Eis a segunda parte da nossa entrevista com Pedro Costa [a primeira parte pode ser lida aqui]. Nesta conversa, o realizador português fala-nos do filme As Filhas do Fogo, da importância da música no seu cinema, da vivência do 25 de Abril e a relação com a sua arte, do regresso a Cabo Verde, dos problemas dos estudos fílmicos, da crítica e da pedagogia e até desse vício chamado… dinheiro.
Carlos Natálio (CN) – Em relação a As Filhas do Fogo (2023), pedia-te para falares um pouco sobre o contexto de produção deste filme, e em particular sobre a questão da música. Ela surge em quase todas as tuas obras, mas aqui, também pela curta duração, a música tem um poder que parece suster o próprio filme – como é que a música assumiu esta importância aqui? E imaginas-te a fazer um musical?
Bem, este filme vem sobretudo das mulheres, porque são as filhas que eu encontrei na Ilha do Fogo, quando estava a filmar o Casa de Lava, na aldeia de Chá das Caldeiras, a aldeia mais alta da ilha. São as habitantes daquela cratera, que se vê no filme. Aliás, são algumas das mulheres, ou descendentes das mulheres, que se veem no filme Sans soleil (1983), do Chris Marker: ele chama-lhes “sentinelas de um horizonte eterno”, uma coisa assim, uma espécie de mulheres numa espera eterna, permanente. No texto dele e no filme há essa poética.
Evidentemente que são mulheres à espera do regresso dos maridos. Portanto, partem sempre e acabam sempre na mesma história, no mesmo mito. Essas mulheres deixaram-me uma recordação a que regresso muitas vezes. E até estou convencido que muitas delas, de maneiras diferentes, estão nos filmes todos. De uma forma mais evidente sendo mulheres, de uma forma menos clara, às vezes como partes de homem. Por exemplo, acho que o Ventura contém em si próprio essa dimensão feminina e uma parte cabo-verdiana dessa espera. Portanto, elas passaram muito por todos os filmes, de várias formas. E eu, há pouco tempo, fui convidado para trabalhar com Os Músicos do Tejo, um grupo de música antiga, sobretudo barroca. E tive esse convite para trabalhar com eles numa espécie de pequena peça de teatro. Porque os meios não eram muitos, fizemos uma espécie de oratória, curta, uma hora, e, portanto, é essa a forma. E lembrei-me dessas mulheres, daí o título As Filhas do Fogo. Começamos a construir essa oratória, essa espécie de reza, com uma coleção de canções. Do Barroco, evidentemente, Monteverdi, Bach, Pergolesi, mais algumas clássicas do Romântico, e até modernas, pelo menos uma do Gil Scott-Heron.
O Gil Scott-Heron foi uma pessoa com quem eu tive um pequeno encontro, e com quem tinha pensado fazer um filme – isto responde já à tua outra pergunta. Tive um primeiro encontro com ele em que lhe falei dessa ideia. Aliás, foi ele que um pouco a provocou, apenas porque ele era muito parecido fisicamente com o Ventura. Se vocês virem algumas fotografias dele, reparam nisso. E eu e ele, quando nos encontrámos, a primeira coisa que ele me disse foi “eu quero conhecer esse irmão”. A segunda vez que eu falei com o Gil Scott-Heron foi em Lisboa, depois de um concerto que deu cá, só que ele partia na manhã seguinte. Portanto, estive uma noite com ele e não era possível estar com o Ventura. Mas foi nessa noite que lhe falei se estaria interessado ou disponível para fazer um filme comigo.
E foi assim, tão abstrato e improvisado quanto isto. É evidente que eu admirava o músico, o compositor, o poeta, para além da pessoa politicamente ativa que era. Portanto, era para ser um filme musical. Não sei que forma teria. Acho que teria uma forma próxima daquela parte do elevador do Cavalo Dinheiro. Com uma coisa muito concentrada, muito despida. Provavelmente só mesmo com o Ventura em cena. Na altura eu não conseguia imaginar que forma tomariam outras vozes. Nós sabíamos que eram muitas vozes na cabeça de uma pessoa. Que saíam em forma de canção. Mas eu não conseguia ter ideias. Não via quem podia falar. Só que, entretanto, o Scott-Heron morreu… Antes, ainda chegámos a falar mais um par de vezes pelo telefone e ele disse-me que estava a trabalhar, que já tinha algumas coisas escritas, que começava a haver alguma coisa. Eu pouco, porque não recebia nada ainda. De repente, tive essa notícia e fiquei um pouco desarmado.
Na música, tem de se ter sempre uma atenção ao outro, ou seja, ao outro executante, ao outro cantor, ao outro músico. Por vezes, isso é tão ou mais importante do que a tua própria participação.
Ia começar a fazer o Cavalo Dinheiro. Tinha começado a reunir financiamentos, muito poucos, financiamentos portugueses de documentário, que são, como vocês sabem, em relação à ficção, uns 10% do que dão à ficção. Portanto, comecei um pouco a pensar em reação à morte dele e ao vazio. Mas sempre com a ideia de que haveria música. Provavelmente haveria uma forma… Não digo rimada, mas poética, no texto, que não seria propriamente o diálogo. E parti para a parte dessa cena do elevador, sobre a qual já tinha uma ideia vaga, porque o Ventura me tinha contado e proposto um encontro num elevador com um demónio. A visão dele era um demónio. Como se fosse o mal. E depois, pouco a pouco, aquilo tomou outra forma, o soldado. Apesar de tudo, aquilo tem ainda um bocadinho a forma do que podia ter sido esse filme que era suposto ser um musical. Foi, por um lado, um grande desgosto a morte do Scott-Heron, por outro, não deixei cair, nunca deixei cair a ideia, continuava presente… e com este convite dos Músicos do Tejo, surge num trabalho diferente, porque trabalhar com músicos, cantores, uma orquestra, é bastante diferente do que trabalhar com atores ou não atores.
Aqui não era começar a pensar em fragmentos, em peças, etc., que é assim que se pensa no cinema, apesar de tudo. Gostei imenso do trabalho, já tinha um pouco a ideia que se aprende bastante e que é muito interessante trabalhar com músicos, até porque já tinha feito aquele filme com a Jeanne Balibar [Ne change rien (2009)]. E o tempo que passei a filmá-los, esses músicos, de uma maneira muito mais documental, quer dizer, estava a assistir e a tentar construir, apesar de tudo, qualquer coisa, com eles.
O tipo de trabalho deles incita muito ao trabalho da pessoa que está a filmar, numa espécie de colaboração silenciosa, ou seja, deve-se trabalhar como eles trabalham, com muito mais atenção do que uma equipa de cinema. Na música, tem de se ter sempre uma atenção ao outro, ou seja, ao outro executante, ao outro cantor, ao outro músico. Por vezes, isso é tão ou mais importante do que a tua própria participação. Por exemplo, num dueto, quarteto, num quinteto de sopros. E vocês veem isso no Ne change rien, acho eu.
