carlos Natálio e João Araújo.

João Araújo (JA) – O Ossos (1997) já tinha sido alvo de um restauro, quando foi incluído na edição da Criterion, juntamente com No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006); tivemos o restauro dos filmes do Paulo Rocha, Os Verdes Anos (1963) e Mudar de Vida (1966) com a tua supervisão; também o restauro da edição de O Sangue (1989) e agora nova cópia restaurada do Ossos. Este processo e trabalho de preservação dos filmes é uma parte importante da tua relação com o cinema, de uma forma de preservação dos filmes e da tua memória deles? E esse regressar aos filmes, altera a tua relação com eles? Já pensaste por exemplo em alterar cenas ou planos?
Não, eu não. Mas isso realmente que estás a dizer é verdade. Tudo isso que referes tem duas origens. A primeira é que tenho tido a felicidade dos meus filmes viajarem muito e desde há bastante tempo que estou no digital, e no digital as coisas são mais fáceis de resolver. Por exemplo, os processos de correção de cor e tudo o mais, é tudo digital. Enfim, já o restauro químico é outra coisa. É pelo digital que se vai a todo o lado hoje, não é? Inclusivamente é por ele que se toca numa película. Nunca fui fetichista da película ou do químico. Mesmo quando fiz os meus filmes em película ou quando trabalhava como assistente em filmes em película. Ou mesmo quando via filmes, nunca sequer pensei nisso. Depois, quando cheguei ao digital, aquilo era… Bom, No Quarto da Vanda não era digital, era videocassete, o vídeo amador ou DV, depois passou a DVCAM, etc. Por isso não tive nenhuma dificuldade em passar para o digital, aliás, sem estes formatos não teria feito nada do que fiz, nem tinha tido a ajuda, nem a possibilidade, de as fazer. Não é só uma questão de liberdade como se diz, é mesmo de possibilidade.
Eu vivi uma espécie de mini Zoetrope no Hotel Impala. O Hotel Impala era o hotel do Paulo Rocha, um pequeno hotel que ele tinha na Rua Felipe Folque em Lisboa. Tinha cinco andares que, suspeito, a mãe e o pai lhe compraram, e onde ele vivia, no último andar. Ele, mais para o fim da vida, já por volta de O Rio do Ouro (1998) e dos outros, tinha nesse último andar, nos quartos, umas pessoas a trabalhar com ele, uns jovens da escola de cinema. Era muito engraçado e muito comovente, porque ele emprestava os quartos. Ou seja, achava que certa pessoa era um génio absoluto e punha-o numa dessas divisórias a fazer o seu próprio filme.
Entre estas coisas estão estes primeiros restauros do Paulo Rocha, que foram um pedido dele quando já não estava muito bem fisicamente. Foi ele que se aproximou de mim, porque, na altura, de facto, comecei a preocupar-me com alguns destes filmes em película que tinha e estava a trabalhar com a Criterion e o seu director técnico, Lee Kline e várias outras pessoas ligadas ao digital e ao restauro que conheço em Los Angeles. A primeira versão restaurada do Ossos era HD (esta não, é 4K) e na altura era uma tecnologia de ponta como se dizia. Foi feita com a Criterion, mas começou cá na velha Tobis, quando fiz o telecinema e uma pequena correcção de cor. A Criterion não achou mal mas achou que podíamos continuar num estúdio em LA arrendado por eles, na altura trabalhei com um colorista americano muito famoso. Fizemos então a correção de cor e algum mastering, como eles chamam, que é uma coisa muito técnica. São sujidades, layers, redes, tratamentos de imagem, que já nem passam tanto pelo autor. São trabalhos que não interferem nada com o lado artístico.
O Paulo Rocha sempre teve um grande fascínio pela tecnologia, sem saber muito. Mas tinha um fascínio, andava sempre com a revista American Cinematographer, ou coisas ainda mais técnicas debaixo do braço. Imagino que ele, se estivesse vivo, estaria agora com muito interesse em ver o Coppola. Eu vivi uma espécie de mini Zoetrope no Hotel Impala. O Hotel Impala era o hotel do Paulo Rocha, um pequeno hotel que ele tinha na Rua Felipe Folque em Lisboa. Tinha cinco andares que, suspeito, a mãe e o pai lhe compraram, e onde ele vivia, no último andar. Ele, mais para o fim da vida, já por volta de O Rio do Ouro (1998) e dos outros, tinha nesse último andar, nos quartos, umas pessoas a trabalhar com ele, uns jovens da escola de cinema. Era muito engraçado e muito comovente, porque ele emprestava os quartos. Ou seja, achava que certa pessoa era um génio absoluto e punha-o numa dessas divisórias a fazer o seu próprio filme. O Mozos esteve lá e muita gente. O Edgar Feldman também, que foi um grande apoio do Paulo. Montou ali então uma espécie de mini Zoetrope. Ele tinha um interesse enorme pelos filmes dos jovens, era de uma generosidade imensa. E, no meio dessa coisa toda, da juventude, desse futuro, desse fulgor, que se via muito n’ Os Verdes Anos. Aquilo era Os Verdes Anos em todos os sentidos, literal e metafórico. E um dia ele disse-me, “você que sabe tanto, que anda lá por fora, em Los Angeles, fazendo não sei o quê, você é que tem de fazer isto, porque eu estou… eu vou-me embora. E, pelo menos, Os Verdes Anos e o Mudar de Vida gostava de ter isto em Blu-Ray, para se poder ver em todo o mundo.” Muita gente, como o Paulo ou o Oliveira, no final da vida, tiveram pena de não ter os filmes para mostrar, não por uma questão de fama.
O Paulo Rocha, continuando nesta espécie de melancolia, com sonhos que não se cumprem – que é uma coisa muito portuguesa, sobretudo no Paulo -, tinha aquela ambição desmedidíssima. Acho que ele teria feito os Lusíadas se pudesse, e teria feito bem, provavelmente.