Mas surge em qualquer registo, foi isso que me impressionou muito. No jazz vê-se muito bem, aquela espécie de expectativa, de esperança. Na participação que vai surgir do outro, do cantor, do saxofonista. E essa espera de quem espera é tão carregada de emoção e de sentimento como, às vezes, a própria execução. Nos últimos programas de televisão com a Billie Holiday, em que ela canta quatro ou cinco músicas, ela está a tocar com os músicos habituais e até, acho, com os três ou quatro casos amorosos dela. E é impressionante porque cada um espera o outro com uma emoção incrível. E, portanto, é evidente que quando ela canta é o fim do mundo. Mas quando ela não canta, a atitude e o olhar dela são os mesmos. É a mesma emoção. Esse trabalho e essa dinâmica eram fantásticos que existissem numa equipa de cinema.
Eu já o conseguia às vezes, mas tem de ser de três ou quatro pessoas, claro, três ou quatro amigos ou cúmplices. Exclui completamente aquelas coisas que falámos antes do peso do cinema convencional. Isso ficou sempre, esse desejo, enfim, de fazer qualquer coisa. No teatro, esta oratória com os Músicos do Tejo deve ser feita com o público de pé, não sentado, e este deve circular.
[N’ As Filhas do Fogo], confesso que gostei muito, sobretudo, de trabalhar com as cantoras porque encontrámos um grupo de cantoras, essas filhas do fogo. E fizemos um pequenino rudimento de histórias. Umas imigrantes que vêm do Fogo, da biografia da África em geral, para a Europa. E isso é contado por uma série de canções, as tais canções de várias épocas. Há uma origem destas mulheres do Fogo que sempre esteve presente. Enfim, é um pouco a Vitalina que, não sendo do Fogo, é, apesar de tudo, a forma mais narrativa ou clássica dessas mulheres.
As anteriores eram apenas fragmentos, um monólogo aqui e uma sombra ali. Na Vitalina é a história dela, a espera do marido, aquela vingança e tudo. Mas que tem a ver com essa espera dessas mulheres, com esse estado um bocadinho “Antigonês” [de Antígona], que eu via muito lá nessas mulheres e que depois a Vitalina puxou de dentro dela essa mesma fúria.
Depois desse oratório, achei que podia fazer um pequeno filme. Nem começou como filme, mas sim como teste, com cada uma das cantoras, que são só três, voltando a partir a sua presença, ou seja, voltando outra vez ao cinema. Para mim, imaginando que elas estão cada uma na sua pole position, quando se parte na história, onde é que cada uma está e que canção é que podíamos cantar e como é que podíamos figurar essa coisa.
Foi assim que comecei realmente a fazer esses testes, e o filme foi feito realmente a dois, a três às vezes, num pequeno estúdio da Escola Superior de Teatro e Cinema, que foi emprestado durante umas três ou quatro semanas. E nós preparámos e fizemos uns cenários, uma maneira de filmar um bocadinho laboriosa, com alguns efeitos visuais, muito primitivos, mas que era preciso serem preparados. Depois o trabalho com cada uma delas foi muito interessante, e aí comecei a pensar em talvez continuar um bocadinho estes testes para algo, qualquer coisa que eu agora estou a tentar trabalhar.
Portanto, estou num momento associativo, estudantil e associativo, em que, claro, está a voltar a lembrança do Gil Scott-Heron, que é muito protetora, muito rigorosa. Depois, as músicas, elas próprias, quer dizer, o texto musical e a palavra e a música, são severas. Isto porque uma nota musical é uma nota musical. Um dó é um dó, um dó não é um fá. Coisa que no cinema nós não temos, não é? Quer dizer, o Eisenstein lá tentou, os clássicos tentaram um bocadinho, mas ninguém nunca acreditou muito nisso. Mas é muito da fraqueza do cinema, e eu incluo-me nele, mais contemporâneo, e os estudos fílmicos e a análise ainda tornam hoje o caldo mais perigoso. Cada vez menos um dó é um dó e um fá é um fá no cinema. Já foi mais do que hoje, quer dizer, cada vez vivemos mais no reino do vale tudo ou do vago face à estrutura. Pensa-se pouco sobre estrutura: quando é que se começa um plano, porquê, com que altura de câmara, com que ângulo, com que focal, podemos ir por aí fora na técnica.
Bom, mas estou neste momento nesse tipo de pensamento e preparação, talvez um pouco inativo no sentido em que é uma coisa mais difícil de encontrar, os passos são mais difíceis de encontrar. Apesar de tudo, deve-se sentir nos meus filmes que eu sou prudente e tenho algum pudor com a música. Mas, enfim, acredito que se possa fazer. E há exemplos: eu tenho imensos filmes de que gosto muito, que são da música, dependem da música, são pela música, são com música, também são musicais, outros são menos. Por exemplo, há bocado falei do Journal d’un curé de campagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1951), para mim é um musical, nem sequer tem muitos minutos de música, tem a chamada música de fundo, mas tem a ver com outra coisa, tem a ver com, além do espírito, tem a ver com a construção… Há também os musicais-musicais de Hollywood até ao Straub, e até coisas um pouco mais recentes, que eu gosto imenso, ou admiro, e portanto, acho que sim, acho que podemos fazer. Sinto-me um bocadinho protegido por esta ideia das raparigas e das mulheres, que me deixaram uma lembrança tão forte, tão forte, que eu acho que têm de voltar mesmo elas próprias, de alguma maneira, jovens, velhas, ou todas.
Não quero ir muito mais longe a explicar-te a força do Chega nos sítios onde estou a trabalhar. Não quero entrar por aí. Mas perder a convicção política, social, da solidariedade social, é uma coisa que vejo todos os dias a cair, percebes?
É uma fase da qual sinto que me estou a aproximar. Eu não quero estar a ser contaminado pelas vossas “maledicências”, mas vocês insistiram tanto no envelhecimento que é verdade que nós envelhecemos filmando: o Ventura, a Vitalina, a Vanda. Todos. Todo aquele povo no qual eu me incluo, e todo esse cinema, esse projeto, que é fiel, e continua fiel e fidelizado, continua lá, mas, confesso, e já tenho confessado muito, tem menos bases, tem menos décor, tem menos cenários… Eles disseram que está um pouco acabado, que é um bocado conversa acabada, o que nós fizemos. E fazer mais é, se calhar, borrar a pintura. Se calhar é preciso passar a outro tipo, a outro patamar. Tenho andado a pensar que, de facto já não há, já não há cenário, eu atrevo-me quase a dizer que já não há casa, e que estamos a voltar a um princípio, o único princípio que eu vejo aqui possível é realmente a palavra, o canto… E a música, evidentemente, que vem logo por arrasto.