E eu tentei fazer o que pude, e… e fiz alguma coisa, mas… e é verdade, que Os Verdes Anos, pelo menos, não empalidece nada em comparação com muita coisa. Com os italianos, sobretudo. Mas lembre-se Os Verdes Anos é de 1963, é cedo… E a melancolia foi sempre essa, ou seja, na altura eles viveram aquele burburinho, o Paulo, apesar de tudo, andou com o Bertolucci, com as mesmas relações que eu tenho agora com as pessoas de hoje, os meus colegas. Eles estiveram com o Bertolucci, com o Glauber, com o Godard, com o Pasolini. Mas ficaram com aquela melancolia dos filmes realmente não terem sido vistos. E eu comprovei isso, tirei a prova dos nove, porque cheguei à Criterion, dei o filme ao Jarmush, a muita gente e todos eles abriam a boca de espanto, uns mais com Os Verdes Anos, outros mais com o Mudar de Vida, dependendo das sensibilidades. Em Inglaterra dizia-se que os filmes do Rocha pareciam algumas coisas do Leste, como na altura os filmes da Muratova ou outros cineastas da Jugoslávia que eram ainda muito pouco vistos. Naqueles casos porque saíram os Polanskis, os Skolimowskis, os Foremans mas ainda havia uma carrada de secundários muito bons, por vezes melhores ainda. Tem a ver com esta injustiça, percebem? O Manoel foi mais visto, apesar de tudo, mas mesmo assim numa segunda linha de visibilidade. Sobretudo não chegaram aos críticos que deviam ter chegado, sei lá os Rivettes, etc. Podiam ter puxado mais pelos filmes se os tivessem visto.

O Rocha teve esse sonho de que podia deixar tudo pronto e bem feito, e eu comecei a ajudá-lo nisso. Comecei mesmo do zero na Tobis. Só que depois a Tobis implodiu, explodiu, foi vendida, foi infame… Um dia devia-se fazer essa história do fim da Tobis… era uma investigação mais interessante que o fantasma da obra de não sei o quê, pronto. A Tobis acabou e eu agora, por exemplo, que quero fazer um filme português praticamente todo em estúdio, não consigo arranjar um. Não consigo, porque os estúdios são das novelas, das publicidades, dessas coisas todas, e não há um ou dois estúdios com preços relativamente acessíveis para a gente fazer filmes de ficção, documentários ou outras coisas. Não há. Havia a Tobis que era pública, mas acabou. Quer dizer, está lá, mas está a ser usado pelo Teatro Nacional, que está em obras…
O Paulo, continuando nesta espécie de melancolia, com sonhos que não se cumprem – que é uma coisa muito portuguesa, sobretudo no Paulo -, tinha aquela ambição desmedidíssima. Acho que ele teria feito os Lusíadas se pudesse, e teria feito bem, provavelmente. Mas a China, o Japão, o Brasil, o Ouro era isso. Depois ele ia concentrando, limitando-se porque não tinha maneira, mas acho que queria ter tido uma hipótese de fazer coisas muito grandes que depois, se calhar, boicotaria no bom sentido, percebem? As histórias de naufrágio, histórias de grandes suicidas e suicídios, isso era tudo para ele. Por exemplo, aquele naufrágio absoluto que foi A Ilha dos Amores, com não sei quantos anos de produção, 15, 20…
É evidente que ele não fez as coisas que queria ter feito em alguns filmes e eu sei quais são. E n‘ Os Verdes Anos e no Mudar de Vida, muitas coisas que têm a ver com a imagem, com o som e outras coisas… Agora, ele percebeu ou foi um bocadinho até imaginativo, ou sonhou demasiado que o digital podia dar agora umas coisas que ele não tinha feito e eu estava até mais lá para o parar um pouco e dizer “sim, mas não vá tão longe, Paulo” ou, “não pode, ou pode, mas não vai ficar bem”. Mostrava-lhe alguns exemplos de filmes americanos, com exemplos em que se via o aspecto muito falso, coisas muito grandes em que já não havia chromas mas era CGI em pós-produção. Mas ele estava completamente cego, no bom sentido, e tive de resistir muito com o Carlos Almeida que foi a pessoa com quem trabalhei muito nesses restauros (e que é uma das pessoas que, com o Irmã Lúcia Efeitos Especiais, dirige os restauros dos filmes portugueses deste plano de restauro que abrange mil filmes).
Os Verdes Anos estavam pior do que o Mudar de Vida. O negativo estava mal conservado, muito riscado, o som degradado e estivemos meses a trabalhar. Claro que vimos as cópias que existiam em 35mm como base, mas isso não foi suficiente porque as cópias também estavam bastante más, mas pronto, com alguma experiência dele e treino meu fomos fazendo. Os Verdes Anos é um filme fotograficamente muito pobre, eles não tinham nada, faziam duas, três takes por plano, há pouco material, o filme perdeu-se muito, foi muito contratipado. Ou seja, o negativo estava em tão mau estado e tiraram tantas cópias do negativo original que tiveram que fazer duplos internegativos, materiais intermédios em que a qualidade se perde muito, o grau aumenta, a definição baixa, o contraste esvai-se. Para reencontrar um bocadinho do original, que não era grande espingarda, já foi um trabalho enorme. De origem o filme é muito cinzento, mate, sem brilho, sem contraste.
No som, o Paulo queria refazer completamente algumas cenas, e tinha grandes ideias a esse respeito, mas fomos comedidos. Lembro que o José Manuel Costa, director e impulsionador deste processo de restauros, nos disse para ir com calma em certas alterações do original. Por exemplo, juntar cães, gritos que não estão lá porque não houve tempo ou que na banda de som já não se ouve. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Eu não sou pelo respeito absoluto, acho que se pode, por exemplo… no contraste pode variar um bocadinho. Demos algum brilho que não tinha e em certos aspectos mais próximos do que o filme era na estreia. N’Os Verdes Anos havia um problema particular que era a guitarra do Paredes. O som da guitarra portuguesa que a gente gosta tanto é muito difícil, é um bocadinho agressivo (se passares uma noite nos fados percebes bem como é um som muito agudo, muito estridente). E na cópia, com o passar dos anos, essa música ouvia-se muito mal. Nós fizemos um restauro da imagem sem som e depois tivemos algumas indicações do Paulo. Por exemplo, reforçar os carros na cena final, com as buzinas; limpou-se, melhorar algumas vozes, cena no Vává, os ambientes estavam fracos e nós aumentámos um pouco, mas não pusemos nada de novo.
Carlos Natálio – Havia os problemas com os diálogos do som directo. Lembro-me de uma sessão, há muitos anos, do Uma Rapariga no Verão (1986) onde havia muita dificuldade em ouvir os diálogos do filme.
Mas há a diferença entre os diálogos dobrados e o som directo. O que se passou com o Rocha passou-se com o Godard, Truffaut, Rivette. Por exemplo, um filme que conheço bem, Paris nous appartient (1961), um filme denso, com muito diálogo, mas com diálogos dobrados. Foi provavelmente feito em estúdios mauzitos em Paris mas não havia esse problema com as vozes pois eles não faziam só, dobravam tudo. Já em filmes como Uma Rapariga no Verão no qual fui assistente, mas em muitos outros, tentámos fazer som directo, mas mal. A coisa só mudou mesmo a partir do Joaquim Pinto. Antes disso, os filmes dos anos 60, 70, até ao 25 de Abril, era tudo dobrado. N’ Os Verdes Anos, apesar de tudo, percebes o que dizem. Nesses filmes, os restauros ajudaram muito. Por exemplo, os filmes do António Reis e da Margarida Cordeiro como o Trás-os-Montes (1976) ou o Ana (1982). Isso eu sei pois, sobretudo o primeiro, tenho levado aonde posso. Sempre que há qualquer situação em que me pedem para escolher um filme, lá escolho outra vez o Trás-os-Montes. Mas há uns anos fiz uma coisa com o Rui Chafes em Tóquio e a cópia digital também não se percebia nada no som, quase pior que a 35 mm. Por vezes o digital tem esta coisa de exponenciar os defeitos.

CN – Sobre os teus filmes não tiveste então a mesma tentação do Paulo de mudar alguma coisa?
Não. Fiz o O Sangue, o Casa de Lava e os Ossos, os três filmes que fiz em película. Na altura fiz correcção de cor na Tobis e alguns foram para o estrangeiro para o lançamento dos DVDs. Quis fazer coisas na cor que não tinha conseguido. A étalonnage, que na altura eram sempre senhoras a fazer, era um processo feito no arame, só podias trabalhar na composição das três cores primárias. Era um processo algo limitado. Hoje com o digital podes mascarar tudo. Podes tirar uma cor por completo, criar um décor que não existe. Os americanos usam muito, a maioria usava ecrãs verdes ou mais recentemente com LEDs, agora usam-se mesmo ecrãs por detrás da cena.
O restauro do Ossos foi feito com o Carlos Almeida na Irmã Lúcia Efeitos Digitais e com um trabalho vital na correcção de cor do Gonçalo Ferreira e no som pela mão do Hugo Leitão. Nesse processo melhorei a cor do filme, repus um contraste que as cópias já não tinham. Enfim, mas… sem mudar o filme. Nunca quis fazer outra coisa que não estivesse lá. Mas claro, há filmes mais fáceis do que outros. O Ossos foi uma coisa mais fácil. São ambientes que estavam mais controlados, a câmara 35mm era boa, tínhamos condições de luz.
A questão dos Ossos também tinha a ver com uma certa crise existencial e artística, pois achava que não estava a conseguir safar-me bem a realizar um filme. Se me tivesse acalmado tinha-me apercebido que não tinha nada a ver com isso. E acalmei-me e percebi: isto é só produção.
O Ossos é o filme que está mais perto da minha mudança, onde disse que tinha de mudar. No meio da rodagem senti que não estava a correr bem ao nível da imagem. Isso porque o bairro das Fontaínhas se queixava do barulho. “A gente não consegue dormir com o vosso barulho. Tenho que sair às quatro da manhã para ir fazer uma cofragem em Massamá.” Eu podia ser um gajo que dissesse “então vais dormir no Sheraton que o Paulo Branco põe-te lá um mês enquanto eu tenho que fazer aqui a minha obra-prima”. Ou… dizer ao pessoal da produção “acabou-se. A partir de agora não vamos ter luz e metade de vocês vai dar uma volta ao bilhar grande. E isto agora vai ser um silêncio e uma escuridão de morte”. E foi assim. O diretor de fotografia ficou à rasca. Toda a parte que a gente tinha filmado em Lisboa – a casa da Isabel Ruth – não há problema. Agora… tudo que era bairro deu logo bota ao princípio. E aí… mudámos. E o filme começou a ter o tom que tem, com muito menos luz.
CN – Isso é interessante porque estávamos exatamente a perguntarmo-nos, quando estivemos a preparar esta conversa, até que ponto é que no filme podíamos ver esta mudança de metodologia. Se nele existiam sinais, sintomas dessa hesitação, desse afinamento…
Nós falamos muito, mas… depois as coisas são muito práticas. É isso que tenho sempre tentado passar. Leio muito sobre cinema, principalmente coisas do passado, mas ligadas à prática. O facto de fazer os filmes, de misturar, de gravar, de fotografar, etc. Mas a questão dos Ossos também tinha a ver com uma certa crise existencial e artística, pois achava que não estava a conseguir safar-me bem a realizar um filme. Se me tivesse acalmado tinha-me apercebido que não tinha nada a ver com isso. E acalmei-me e percebi: isto é só produção. É tudo uma questão de saber como é que hei-de gerir certas coisas: a que horas filmar, ter quatro assistentes ou só um… Na altura, lembro-me, o Paulo Branco ficou muito inquietado quando lhe chegou aos ouvidos. Porque esta decisão passou por cima de tudo. Na rodagem tinha dois ou três diretores de produção. Não porque o filme fosse enorme, era só porque estávamos a filmar num sítio que todos eles, e eu também, talvez, achámos que podia ser problemático, difícil, sensível, etc. E, portanto, toda a gente achou que se tinha de pôr cinquenta tipos em cada ponta do bairro, acalmando, às vezes pagando pouco, mas sabes como é… Não é que não tivesse passado mal desde O Sangue, mas aí, pelo menos éramos todos amigos, trabalhava com os meus colegas da Escola. Mas depois a coisa foi-se agravando e tornando-se muito difusa: já não sabes bem identificar se és tu, se é aquele ou quem é que está a fazer mal.
Outro momento importante para essa mudança no Ossos foi quando a Vanda disse: “não vou almoçar convosco”. Porque éramos sempre vinte e dois e ela não gosta de almoçar todos os dias com vinte e duas pessoas. Não tem sentido para ela, pois havia um gosto pela solidão, um feitio. Normalmente as equipas estão-se nas tintas para isso. E um dia penso: “e se a equipa não se estivesse nas tintas para isso? Se não se estivesse nas tintas para a atriz principal?” que, aliás, a maioria nunca considerou como verdadeira atriz. Tirando, claro, o diretor de fotografia, o diretor de som, que viam um bocadinho o que era este projeto.
Em suma, isto era um puro problema de produção. E pensei que tinha de ser produtor deste ou do próximo para resolver estas questões – como esta do barulho. Depois isto transforma-se numa espécie de método, meio teoria, meio fantasia. Há uma parte fantasia nisto, ma non tropo que é… epá, sim, vamos fazer isto sem luz. Uma espécie de boicote da equipa técnica, que a vocês não vos passa pela cabeça o que é que era nessa altura. Havia logo dez pessoas que ficam sem trabalho. Não é por ficarem encostadas à parede, porque isso elas já estavam. Não há travellings todos os dias, ainda por cima no meu caso. Mas há assim uma desvalorização: “mas então ele não faz porquê?… O cinema não é isso”. Para o cinema, o cinema não é isso. Para o cinema, para a profissão, isso não se faz, são gestos muito radicais.