JA – Deixa-me então pegar nisso, porque eu lembro-me de uma conversa que tu tiveste sobre o Ossos, com o Jean-Pierre Gorin, em que falavas de uma ideia de seres um realizador que não está a ir em direção ao futuro, mas que está a voltar atrás no tempo com cada filme. Perguntava-te se ainda sentes isso, ou seja, realmente com os últimos filmes tens cada vez ido mais atrás, com o Cavalo de Dinheiro vamos até Ventura em 74-75, com a Vitalina Varela vamos à relação dela com o marido que evoca o início em Cabo Verde, e temos até aquela imagem final da casa em Cabo Verde, e queria-te perguntar, especialmente agora também com As Filhas do Fogo, se há alguma ideia de voltar a filmar em Cabo Verde no futuro, um regresso aos tempos dessas casas de lá?
Não sei se é para o passado, ou se é uma grande fuga para a frente, eu sei que é qualquer coisa que tem a ver com eu ter a sensação, não é que tenha feito tudo… Por exemplo, não que esteja na situação do meu colega e amigo, o Béla Tarr, que sentiu que fazer hoje seja o que for não vale a pena, porque já o fez ou porque não vale a pena hoje. Por isso, voltou-se para o ensino e para a transmissão, e muito bem. E eu até o acompanhei muito nisso e tentei ajudar. No meu caso, eu não sei se é uma fuga para a frente, género Homem-Bala, sem saber a que altura e onde é que vou cair, se é para trás, para o passado, não sei bem… Eu acho que não é bem para o passado nesse sentido, e quando estamos a tocar no cinema isso é logo muito perigoso. É uma coisa que eu tenho pensado bastante: é que não há maneira de fazer o passado no cinema. A peruca e o boné e o canhão, é absurdo. É a tal coisa outra vez que se liga à minha ideia da produção.
O passado faz-se agora, e faz-se de uma maneira consequente e decente. Acho que deve ter a ver com o que eu perdi. Mas o que eu perdi sem mágoa, o que nós perdemos. Eles perderam muito mais do que eu, sem dúvida, e continuam a perder. Eu perdi menos, mas perdi com eles, ao mesmo tempo. Por exemplo, toda a espécie de inocência, e pior que isso, toda a espécie de crença. E não quero ir muito mais longe a explicar-te a força do Chega nos sítios onde estou a trabalhar. Não quero entrar por aí. Mas perder a convicção política, social, da solidariedade social, é uma coisa que vejo todos os dias a cair, percebes? É muito duro, é muito duro quando se está lá e se vê isso, e se vê crescer outra coisa… E essa coisa é uma grande tristeza.
Aqui há uma coisa que se instala, uma grande lucidez. É o contrário de quando tu perdes essas seguranças e essas coisas, e quando estás prestes a não ter qualquer espécie de crença, é nada. É muito fácil estar, não é no passado, nem presente, nem no futuro, é num absoluto qualquer. Ou seja, não vejo como é que possa fazer coisas que já fiz, claro, nesse sentido como o Bela Tárr. Queria agarrar-me a qualquer coisa ainda possível, que me parece um bocadinho despida, que é só feita de música e palavras. Não te posso dar mais ideias, mas sei de onde é que isso vem. Mas vem também deste cansaço. E não sou uma pessoa que tenha trabalhado assim tanto na ficção. Há muitos cineastas, mas um caso flagrante disto que eu estou a dizer é o Rossellini. Ele foi um tipo que passou do mais melodramático filme às coisas mais filosóficas, os retratos dos filósofos e dos santos. Porquê? Porque o tipo não tinha qualquer espécie de paciência e ingenuidade para continuar com estas parvoíces. E é um percurso, aliás há textos sobre isso, que é da passagem de uma aldeia na Itália, o Europa ’51 (1952), à Índia, e depois ao Santo Agostinho e etc. É realmente uma viagem no sideral. É claro que partilho dessa descrença. E, como digo, não trabalhei nada isso – talvez venha do Vitalina, que é um filme que assumiu uma forma tão clássica, aquilo tudo se reconhece. É um filme que toda a gente percebeu, ao contrário dos outros, e que até correu melhor e tal, até comercialmente. Portanto, também deve ter a ver com isso. Era um pouco isto o que tinhas perguntado, não? Não sei se é realmente voltar para trás.
A vida delas é perder, perder todos os dias, perder muito mais do que nós, sem qualquer horizonte. O caso mais flagrante é o Ventura, até fizemos um filme quase só sobre isso.
JA – Sim, sobre a ideia de voltar para trás, de cada vez mais mergulhar no passado das personagens. Começar aqui no presente e…
No meu passado, seguramente. Por exemplo, já está no espetáculo que fizemos, no passado das cantoras. Estamos a falar muito delas. São de Santo António dos Cavaleiros ou de outras partes. Mas vai-se muito rapidamente para a avó. Para a avó na Ilha do Fogo, para a avó na Guiné, para a bisavó que se ouve falar. E, pronto, por aí fora, para um sítio onde elas nem sequer sabem que existe. Também há um desconhecido nisto, e provavelmente o desconhecido também vai construir o filme. Ou seja, eu tenho que perguntar muito a elas, elas têm que me perguntar muito a mim, pela música, neste caso. Vai ser mais rigoroso, como eu dizia, porque eu sinto que com a música vou ter que ser ainda mais rigoroso.
JA – Mas se calhar eu queria tocar naquela questão do cansaço que se vai acumulando. Uma espécie de paralelo em relação ao cansaço e à desilusão dos personagens. Que vem já do encontro com a realidade, também. E que já não é a primeira vez que te referes ao cinema como um lugar de perda…
Eu acho que é óbvio. É evidente nos filmes que fiz, e no Quarto da Vanda foi muito, muito fisicamente sentido. Não é aquela coisa de fazer um filme e dizer que é muito difícil… É muito físico, mas não é vaidade, nem pretensão, nem passar a fazer mais do que os outros, mas estes são também filmes um pouco sobre isso. Têm as pessoas com quem eu colaborei, filmei, e não são só as que estão à frente da câmara, os atores. A vida delas é perder, perder todos os dias, perder muito mais do que nós, sem qualquer horizonte. O caso mais flagrante é o Ventura, até fizemos um filme quase só sobre isso.
E, portanto, é essa exaustão, esse esgotamento e essa falta de fé, de convicção, se tu quiseres. Fé no sentido do padre que está na Vitalina, que é um padre real, é o que se sente e vê na periferia (a igreja de Mem Martins tem uma grande bandeira que diz que Jesus está na periferia). É possível que esteja, mas está perdido, e está perdido no sentido de andar aos caixotes.
Mas há uma exaustão e começa por mim. Eu falei disso bastante com a Danièle Huillet e o Jean-Marie, porque são coisas da vida dos realizadores que trabalham, apesar de tudo eles trabalhavam bastante. É uma parte importante, não é o cansaço de fazer um filme, esse, apesar de tudo, faz-se, a gente consegue. É tudo o resto. Porque é aquela coisa: não se faz um filme por ser um filme.
Nunca fui nada sensível às coisas da fotogenia e da magia, acho tudo uma vigarice pegada realmente, mesmo as coisas do Edgar Morin. Há uma parte sociológica que é interessante… mas nunca fui muito sintonizado com essa cinefilia. Mesmo nos estudos universitários, não as escolas de cinema, mas os equivalentes aos estudos que eu fiz em História, áreas como a Filosofia ou o Direito. Mesmo aí, acho que é inevitável essa mistificação que o cinema transporta. O Rivette dizia que era uma arte que muito cedo começou a fascinar-se por si própria. Ele dizia que não tinha certeza que o fascínio fizesse parte da imagem filmada, mas que muito cedo sucumbiu ao fascínio de si próprio. É isso o que continua a perdurar. 99,9% dos filmes menos bons são-no porque são fascinados por si próprios.
Voltando a As Filhas do Fogo. Não há filme ainda, há a curta-metragem, que por um lado parece uma instalação; por outro lado, não é, pois está ligada a uma coisa que pouca gente sentiu e que me dá vontade de continuar a explorar que é a forma musical que se chama contraponto. O contraponto é uma forma da música barroca que Bach e outros exploraram que passa pela sobreposição de estratos. Duas mãos no cravo, duas mãos no piano, quebrando aquela anterior forma mais linear, com uma aparência de diálogo, de conversa. E eu pensei que gostaria de ver como é que aquilo resultava em três ecrãs. E funciona razoavelmente bem. É a parte espetacular de quem vê o filme, é o Napoleon (1927) [de Abel Gance], por exemplo, que vem à cabeça das pessoas.
Acho que isto deve morrer, tudo tem uma morte, e deveria morrer rapidamente. Deve parar porque tenho a impressão que se fazem filmes, não é sem arte, é sem convicção.
Portanto, eu queria continuar a pensar como é que este tipo de estrutura, de forma musical, se podia filmar. Isto é uma aparência de teste, de princípio, talvez, para qualquer coisa. E é, provavelmente, uma boia de salvamento para esta falta de esperança no cinema. Acho que isto deve morrer, tudo tem uma morte, e deveria morrer rapidamente. Deve parar porque tenho a impressão que se fazem filmes, não é sem arte, é sem convicção. E o mundo não está para isto, não está a dar…
Esta conversa vai ficar um bocado sombria, ainda por cima para o site que é tão juvenil, tão esperançoso, mas vai ficar negra. Eu tenho tido algum contacto, mais lá fora, com alunos… acabei de fazer um workshop na semana passada [no México], muito longo, em que se fizeram 50 filmes. 50 curtas, filmadas, montadas, por pessoas jovens, outras menos jovens, mas pessoas com muito desejo e apetite, em tudo, no cinema, na vida. Digo sempre que acho muito difícil fazer um filme por fazer um filme, ou seja, para explorar uma forma narrativa ou uma ideia romanesca, não me é suficiente. E não tendo esse temperamento, vejo poucas portas de saída. Não tendo o génio do Godard, sucumbo à minha própria negritude e às vezes fico um bocado paralisado. O que eu acho é que é difícil fazer um filme sem uma convicção forte, pode ser nos atores, pode ser na forma, pode ser na tua história, pode ser nessas coisas todas, só acho que nada disso é suficiente já.
CN – Tu achas que, por exemplo, essa questão da própria convicção ou de crença que tu sentes neste momento, achas que é possível isolar um fator, ou um conjunto de fatores que levem a que isto seja dessa forma, esse “ok, se é para terminar, termina-se aqui para não estar a arrastar esta agonia”?
É muito difícil ver alguém hoje, ao entrar no cinema, querer fazer um filme, querer fazer uma vida de cinema, com a armação que me parece que a grande maioria da juventude tem hoje em dia… A maioria sem preparação e pensando que o cinema é uma coisa que não é, que é romance, que é ficção, que é documentário num sentido muito de urgência e televisivo, com uma série enorme de clichés, porque é o que se viu e cada vez se vê mais, é Netflix, é não sei o que… A reparação desse mal é muito difícil, não sei como é que se faz, vê-se muito pouco do passado, é mais grave para mim constatar e sentir que há um esquecimento das coisas, mas isso é uma injustiça… Ou seja, havia de se começar por lecionar a história da injustiça e não a história do cinema. Ou a história do poder no cinema.
Assusta-me muito o esquecimento que parece ser muito acelerado hoje. Talvez seja o meu cinismo ou talvez não. Começo a ver contribuições e colaborações para esse esquecimento por todos os lados. Há filmes que são destinados a isso mesmo, a enterrar uma série de coisas que existiam, e que são às vezes ideias, momentos da humanidade. E há filmes muito bem intencionados que destroem esses momentos. Estou-me a lembrar de um, não quero citá-lo, mas é recente e é português.
Há uma coisa que o Straub dizia bem, que há uma parte do cinema que todos podemos conhecer ao mesmo tempo, e que todos temos que praticar, mesmo se não fizermos filmes. O Chaplin, a montagem, o Eisenstein, isso é uma história comum, é uma coisa que pode ser estudada, analisada, e que ajudará também a varrer o supérfluo, ou muito do supérfluo.
Nas escolas de cinema básicas, em todo o mundo, o caminho vai para o lado da preparação, na produção mais horripilante. Enfim, trabalhar pessoas para serem produtores, gestores, programadores, programadores no sentido de programar jovens, formatá-los. É passar-lhes a bagagem necessária para produzir uma série da Netflix. Portanto, uma escola basicamente de gestão, de mapas de trabalho, contabilidade, que a mim me parece, como é óbvio, anacrónica e ultra-reaccionária. Com os equipamentos que existem hoje e depois do Straub, do Godard… tudo me parece absolutamente de cair para o lado.
É evidente que a história do cinema, como ela é contada na maior parte das escolas de cinema, deixa de parte quase tudo o importante. Os jovens chegam e criam, e querem, e sonham, e imaginam, mas isso tudo tem de ser… Tem de se dar umas lambadas nisso, não é alimentar essa coisa, porque essa coisa não serve, eu acho que nunca serviu, não serve o cinema, não serve a realidade. A atitude deles é sempre muito mediada. Não têm uma ideia mais direta do cinema, que eu acho que todos os grandes cineastas tiveram e que depois sentem que a realidade talvez seja demasiado forte para tal embate. Mas as pessoas vêm com ideias muito formatadas, muito de casa, das séries, da Netflix…
São estruturas muito pouco musicais. Nos filmes mais recentes são muito poucos aqueles em que tu sentes isso, em que há uma razão que liga, como um tecido que está ligado, de tal maneira que tu possas vestir e, portanto, sentir a sua aspereza, a suavidade, enfim, essas coisas que faziam os filmes do passado. A montagem hoje é muito pouco musical no sentido em que ali nenhuma nota é uma nota, a maior parte das vezes está tudo desafinado, a tocar para cada um para o seu lado, descortinam-se muito poucas razões de começo e de fim, porque é que começa ali, porque é que acaba ali, é vago. E isso sente-se muito mais, é evidente, no que a maior parte da rapaziada vê, que é Hollywood e as séries.