CN – Sim, mas no cinema americano havia, sobretudo no cinema clássico, havia esta lógica quase imediatista de quanto mais dinheiro tens, melhor consegues iluminar. Aqueles estúdios que iluminavam os filmes muito bem, para mostrar os meios de produção todos. De facto existe uma associação imediata por via da iluminação aos meios de produção.
JA – Eu queria pegar só um bocadinho nessa história do desligar das luzes e dos projetores e juntá-la àquela em que o teu diretor de fotografia te dizia: “mas não se vai ver nada, não se vai perceber”. E tu terás respondido que te interessava descobrir como contar a história também através do som. Ou seja, desde que fosse possível através do som perceber algumas coisas, mesmo se desse só para ver a silhueta daquela pessoa, isso iria funcionar. Mas também te queria perguntar, já que estamos a falar desse contraste que existiu entre as cenas filmadas em Lisboa e as cenas do bairro, se isso não te ajudou logo na altura a caracterizar aquelas figuras, como figuras noctívagas que quando chegavam a casa já era de noite, ou quando saíam para o trabalho ainda era de noite. E que se moviam entre aqueles corredores quase como vampiros. Nessa altura percebeste que podias usar essa parte técnica da limitação de luz para caracterizar ou definir estas personagens?
Sim, provavelmente sim. Se vocês tivessem visto aquilo, ou até provavelmente conhecem coisas parecidas, nem é preciso ir tão fundo na precariedade… Nesses sítios há uma atração pela sombra, que acaba por ser algo um bocadinho fácil até. Por isso é que dizia que o Ossos me mostrou uma data de coisas, todas em cadeia: pelo facto de fazermos barulho apagámos a luz, e depois foi por isso que muito provavelmente comecei a dar mais importância ao som, a que não dava antes. Quando comecei o filme estava completamente perdido, como muita gente está, numa espécie de nevoeiro, de confusão enorme entre dirigir uns atores, ver um plano, enfim, tudo o que é um filme que é confuso e mete medo e é disperso. São estas pequenas ações, decisões a que chamo de produção, mas que são da práctica e não têm muito a ver com a arte. Mas que depois têm. O Emmanuel Machuel [director de fotografia de Ossos] disse-me que tinha receio que as pessoas que vinham da sombra e passam na luz e voltam a entrar na sombra, que essa sombra fosse demasiado radical. E realmente era. Era uma coisa obturada, cinzenta e com muito grão. Era um horror o que eu via no monitor e percebi o susto dele.
Em todos os filmes que fiz, com excepção deste agora em que estou a trabalhar e que vai ser uma coisa mais preparada, a preparação é a rodagem. Em sentido lato, isto é, nunca se acaba de preparar, nunca se acabaria de filmar, e o filme, pelo menos no sonho dos cineastas que eu gosto, seria aquela coisa que não tem fim.
Por outro lado, sempre fui uma pessoa que esteve muito perto da câmara. Dos atores mas também da câmara. Sempre quis chegar muito perto de cada coisa e por isso pegava na câmara, e eles ficavam transtornados. Na altura (mas hoje ainda deve ser assim), ninguém tocava na câmara. Tocava o director de fotografia, o assistente e mais nada. O realizador pode-se lá chegar, mas não pega nela e vai a correr para o outro lado, que era o que eu fazia. Era o instinto, via coisas e queria imediatamente fazê-las. Portanto, eram coisas de prática, da produção, “chega-te para lá, tira dali aquilo”. Coisas que não eram artísticas, mas que depois percebi: “não, isto é o que faz a arte”. Isso e um bocadinho de sorte também, de colaboração, do espaço e do tempo. E fui percebendo as vantagens desta mudança. A dada altura, o Emmanuel Machuel disse-me, com uma grande melancolia, “sinto que que no próximo filme já não vais precisar de mim”. Sentia-se que o digital estava a chegar. Foi no estúdio do Lars von Trier, a Zentropa Productions que é co-produtora do Ossos, que vi pela primeira vez uma câmara digital portátil, uma Sony, e aquilo intrigou-me.
Em todos os filmes que fiz, com excepção deste agora em que estou a trabalhar e que vai ser uma coisa mais preparada, a preparação é a rodagem. Em sentido lato, isto é, nunca se acaba de preparar, nunca se acabaria de filmar, e o filme, pelo menos no sonho dos cineastas que eu gosto, seria aquela coisa que não tem fim. Por exemplo, a minha grande paixão pelo Andy Warhol é por isso. Nem no Godard se vê tão bem como no Warhol, essa ideia de que a preparação é o filme e o filme é a preparação. Há filmes dele em que ele está a falar e diz “agora senta-te aí”, “agora vai para ali”. Aquilo não estava planeado, mas era melhor que o filme que estava a pensar fazer.
As decisões chegam pela prática, pelo dia-a-dia, não é pela intenção, pelo guião, nem pela “famosa” caracterização das personagens que a gente tem que entregar no ICA. Aquilo é muito patético, não sei como é que não há uma revolta dos jovens quanto a isso. Isto porque é precisamente a mutabilidade, a surpresa da personagem que interessa, e isso não pode ser previsto. Acho eu. Como toda a gente sabe, a rodagem é uma coisa que muda o filme completamente. Isto porque as coisas não cabem nos nossos planos: são de outra cor, não há chuva, há vento a mais e, quem sabe, o tipo está rouco nesse dia. E, se calhar, até vou achar piada ao rouco e digo, “olha, agora vai pensar nisso e venha fazer rouco todos os dias”. Posso fazer isso, mas é muito perigoso. É como o Chaplin, que começava um filme e três semanas depois de o ter começado, encontrava uma coisa que punha em causa o princípio, portanto tinha que começar outra vez.

CN – A teu ver, a caracterização das personagens acaba por ser um gesto empobrecedor. Isto é, alguém que quer de alguma maneira criar qualquer coisa e começa logo retirando-lhe potencialidades.
Sim. Há um filme do Chaplin onde ele começa como porteiro do hotel e acaba milionário. São coisas muito práticas, decide vestir-se de outra maneira. Penso que isso está na série documental sobre o Chaplin, Unknown Chaplin (1983), realizada pelo Kevin Brownlow. Refiro isto porque se relaciona com a possibilidade de estar fora de um quadro que é antiquíssimo, que eu não percebo como é que ainda existe, porque não rende já. Mesmo os filmes de Hollywood, como vocês sabem, estão mesmo em processo de implosão. Há cinco filmes que rendem e o resto é um rame-rame que alimenta as plataformas, por enquanto, e pouco mais.