Apesar de tudo, ainda há um rudimento de artesanato às vezes nos grandes filmes de Hollywood. Pelo contrário, no cinema contemporâneo mais próximo de nós é uma vacuidade… que já começa a deixar mortos pela estrada fora. E é aqui que entram os estudos fílmicos: que não sabem, não querem, não podem analisar estes filmes da maneira que eles deviam ser analisados, acho que é tão simples como isso. E são os filmes, não são lá as teorias. Às vezes pergunto-me: esses textos/livros capitais de realizadores, técnicos, hoje não passam, são hoje nomes completamente desconhecidos? Então, o que é que passa? Passa a filosofia, bastante, passa uma espécie de semiologia…
CN – Estás a falar daqueles textos do Eisenstein, onde ele analisa e discute as sequências dos seus próprios filmes, por exemplo? Esse tipo de textos?
Sim, sim, e coisas parecidas. Eu e muitos outros somos mesmo produtos do 25 de Abril, quando se deu eu tinha 12 anos, o Botelho 18 ou mais. Também o Joaquim Manuel Magalhães, o João Miguel Fernandes Jorge, grandes poetas. Basta ler, por exemplo, os textos do Joaquim e aquilo é incrível, estilo Rivette. Crescemos primeiro na rua, na coisa política – vocês não sabem o que é, mas imaginam, já viram em filmes, já foram a manifestações. Aquilo era coisa de taco-a-taco, ação-reação, algo que tinha muito a ver com o cinema, em particular com os russos. Ver os russos, nessa altura, era uma vertigem, e depois ler alguns desses textos, lembro-me por exemplo da fabulosa análise que o Jean-Louis Comolli faz de Staroye i novoye (A Linha Geral, 1929), onde percebias porque é que cada plano existe, como se dão as ligações entre as imagens, as alturas, escalas. Uma coisa estruturalmente brilhante, claro que ao serviço de qualquer coisa, e aqui é que a porca torce o rabo. Depois o Joaquim ou o João falou-me do Cézanne e ele está ao serviço da realidade. Já não estava ao serviço da revolução, era a realidade. É a mesma coisa apesar de tudo. Tu podes desiludir-te, podes cansar-te, podes perder a revolução, e perdemo-la, mas ficaste ao serviço da realidade. Sabes que aquela classe não existiu, ou que falhou, foi para algum lado, e eu, estúpido, só a reencontrei muito mais tarde. Estava a pensar, a trabalhar, a tentar fazer, e por umas manigâncias sobrenaturais do género série B apaguei-me completamente numa fantasia escapista: o Jacques Tourneur e essas coisas… Não era escapista, mas pronto. Nessa altura, vi uma catrefada de filmes, e não sei bem como… É um bocado a história do… é sempre o Jacques Tourneur, não é? No Night of the Demon (A Noite do Demónio, 1957), aquele filme em que o Dana Andrews recebe um pergaminho na carteira, e senão o passa a outro, rapidamente morre. É mais ou menos isto. Esse papel vem de um diabo. Só que o Andrews não acredita nisso: podia acreditar e dar o papelinho a outro, mas ele não acredita. Essa é a minha história. Eu encontrei esse centro para trabalhar, essas pessoas que me faltavam por causa de um papelinho. Esses papelinhos eram cartas que eu recebia em Cabo Verde e que trouxe para Lisboa. Ou seja, eu passei a carta e, totalmente descrente, comecei a acreditar um bocadinho naquilo que vocês viram. Tenho um bocadinho de crença em cada filme.
Eu sei que quando perco a realidade, perco o cinema. Eu acho que isso, pelo menos isso, faz muita falta hoje.
Mas, para voltar atrás, esse tempo do 25 de Abril foi um motor acelerador (o exato oposto, espécie de acelerador negativo, seria o Covid). Naquele tempo, era impossível estar sozinho, não era possível ter máscara. E depois, foi tudo importante pela idade, pela poesia, pela música, pelo cinema, e depois foi a vida. O lado sentimental, os amores, o crescimento. Tudo isto deu-me uma coisa fundamental que tem a ver com o social que eu nunca mais perdi. E também com amigos, mesmo pessoas que se isolaram como o João Miguel ou o Joaquim, a sua poesia é realista. É difícil para eles perder a realidade, pois se a perderem perdem a poesia. Eu sei que quando perco a realidade, perco o cinema. Eu acho que isso, pelo menos isso, faz muita falta hoje.
Agora no México, nessa formação que lá dei, vi a cara de fascínio de 40 jovens quando eu lhes falava do Ozu, dos Sex Pistols e dos Clash e a forma como na altura carburávamos ao ouvir aquelas músicas ao mesmo tempo que víamos o “velhadas” do John Ford. E tudo nos fazia sentido. Porquê? Por causa da realidade, por causa do que estavas a dizer há bocado: que a realidade e o cinema têm uma coisa em comum. E elas só existem se a gente tiver um fogo aceso. Se a realidade esmorece, tu não a vês.
Em muitos filmes, tu não vês a realidade, eles não sabem ver, não viram com a câmara, isto porque é preciso acender o fogo e o fogo é a tal convicção. Pá, mas é difícil: é difícil de um lado e é difícil do outro. Eu quando fazia os filmes, lá consegui, mas estava a ver que não conseguia manter aceso esse fogo, percebem? E manter o fogo aceso é mantê-lo à frente da câmara. Para que a realidade arda, toda, ou aos bocadinhos, de vez em quando, mas do teu lado também, não é? E isso sente-se em qualquer filme. Se isso não existe, fazem-se uns movimentos, olha-se, grava-se um bocado e diz-se “sim, está bom” ou “vamos fazer mais um take”… E de onde eu venho o fogo apagou-se em 77 e cada um foi à sua vida: uns foram estudar, outros trabalhar. E cada um fez o seu caminho. Mas em relação a cineastas deste período, sinto que somos filhos de uma certa intensidade que desapareceu completamente. Claro que continuam a existir alguns combates, algumas lutas. A nossa luta tinha vários motores, era poética e era política.
CN – Hoje fala-se de uma certa apatia face às coisas. Sobre os objetos não suscitarem nem admiração, nem ódio. Nem sei se é fogo, mas é não provocarem sequer a mudança de temperatura.
Penso que tem a ver com acelerações, desacelerações do tempo. Pode dar-se uma fuga para a frente. O que se está a viver agora, ao mesmo tempo, com Gaza e a Ucrânia, é muito sensível. Está-se sempre à espera de um aceleramento final, toda a gente o espera, e ao mesmo tempo toda a gente quer ter distância e recolhimento, e análise. Essas duas coisas são muito esquizofrénicas. Enfim, naquela altura também era. Falo nisto na relação com os mais jovens que querem começar a fazer cinema, e pensar que raio de febre é esta que eles têm que não chega a ser febre às vezes. Porque… não chega a ter pernas para andar, como a gente diz. Agora, tu podes sentir aqui e ali, uma ou duas bactérias, ou germes, e podes tentar, não é curá-los, mas dizer-lhes, olha, há uma coisa, eu sei que tu estás a sentir e há um tipo que era muito bom para ti, chama-se Jean Rouch. E vão ao telemóvel e apontam nas notas, mas é outro nome. Tenho a sensação de que esta é uma geração desconhecedora, impreparada, quando vem para o cinema: não viram nada, não sabem ou sabem muito pouco, com uma ou duas exceções.
Ao contrário de muitos colegas, eu assumo que só faço mensagens, só faço cartas, filmes com mensagens.
JA – Esses jovens de que falas parece que estão naquele momento em que tu estavas no tempo da Casa de Lava. Só que sem a consciência política do momento que vivem, porque não passaram pelo 25 de Abril, e sem a cinefilia que os ajudava também a sair daí e a procurar novas soluções.
Mas o que me pergunto é porque é que é assim, quando nunca houve tantas coisas como hoje. Que as revistas de cinema acabem, paciência, às tantas não vale a pena insistir. Por exemplo, se a Cahiers du Cinéma acabar tanto melhor, pois hoje em dia a maioria dos seus escritores não prestam um serviço ao cinema, já não servem, não estão a servir. E esses, apesar de tudo, têm alguma dose maior de culpa porque veem os filmes novos lá em Paris, em boas condições, e não estão a servir… E, portanto, quanto mais depressa acabar melhor.
Eu devo quase tudo à internet e à sua profusão. No Quarto da Vanda comecei a receber e-mails com mensagens de todo o mundo, do Arizona, da Coreia do Sul, centenas de cartas para a Vanda de pessoas que não conheço nem nunca conheci. Nesse filme tive a esperança de qualquer coisa, pois criou algo de especial e talvez fosse só nesse filme. Uma coisa muito especial, jovem, claro, com estas missivas de um quarto para outro quarto, de jovens raparigas que se dirigiam à Vanda. Claro que eu puxei isso na altura e disse que o filme era mesmo essa carta, uma mensagem. Ao contrário de muitos colegas, eu assumo que só faço mensagens, só faço cartas, filmes com mensagens.
Mas estava a dizer como é que é possível que com tanta coisa… aqui ao lado, deve estar um site com todos os Eisensteins, com todos os Naruses. Cada vez há mais e cada vez há menos. Mas se isto é para continuar há pessoas que têm de ter energia para dar esses cineastas, os livros. O Godard lutou sempre por isso, nos filmes, nas conversas e tem de continuar a ser feito. Sei lá, a Chantal Akerman, as pessoas a pensar nos filmes, essas coisas estão a desaparecer. Mas porquê? Como se há tanta coisa por aí? Eu desencorajo muito os miúdos e as miúdas a irem para as escolas de cinema ditas “normais” (quer dizer, públicas e nacionais) e digo-lhes que podem fazer uma vida no documentário, se tiverem um dinheirito no bolso, podem ser donos das suas ferramentas de trabalho, donos dos seus filmes.
Há uma consciência em relação a estes aspectos que se apagaram e nos sites como o vosso nota-se isso. Falamos muitos dos deveres, mas há pouca coisa sobre os direitos, faltam coisas simples, até meio chatas e pragmáticas, sobre, por exemplo, um foco nos direitos de autor. Na minha opinião, para fazeres um filme que sirva ele deve ser teu, não pode ser de um intermediário, de um sales agent. Com estas intermediações depois vêm certas ilusões que se tu enquanto realizador fizeres uma coisa mais cara já podes trabalhar, sei lá, com o Joaquim de Almeida e eles e elas vão nisso. O cinema é outra coisa. Não há um pintor que pinte a pensar num prémio qualquer. E hoje os miúdos nas escolas já nem é pensar nos Óscares, é na Palma de Ouro, ainda por cima já temos portugueses que ganharam prémios e por isso é perfeitamente possível. Essa falsa ideia da originalidade ou que o cinema se faz com talento ou dinheiro. Os filmes não se fazem nem com talento, nem com dinheiro. O talento está à frente da câmara. O Buñuel dizia: “o que não está bem está à tua frente”. A partir daí só tens que não deixar isso, não te distraíres e podes trabalhar à volta disso. No centro do teu filme, o tal fogo, para ele era, “há qualquer coisa que não está bem”, na sociedade, na realidade…
CN – Hoje temos muito a mitificação da ideia de talento, que é uma coisa um bocado vazia, que não se sabe muito bem o que é, um bocado a lógica do predestinado. E ainda outras figuras-mito como a do empreendedor.
Nem é preciso tanto. Nas escolas de cinema não vejo que se combata a ideia de que o cinema é um ensino artístico e que depois é para pessoas muito especiais, com conhecimentos muito especializados, conhecimentos técnicos. Mas, no fundo, toda a gente já sabe que esses conhecimentos se aprendem em duas horas, ou nem se aprendem, que agora com o telemóvel basta apontar. Mas tens é que ter visto algumas outras coisas, não é isso de ser original, de ter uma ideia muitas vezes vasta sobre muitas matérias como a guerra, os povos, os ricos, as cheias, os incêndios… Nas entrevistas, nem é nos Cahiers mesmo no À Pala de Walsh, parece que cada cineasta é um filósofo. Depois os filmes acham que têm uma grande densidade, não é apenas o melodrama, é uma ideia de mundo. A pessoa tem de ser original, tem de ter talento, e depois tem de haver dinheiro.
Esta é a parte mais chata, é o que me preocupa mais. O dinheiro tem muito poder. Agora, que tivesse também chegado aos estudos fílmicos, às revistas de cinema, aos professores de análise fílmica, isso deixa-me desnorteado. Isto porque continuo a achar que esta coisa, talvez por causa do 25 de Abril, se devia desenvolver é pela prática, pela produção, é por isso que se faz a arte, que se descobrem as coisas.
Nas minhas experiências, das conversas com os jovens fica-me esse encantamento, por vezes incompreensão, claro, estranheza. E é mútua. Do meu lugar não procuro o talento, mas a adequação, a inteligência prática.