Dos que conheci só os Straub e o Reis é que viam os filmes deles em todas as sessões e com muito agrado, às vezes para estudar melhor, para pensar melhor. De resto, não conheço ninguém que não fuja a sete pés de um flash de um filme seu. Esse é também o meu caso.
Na América aquilo já não está como dantes, já não há Série B, já não há Midnight Screenings. Logo, esse quadro de fabrico dos filmes não tem razão de existir, enfim, parece-me. Isto para não dizer que todos os filmes mais interessantes, acho que vocês estarão de acordo, não têm nada a ver com isso. Há aí um documentário do Wang Bing [Youth]… Na minha opinião, acho que é um dos dois ou três filmes realmente sérios que se fazem por ano. Vocês são mais generosos do que eu, mas realmente, se a gente for rigorosa, além disso o que é que há mais? Assim, com alguma coerência, com alguma seriedade e decência.
CN – Ainda sobre a questão do restauro e sobre o modo como olhas para trás: preocupa-te que um filme teu possa parecer envelhecido? E, mais genericamente, o que é que consideras um filme envelhecido? Como é esse processo de envelhecer no cinema?
Nunca pensei muito nisso. Já tive daquelas situações, como se vê no final do filme dos Straub [Où Gît Votre Sourire Enfoui? (2001)], em que estou à espera para uma conversa no final da sessão e espreito para a sala para ver quanto tempo falta até o filme acabar, e subitamente foi algo que me ocorreu. De qualquer modo esse é o peso dos anos, não é o peso do teu olhar. O vosso olhar, desculpem lá, é o de quem não faz filmes, que vê os filmes, que escreve sobre eles, que os pensa, etc. Dos que conheci só os Straub e o Reis é que viam os filmes deles em todas as sessões e com muito agrado, às vezes para estudar melhor, para pensar melhor. De resto, não conheço ninguém que não fuja a sete pés de um flash de um filme seu. Esse é também o meu caso.
Sou muito apegado a estas coisas densas, profundas, escuras e solitárias do cinema. O cinema é super solitário, há que dizê-lo. Acho que o princípio do cinema é uma coisa da solidão. Contudo, o confronto com o ecrã e com a imagem é uma coisa que todos achamos que nos devia aproximar da realidade, do real. Ou, como no Chaplin, até mesmo de uma coisa que era chamada a função social do cinema. Estou desse lado, não estou do lado do experimental, da psicologia – e do fantasma muito menos. Mas… Mas é evidente que o cinema vai sempre para a escuridão.

Nos meus filmes, O Sangue é uma espécie de prólogo, de algo que começa com Casa de Lava, e depois se chega a um ponto em que tudo comunica. Os meus filmes são um conjunto de cartas. O que quero fazer é retratar a experiência da velhice, filmando. Como é que passamos pelo tempo a filmar? Envelhecer é passar tempo. A minha tentativa, nesta mudança de pensar em como fazer filmes de forma melhor, foi a de tentar fazer cinema com mais tempo. Trabalhar com mais tempo, dar mais tempo a um assunto, estar mais tempo com as personagens. Estar mais nas Fontaínhas, estar mais em casa do Ventura, estar mais com a Vanda, estar mais com aquele e depois ver outro e interessar-me por isso.
Eu, se pensar nisso, acho que nos meus últimos segundos de vida queria estar em algumas partes dos filmes que fiz. Claro, quero estar noutros filmes também, gostava de estar num filme do Lubitsch. Mas, pensando que a vida é minha, gostava de estar numa coisa que foi interessante, que deu frutos, que não foi muito mal feita. E, portanto, em algo que me dê paz
Claro que há aqui muitos interesses diferentes, que nada se relacionam sequer com o cinema. Embora todos vão dar ao cinema, porque é disso que gosto mais. Mas, por exemplo, interessa-me saber como vivem as pessoas. Não é um interesse cinematográfico. Depois passa para isso. É uma curiosidade que existe mais em alguns cineastas do que noutros. Por exemplo, nos filmes do Godard isso é muito evidente e é pura curiosidade. Como é que aquele é? Para onde vai? Sobretudo depois dos vídeos.
Claro que podemos pensar nos filmes, isso é uma grande parte, pensar no cinema. Mas isso não chega para mim, tinha que lá estar. Para mim o estar lá é sempre muito importante. E é estando lá que se envelhece. Ou seja, envelheço a conversar com o Ventura. Ele também. E isso faz bem ao cinema. É um bocadinho metafórico ou abstrato, mas faz bem que esse trabalho continue. É um trabalho que não conta com a câmara, que não conta com a luz ou com gravador. Posso pôr o iPhone a gravar, porque não vou ter memória para guardar todas as palavras dele. O estar lá, claro, implica que nos liguemos às pessoas.
No meu caso, as pessoas têm um papel importante. Sei lá, não sou paisagista… Mas, por exemplo, um cineasta como o James Benning, que tem interesses opostos aos meus, tem, no entanto, também um método semelhante ao meu, que não tem a ver só com a câmara. No caso dele, está ligado à meditação, à contemplação, ao pensar a relação dele com o que o rodeia, o que ele deseja. Diria que é onde ele quer estar no último segundo da sua vida.
Eu, se pensar nisso, acho que nos meus últimos segundos de vida queria estar em algumas partes dos filmes que fiz. Claro, quero estar noutros filmes também, gostava de estar num filme do Lubitsch. Mas, pensando que a vida é minha, gostava de estar numa coisa que foi interessante, que deu frutos, que não foi muito mal feita. E, portanto, em algo que me dê paz. Por exemplo, no Vitalina Varela (2019) é um bocadinho óbvio: nem é por mim, mas é por ela que isso se passa no filme. É preciso alguma paz no fim, alguma abertura, algum conforto espiritual. Que, no caso dela, é absolutamente religioso.
Gosto desta ideia de que vamos envelhecendo filmando, como se vai envelhecendo pintando. Por exemplo, tenho um grande amigo, que acho que é um dos maiores artistas portugueses, o pintor João Queiroz. Ele já está muito mais avançado do que eu, basta olhar para as pinturas dele. É um trabalho completo, inteiro, de procura. Aquele trabalho, sei lá, que havia no Cézanne. Claro que de uma maneira mais corriqueira, se os filmes envelhecem, envelhecem sempre porque são também um bocadinho documentários daquele tempo e são, sobretudo, retratos das pessoas, ou documentários sobre as pessoas em dada altura. Por exemplo, vejo O Sangue e recordo-me que o Pedro Hestnes já não está cá há quase quinze anos. Não consigo pensar nisso, é duro.