CN – Estamos aqui a falar também de várias línguas que não se tocam, ou se tocam muito a custo. Há uma língua que tem a ver com uma lógica de observação, de prática, numa relação muito forte com a realidade. E depois há, podemos chamar, um conjunto de outros aparatos que se vão construindo sobre o cinema, e que de alguma forma também ajudam um bocadinho a mitificar e a construir outros caminhos que às vezes afastam ou apontam para outras ideias sobre aquilo que deveria ser o cinema. Mas a minha questão é: qual é que deve ser, na tua opinião e partindo também deste teu trajeto e desta tua metodologia, qual deve ou pode ser o papel de um formador? Alguém que, por exemplo, vai ajudar a fazer esse papel de ajudar a pensar com a mão, com a câmara, estar no local com as pessoas, observando, vendo o que está mal, o que está bem?
Qual é o papel? Acabas de descrevê-lo. Eu não sei se sei… Por exemplo, o António Reis. Se hoje mostrarem hoje numa aula o Trás-os-Montes (1976), o que é que eles sentirão daquilo? Eu não tenho nenhuma ideia, não tenho feito essa experiência… mas pergunto-me. Eu nem sequer costumo mostrar filmes, é tudo mais falado e depois eles fazem exercícios práticos. Mas, pronto, a pergunta era: haverá algum encantamento? Abrir-se-á alguma janela poética em que fiquem a pensar que nunca tinham visto aquilo, que é preciso ver outra vez. Ou será antes, não gosto de nada, não percebo nada, e onde está o Scorsese? Nas minhas experiências, das conversas com os jovens fica-me esse encantamento, por vezes incompreensão, claro, estranheza. E é mútua. Do meu lugar não procuro o talento, mas a adequação, a inteligência prática.
CN- Comprometimento também, não é?
Sim, sim, também. Como cumprir um plano, uma coisa bem soviética. Na escola do Béla Tarr em Sarajevo, havia um exercício em que todos tinham de fazer a mesma cena de um conto do Kafka, com um jovem, numa casa, e uma série de ações. E era curioso ver como é que eles filmavam a entrada, a abertura da porta, a mão. E tínhamos de tudo: a mão que abre o puxador, o plano largo da porta, o tipo que não entra e que já lá está dentro, enfim, mil coisas.
Mas há isto da mensagem sobre o que é que o cinema foi (sem discussão), o que é (com alguma discussão), e o que poder vir a ser (outra vez sem nenhuma discussão pois isso é vosso). O que é que esta conversa provoca nos jovens? Uma conversa que é longa, é diária, é muito íntima por vezes, porque cada um quer mais um bocadinho do que o outro. É uma forma de passar, e também pode passar-se em anfiteatros, em salas frias. Mas a minha ideia é passar mais esta ideia de utilidade, ou de serviço, que o cinema pode ser, em vez de ser apenas ou logo uma história de amor, de perdição, ou de perseguição, etc. Ou seja, o grau mais zero do projeto é o mais assustador, e quanto mais assustados, mais no desconhecido eles estão (ou seja, sem argumento, sem quase nada, talvez um local) e mais produtivo é. E depois há a discussão sobre o que é que seria útil naquele local. É claro que aquele local é pura realidade, não é um quarto, ou raramente é um quarto. Mas há quem procure um quarto, já aconteceu. Normalmente é uma aldeia, ou uma realidade urbana… E fala-se depois, como dizes, de o que o cinema podia ter sido, e foi. O que é que o cinema é? E depois é criticá-lo, muito violentamente, se eu o estiver a fazer bem. Eu vou pelo lado do fabrico, do fazer. Depois na análise, só consigo fazer com os filmes deles, plano a plano, ou às vezes uma projeção do filme. Depois há algumas coisas que eu proponho, bibliografia que às vezes pode ser algo dura, sobretudo para os miúdos habituados apenas a ler as coisas na internet, sei lá a Sight & Sound. Na verdade, não sei se lêem a Sight & Sound, isso era eu. No fundo, não sei o que é que os jovens leem. Olha, espero que leiam o vosso site.
Mas esta conversa sobre o que foi o cinema, como é que se pode fazer, completamente orientada do meu ponto de vista, com base nas minhas poucas convicções, só funciona durante quatro cartas ou cinco e-mails. Dura um ano, dois anos. E depois há o reencontro, num festival, ou para nunca mais. É isto que se passa.
Esses produtores de hoje, jovens, da vossa idade, portugueses, belgas, franceses, e que vocês conhecem, e que vocês convidam, são pessoas que vocês viram no No Quarto da Vanda: a droga deles é o dinheiro.
Mas o cinema não pode aguentar também isto, não é? Não aguenta tanta gente. Eu acredito que tu, se calhar, da próxima vez que te vir, sejas o mais vendido dos cineastas e que fizeste tudo aquilo que eu dizia para não teres feito. É provável, é cada vez mais provável, que tenhas encontrado um tipo que te disse que o projeto que tens é bestial, mas que é preciso mais dinheiro e, por isso, vai arranjar mais quatro financiadores, mas que tens de fazer com o García Bernal. E pronto, começa um pequeno fascínio, é inevitável. Ou outra coisa, sei lá, uma atriz, um diretor de fotografia. E depois vem a cerveja às três da manhã, no festival de Vila do Conde, ou no Indie. Essa é a história da injustiça, não é a história do cinema. Isto porque o gajo que está a pagar a cerveja é o tal produtor. Deviam analisar isto: hoje a figura do produtor é muito híbrida, é metade sales agent e produtor, mas também programador ou formatador de carreiras e de destinos. Isso estava no germe da coisa: o sales agent era um tipo que compra e vende, com lucro, e, portanto, quer mais. Querendo mais, é provável que o filme que mais renda, que melhor corra lá da sua carteira, ele queira perpetuar, crescendo. Portanto, o filme do Zé Maria Oliveira correu bem, fez quatro festivais, ganhou um pequeno prémio em Vila do Conde. Este sales agent vai ter com ele e diz-lhe: “eu consigo vender o teu filme, porque tem este prémio”, “dá-me o filme e eu dou-te x, ficas com uma dada percentagem e eu com x por cento e faço o trabalho todo”. Hoje em dia é isso. Depois este correu bem, mas o próximo filme é um pouco mais caro. Mas eu sei do produtor que te pode dar este dinheiro, que é meu sócio, ou seja, sou eu próprio. Chama-se Wild Bunch, chama-se Memento, chama-se Match Factory, etc. Uma cambada de crápulas. Eles sabem quem eu sou, eu sei quem eles são. São gangsters que estão a dinamitar o cinema contemporâneo, o slow cinema ou outra marca qualquer, formatando completamente e orientando. Esses que não querem qualquer tipo de singularidade, porque o que querem é qualquer coisa que renda. E se correr bem no Fórum de Berlim, ao mesmo tempo que corre bem no Expanded Cinema de não sei onde, isso é lucrativo, quer dizer, é lucrativo no verdadeiro sentido da palavra do lucro financeiro.