CN – Falaste que tens um certo pavor a ver os teus próprios filmes, que é, no fundo, seres confrontado com uma cristalização das tuas decisões, más ou boas. Mas estas decisões, por definição, também podem ser, ainda que só imageticamente, atualizadas por todos, inclusive pelo próprio que as criou.
Sim. A minha escola, a minha formação e gosto no cinema sempre foi um bocadinho… bom, completamente clássico. Claro que há uma contradição que vivo, que sinto e que depois se vê nas coisas que faço, e que se traduz no gosto em ver o filme terminado. Gostava de saber terminar melhor e fico com grande desgosto quando eles terminam de uma maneira que não parece exatamente certa. Mas prefiro um filme que termine e quero pensar nisso.
Preciso de saber dizer bem adeus, num filme. Conseguir despedir-me bem. E isso era uma das mil coisas que que distingue um grande cineasta. Quando há um grande filme, é porque o Fritz Lang soube dizer bem adeus, ou os personagens nos dizem adeus de uma maneira feliz, ou simpática, mas definitiva. É adeus. Acabou-se ali.
Estou quase tentado – tu és levado da breca -, estou quase tentado a dizer que se envelhece bem no cinema. Ou antes, uma boa maneira de envelhecer é pelo cinema. Se a gente se agarrar muito bem ao cinema vai com certeza acabar bem. Porque… como é que se pode acabar mal com o Chaplin, com o Lubitsch, com o Murnau, não é?
É muito melhor trabalhar assim. E não me refiro àquilo que se diz sobre mim, do filmar em pequeno e pobre. É antes pensar mais conscientemente esta práxis, esta coisa que nos acontece todos os dias, se lá estivermos todos os dias. Este lá pode ser o décor, mas também pode ser o teu quarto, mas com um pensamento menos reacionário, menos quadrado, sem que a gente caia em vanguardismos. Não é preciso estar a pensar tão classicamente como o mais clássico dos argumentistas de Hollywood. Por exemplo, uma vez, quando estava a mostrar à Vanda uma primeira versão do filme, ela disse-me: a Vanda que acaba este filme morreu. E isto foi antes dela ser mãe, antes do Juventude em Marcha, antes dela mudar de vida, antes da mãe dela morrer, antes até da irmã morrer. E, na altura, pensei, pronto, descobrimos um fim para este filme. E é provavelmente o meu filme mais aberto, parece que há, ainda assim, uma ideia de “e a vida continua”, haverá mudança, isto não pára, a terra gira, etc. Mas não. Ela morreu naquele filme, porque finalmente se viu como uma personagem de ficção, ao mesmo tempo que sentiu tanta coisa que a fez dizer, “a partir de agora, eu e estas pedras, que já não existem, é só uma parte de mim que se vai embora, a outra fica aqui debaixo deste escombro”. Isto é formidável porque há muita coisa que escapa ao guião. Tu até podes escrever isto mas depois como é o dizes no fim do filme? No Miracolo a Milano (O Milagre de Milão, 1951) ou no Heaven Can Wait (O Céu Pode Esperar, 1943) estão lá coisas deste género, muito bem escritas, muito bem estruturadas. Mas fazê-las hoje, sem guião, só é possível assim, só podem ser colhidas na realidade – é o que eu acho. E acho também que a realidade te dá isto, se lhe deres qualquer coisa de volta.
Isto também é envelhecer bem, creio. Não estou a falar do aspecto físico, estou a falar de um passar do tempo por ti e de ti pelas coisas, um tempo estruturado, decente. Estou quase tentado – tu és levado da breca -, estou quase tentado a dizer que se envelhece bem no cinema. Ou antes, uma boa maneira de envelhecer é pelo cinema. Se a gente se agarrar muito bem ao cinema vai com certeza acabar bem. Porque… como é que se pode acabar mal com o Chaplin, com o Lubitsch, com o Murnau, não é? É claro que tu podes dizer isto da pintura, podes dizer isto do teatro e da música. Mas insisto, no cinema, porque é um espelho tão forte da passagem do tempo ou, como diz o Cocteau, da morte a galope.
Agora que penso nisso, do primeiro plano do Vitalina Varela, das que participaram naquele cortejo, actualmente, há apenas uma pessoa viva. Não posso ver aquilo. No outro dia, no sítio onde estava a passar, vi um, dois segundos talvez, e tive que voltar as costas. Dali, só o Ventura está vivo.

CN – Tenho dificuldade em verbalizar esta sensação que me fica quando vejo os teus filmes, porque não é exactamente racional. Sinto que, de certa maneira, os teus filmes nos ajudam ou nos “ensinassem” a olhar as coisas à nossa volta com mais intensidade – as pessoas, os objetos, os lugares. E sinto isso, talvez, porque tendemos a viver muito num regime de visibilidade que se opõe ao dos teus filmes. Um regime de visibilidade dispersa onde as coisas simplesmente passam por nós. É um regime em que concentramos o olhar em lugares visualmente muito pobres. Os teus filmes estão lá para nos dizer que há uma outra forma de viver e de olhar. Penso que isso, na prática, se relaciona com o que temos estado a falar: olhar como quem cuida, a questão da presença, a ideia de troca, de passagem do tempo e, também, do envelhecimento.
No Ossos senti que ia encontrar alguma coisa. Acho que isto se passa com muita gente, mas capitaliza-se muito no lado artístico. No cinema é mais complicado, uma vez que estás em contacto com a realidade. Aí o pensamento em ping-pong pode ser muito mais proveitoso. No Ossos, nesse momento, percebi que a dispersão de que falas, que não é só a confusão do mundo, que nos perturba, que nos engana, que nos distrai, não estava só à frente da câmara, mas estava atrás, sobretudo atrás. Pensei que a realidade e o mundo, tal como eu devo vê-lo e trabalhá-lo, tem de ser menos confuso, mais concentrado. Para isso tens que te livrar do que está aqui atrás, que fala, que brinca, que é indecente, que não ajuda, que não colabora… É claro que também colabora, que muitas vezes ajuda, mas é algo que tem de ser trabalhado.
Vejam-se os primeiros filmes, bons ou maus, e percebe-se que quase todos são sempre um bocadinho demais, são excessivos, românticos, etc. Mas o cinema é assim. Agora, ainda é assim, mas tem de ser algo pelo qual se combate. Estou desse lado da barricada. É necessário combater para se chegar a qualquer coisa que seja verdadeiramente romântica.
Já a intensidade tem mais que ver com o trabalho sério. Percebi que para trabalhar me interessava fechar-me num quarto, como se fosse para pintar, ensaiar música, ler ou escrever poesia. No Quarto da Vanda interessava-me fechar-me num quarto com esta rapariga, que me parecia interessante e que sobretudo me convidava. Ou seja, havia um lado da realidade que me convidava a entrar. Então existiu uma confluência no tempo no espaço, um encontro de temperaturas ou de feitiços entre nós. Se calhar, se eu estivesse com o radar virado para outro lado e ela não estivesse tão na heroína, se calhar a coisa não se tinha dado. Mas deu-se. Era preciso que a gente se fechasse num espaço para trabalhar e foi isso que ela me disse. Foi um pouco o que fiz – sem perceber – no fim, com a porta que se fecha. É um cinema que se fechou, que eu não renego, que sinto como meu, mas que passou a outra coisa. Essa qualquer coisa que tem de mudar, mas de que só tomei consciência depois de ter feito esse plano em que realmente havia uma das personagens que fechava a porta. Aí percebi que esse devia ser o último plano. Não estava previsto. Mas foi aí que percebi, “vou ter que entrar nesse quarto para o qual a porta se fecha. Vou ter de perceber muito melhor as coisas do mundo em geral, sem apoio do guião, sem apoio de tanta coisa que me ajudava do lado do cinema.”
É algo interessante de se fazer e sei que parece um bocadinho assustadora. Na altura pensei, que se lixe, realmente, que se lixe, se não der, não deu. Até certo ponto os primeiros seis meses do No Quarto da Vanda nem foram muito angustiantes, foram mais… Eu nem percebia bem se aquilo existia, se aquela imagem existia. Percebia, isso sim, que a situação era, como dizes, muito intensa. E disse para mim mesmo, “isto ou não bate certo ou bate muito certo”. O que queria ter feito nos filmes anteriores, essa intensidade de que falas, provavelmente nunca a consegui escrever, nem nunca a consegui dominar.

E, isso é certo, era algo que não acontecia em filmes corriqueiros, correntes. Havia no Journal d’un curé de campagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1951), aí sim. Mas, quer dizer, eu não sou o Bresson, isto não é aquele tempo, isto não é aquele assunto, mas vi em cada plano uma coisa descomunal. “Como é que eu consigo fazer isso?” E, aos poucos, eliminando isto, retirando aquilo, pude pensar doutra maneira e acabou por ser muito mais radical. Isto porque eu também sou assim, que se lixe.
O que me apareceu à frente foi só intensidade – intensidades várias. Era a realidade. Era aquela, mas era a realidade. Aquele mundo é só feito disso. É tão feito disso que tive que me distanciar um bocadinho. Para analisar e para ver aquilo, e para que essa intensidade fosse a que devia ser, do meu ponto de vista, tive que começar a estruturar o guião. Aí é que percebi, “mas isto é o guião” e é a maneira como se deve fazer. Não pensava em documentário. Claro que me passou várias vezes pela ideia que aquilo estava muito mais perto do documentário do que da ficção, porque estávamos a filmar coisas em bruto. Mas foram os brutos que me começaram a pensar, eles próprios estabeleciam associações, o que é que queriam ter à frente e atrás. É muito romântico, tem um lastro, tem um apelo, quase… há uma mistificação enorme à volta do cinema.
Vejam-se os primeiros filmes, bons ou maus, e percebe-se que quase todos são sempre um bocadinho demais, são excessivos, românticos, etc. Mas o cinema é assim. Agora, ainda é assim, mas tem de ser algo pelo qual se combate. Estou desse lado da barricada. É necessário combater para se chegar a qualquer coisa que seja verdadeiramente romântica, no sentido literário, ou se se quiser, intensa, como dizes.
Comecei a usar a câmara de filmar como uma ferramenta, como um instrumento de tomar notas, de pesquisar, de escrever um bocadinho sem caneta. Portanto, filmar tem um bocadinho de estudo sem pretensão de estudar. Isso era algo que não fazia antes e que não fazia sobretudo com a câmara, porque é uma coisa caríssima. Agora, esse fantasma da câmara assombra qualquer cineasta principiante. Ele pensa na câmara quando está a escrever o guião, mas não é possível. Só estás com a câmara quando estás de facto com a câmara.
Mas a intensidade pode ser muito invisível, pode ser só sugerida, pode ser, sei lá, como o Ozu. Às vezes há planos… E não estou a falar dos planos vazios, estou a falar das pequenas pausas do Ozu, que têm essa intensidade… Nos filmes do Ozu, quando falta uma das pessoas, eles estão sempre a falar dela e aquilo é muito bem feito porque está bem estruturado em termos de espaço, de tempo, etc. O homem matou a cabeça a pensar nisso. Quando me vi diante daquela realidade é que comecei realmente a pensar no guião, que é uma ferramenta que nunca usei muito ou a que nunca mais recorri, mas comecei verdadeiramente a pensar em palavras que não uso, que não prezo particularmente, como dramaturgia, estrutura dramática, essas coisas que não fazem qualquer sentido para mim, mas identifico-as, vejo como elas aparecem na realidade, na vida.
Vejo como um tipo acaba na prisão, vejo como é que a Vanda se consegue levantar de um pesadelo… E tudo isso, todos os dias, constituía uma espécie de um armazém de situações que realmente iam construindo o filme. E é isso que não compreendo nos cineastas mais novos, espanta-me um bocadinho que continuem a insistir num modelo que já não dá, que já deu.
JA – Queria pegar nessa referência ao Ozu, porque quando estavas antes a falar sobre envelhecer com o cinema, veio-me logo o Ozu à cabeça. Ele trabalhava muitas vezes com os mesmos atores, criou aquela família de personagens, e isso reflecte-se nessa continuidade que tu exploras no teu cinema. Além disso, há entre os vossos cinema uma semelhante atenção aos espaços vazios, às pessoas que desaparecem, aos objetos que ficam – os tais pillow shots que ele usava. Parece-me que também fazes isso de certa forma, especialmente no Vitalina Varela, na relação com os objetos religiosos, com os objetos domésticos abandonados – na casa que ficou vazia por causa do desaparecimento do marido.
Mas lembrei-me, também, do filme do Victor Erice, El sol del membrillo (O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro, 1992), e da forma como também aí se filme o tempo e o envelhecimento que ela implica. Ele filma o amigo, pintor, durante vários meses. Aquilo não resulta num quadro porque o amigo acha que não há condições, mas ficamos com o registo do cinema, da passagem do tempo, da vida que acontece, do envelhecimento, da passagem do tempo. Há, a meu ver, uma ligação com o que acontece no No Quarto da Vanda.
Quando estavas a fazer o No Quarto da Vanda, sabias, de partida, que te querias retirar de cena? Quando tomaste consciência de que o filme nunca denunciaria a tua influência sobre as cena? E enquanto filmavas, estavas já a pensar na montagem do filme? “Como é que eu vou usar isto, se vou conseguir pegar-me nesta parte ou vou focar-me mais naquela parte…”
De facto, comecei a usar a câmara de filmar como uma ferramenta, como um instrumento de tomar notas, de pesquisar, de escrever um bocadinho sem caneta. Portanto, filmar tem um bocadinho de estudo sem pretensão de estudar. Isso era algo que não fazia antes e que não fazia sobretudo com a câmara, porque é uma coisa caríssima. Agora, esse fantasma da câmara assombra qualquer cineasta principiante. Ele pensa na câmara quando está a escrever o guião, mas não é possível. Só estás com a câmara quando estás de facto com a câmara. Antes não fazia filmes com a câmara e agora estou a fazê-los desse modo. Quando fazes um filme sério com a câmara – da forma que que defendo – tu não estás à procura de coisas artísticas, estás primeiro à procura do que é que é o filme e, depois, se esse filme é sequer possível.
Isto é muito prático e qualquer fotógrafo percebe isso. Os fotógrafos andam à procura sozinhos. Mas não é só uma coisa relacionada com a câmara, um bom arqueólogo faz o mesmo, um trabalhador social, um sociólogos, etnólogos, etc. Todas essas pessoas estavas muito próximas do trabalho que comecei a fazer no No Quarto da Vanda. Nessa altura, para mim, a câmara ficou muito menos pesada. Mas para isso foi preciso libertar-me do peso dessa instituição no meio do cinema – a câmara – e de pergaminhos que é preciso ter com ela. É completamente reacionário o sistema compartimentado de uma equipa de cinema. Só depois disso é que pode vir a intensidade e o romance. E só vem se lá estiver e se for possível, e só aí pode ser aumentado, baixado, trabalhado, estruturado – o que responde um pouco à tua última pergunta.

Esta forma de trabalhar não é muito frequente e, então, quanto às escolas de cinema isso nem se fala, é que nunca se põem aquelas questões muito simples que acho que são básicas: tu não podes filmar certas coisas porque, simplesmente, não podes, porque as pessoas não deixam, porque estão doentes, porque não querem que se lhes veja a casa, porque não querem aparecer… Isto não se ensina numa escola de cinema, mas devia! É uma questão de produção. Não podes pagar todos os décors do mundo… Essa é a infelicidade dos primeiros filmes da Escola de Cinema de Lisboa e do Doclisboa e do não sei quê. Simplesmente não podes. Se fores um bocadinho mais à frente esse teu filme não existe meu caro, não há razão para o fazer e é mesmo melhor não o fazer. É algo que estou sempre a dizer, há filmes a fazer e há filmes a não fazer. Há décors a filmar e há décors a não filmar. E não é por nenhuma questão metafísica, não, é que não te deixam entrar. Isso foi algo que aprendi e isso estrutura o filme, escreve-o.
Como já disse o Jean-Marie Straub, qualquer pessoa pode fazer isto, se tomar a câmara como instrumento de pesquisa, senão pensar logo que é um pincel e que é um grande artista. Vai estar no Indie? Vai estar em Cannes? O que é que importa? Para mim 90% dos filmes que andam por aí não existem. Não são filmes, são umas coisas que já foram mais bem feitas. O que eu critico, sobretudo, é que essas coisas têm muito pouco contato com a realidade (porque não podem) e, portanto, têm umas escapatórias, que podem ser brilhantes, como os carros, podem ser incríveis e muito bem iluminadas e com um panache e um fogo de artifício
Não posso ter a Dona Júlia, que ficava tão bem a dizer à Vanda, “oh filha que vida a tua”… não posso porque ela disse-me que não, que era uma péssima ideia. Tenho um grande amigo, talvez a pessoa que mais admiro, que é o Wang Bing, que quando começou afirmava em entrevistas que nunca tinha visto nada de cinema. Hoje lá se convenceu e diz sim, sim, vi o Pickpocket (O Carteirista, 1959) mais de cem vezes em Pequim, quando tinha doze anos. E isso é evidente. Até podes chegar tarde ao cinema, mas se ganhares o gosto ou se aprenderes a ver, creio que saber olhar é menos aborrecido, apesar de tudo, que ler manuais de sociologia ou de antropologia. Ver um filme, apesar de tudo, é bem melhor.
Uma pessoa escreve o guião com os filmes que viu e com outros elementos da realidade que se está a investigar. Quase que prefiro esta palavra, investigar, porque é isso que eu faço, sinceramente. Acho que estou, finalmente, a responder à tua pergunta. A câmara é um microscópio ou um telescópio, como lhe chamava o Godard, uma enxada, como lhe chamava o Straub, e agora tens de começar a ver se a enxada cai aqui ou cai ali… Com o microscópio vês bactérias e com telescópio vês galáxias. Mas nada disso faz o filme, o filme não está ali, não te é dado, não te é oferecido. Ao princípio parece sempre que o filme é impossível, só depois, aos poucos, pelo estudo, pela aproximação, pelas conversa é que se vai tornando possível.
No meu caso foi assim. Percebi que o filme se aproximava das pessoas. Mas as pessoas são, também, as suas casas e tive a sorte de encontrar pessoas que me deixaram filmar as suas casas como histórias de vida. Como já disse o Jean-Marie Straub, qualquer pessoa pode fazer isto, se tomar a câmara como instrumento de pesquisa, senão pensar logo que é um pincel e que é um grande artista. Vai estar no Indie? Vai estar em Cannes? O que é que importa? Para mim 90% dos filmes que andam por aí não existem. Não são filmes, são umas coisas que já foram mais bem feitas. O que eu critico, sobretudo, é que essas coisas têm muito pouco contato com a realidade (porque não podem) e, portanto, têm umas escapatórias, que podem ser brilhantes, como os carros, podem ser incríveis e muito bem iluminadas e com um panache e um fogo de artifício fantástico, mas não passa do fogo de artifício. O tal momento, aquela coisa que está em cinco ou seis filmes por ano, aquela cena que nunca mais esqueces, isso é muito raro. Quando vejo o No Quarto da Vanda, cada vez que olho para aquilo, vejo o trabalho que aquilo deu, ou seja, as coisas que nós procurámos. Eu de um lado e ela do outro, para dizermos e fazermos aquilo da maneira que parecia mais adequada à nossa máquina, ao nosso ser. É um filme em que os meios e os fins se encontram e têm alguma felicidade. Mas para isso precisámos de tempo.
[final da parte I]