Era aqui que eu queria chegar, mas espero que não se ofendam, não tem nada para se ofender. Não digo que sejam vocês estas figuras, mas estas figuras estão muito perto de vós, vocês sentem-nas ao pé de vocês. Estes produtores e sales agents de que estou a falar, e todos os nomes que eu lancei, têm tanto ou mais capacidade do que vocês para escrever agora um texto relativamente sério sobre o Naruse. O produtor do realizador x é um jovem universitário que fez estudos fílmicos ou gestão, é economista e tem uma formação sólida e pode fazer uma tese sobre cinema, não é um produtor de charuto na boca a pedir dinheiro por aí. Essas pessoas estão próximas da universidade, dos estudos fílmicos, da economia, podem fazer teses sobre estética do cinema, do fantasma na obra de não sei quem, não são teses sobre produção de cinema.
CN – As próprias universidades hoje concorrem entre si…
Certíssimo. Mas por isso é que eu me pergunto: onde é que se dissolveu, na água ou no café, a crítica? Onde está esta coisa que o Straub tinha e o Godard às vezes que era reagir contra tudo, por vezes quase irracionalmente? Esta coisa de estar constantemente rebelado (“rabelado” como dizem os cabo-verdianos) contra o que não está bem. Ou seja, este pessoal universitário, que é bem formado, que bebeu no melhor cinema, é completamente orientado pela engenharia financeira e pela inflação. Esses produtores de hoje, jovens, da vossa idade, portugueses, belgas, franceses, e que vocês conhecem, e que vocês convidam, são pessoas que vocês viram no No Quarto da Vanda: a droga deles é o dinheiro.
Se procurarem financiar hoje um filme na Europa, vão encontrar centenas de fontes de financiamento – fundações de arte, concursos disto e daquilo – é um sem fim de coisas. Mas a rede tem de ser muito apertada, ou seja, isto é quase como um bairro, as pessoas têm que se conhecer, porque é uma rede que se alimenta também de alguma “solidariedade”.
Os genéricos de hoje, com os seus logotipos e co-produtores, são coisas inacreditáveis. No outro dia vi uma curta-metragem – não é portuguesa, mas teve muito sucesso – em que o tempo do genérico é quase maior do que o filme. E esses genéricos não são assim por causa dos nomes dos atores ou dos agradecimentos. É antes a região não sei o quê, o banco x, ou o concurso terceiro mundo ou décimo mundo, a lotaria americana, a lotaria francesa… são milhares de coisas. E isto é uma perdição mesmo, é uma heroína, é muito fácil desde que tu estejas num cartel que alimenta e se faz alimentar muito do cinema contemporâneo de autor (enfim, chegado a um certo patamar). Um cinema contemporâneo de autor que é suportado pelo privado, pelas fundações de arte.
Mas o que eu queria dizer é que entre produtores, diretores de fotografia, realizadores, mesmo atores, a classe social é quase sempre a mesma, é sempre média alta burguesia, sempre foi assim. Mas agora é também o nível de educação e de formação muito próximo: são todos universitários e, para metaforizar, todos são capazes de fazer uma brilhantíssima tese sobre o acidente em Naruse. “Espera aí que agora tenho de arranjar mais 200 mil euros para o teu filme”. É surpreendente, mas é isto que eu estou a dizer. Eu também já disse isto: por ano há um ou dois filmes bons, o facto é que não há 400 bons. Vocês até devem concordar comigo, mesmo que estiquem lá a vossa análise, isto é, que considerem três ou quatro. O resto é esta produção que se alimenta um bocadinho entre amigos, de absoluto nepotismo e de absoluta injustiça.
Fico admirado como é que os filmes do Jean Marie Straub e da Danièlle Huillet, apesar de tudo, ainda foram vistos. Mas eles tinham um suporte crítico, tinham pessoas a escrever que não os abandonaram, que foram fortes, e isso contou muito. Hoje é tudo mais difuso, mais disperso, não há sal. E a própria crítica foi muito na direção da análise e da estética, e deixou um pouco de lado a História.
Faltam em geral textos que levantem dúvidas, suscitem curiosidade. (…) precisava disso em Portugal, creio que esse fogo virtual pode-se aplicar aí, a vocês, e esse fogo às vezes apaga-se sem a gente perceber.
JÁ – E a política, não é?
Sim, mas isso eu incluía na História. A História no sentido, se quiseres, ou do Godard, ou do Rancière, que era um tipo que foi estudar nos arquivos, a história da crença popular, e dos gajos que estavam presos, pronto, e isso era a vida dele. A Noite dos Proletários saiu da crítica… Mas hoje em dia não me ocorre ninguém que o faça mais.
A certa altura tem de se falar sobre qualquer coisa, e falta uma crítica difícil, profunda, que toque na realidade do plano, do que se filma no plano, não apenas de como ele é filmado, ou as referências. Acho que essa crítica falta, não é a mim, é em geral. Felizmente, eu sou o tipo que recebo todas as críticas boas, e uma ou duas a dizer, “é pretensioso”, “faz vitrais de não sei o quê” e “explora os pobres…”
Mas esse tipo de crítica de que falava não há, tirando cá em momentos no João Lopes, às vezes no vosso site, mas é pontual. Outro sítio bom é o da Cristina Fernandes [Bicho Ruim], que tem textos breves – era preciso que fossem mais longos sobre um filme ou um assunto. Faltam em geral textos que levantem dúvidas, suscitem curiosidade. A metáfora do fogo também se aplica à crítica. O fogo às vezes apaga-se e não se percebe bem a razão. Precisava da crítica mais longa, que antes lia; aquela coisa mais extensa sobre um filme ou um assunto que me interesse um bocadinho; que levantasse a minha dúvida sobre qualquer coisa; precisava disso em Portugal, creio que esse fogo virtual pode-se aplicar aí, a vocês, e esse fogo às vezes apaga-se sem a gente perceber. Por exemplo, no vosso site, eu há bocado estava a ver… e não estou a duvidar da qualidade das coisas, dos objetos, sei lá, do filme de X, que nunca ouvi falar, do outro filme de Z, das estreias, é provavelmente o lado editorial do vosso site. Deve ter umas premissas, uns princípios, falar disto, falar aquilo, não sei como é que vocês discutiram… Eu lembro-me sempre do princípio do Rivette: não falar das coisas que a gente não gosta. Porque é que não há um site chamado “O Olho do Walsh”, porque ele tinha um olho bom, porque a pala é o olho que não vê, e qualquer dia quase não vê mesmo. Ou seja, trabalhar mesmo naquele sentido que eu falava de deixar um jovem um bocadinho encantado, deslumbrado ou chocado. E muitas vezes, não é por aí que se vai. Tem de se ser muito violento, e como tu dizes muito bem, a violência tem de ser um bocadinho política, tem de vir do lado do realismo, tem de ser do lado da polémica, da controvérsia, se quiseres a provocação, por onde quiseres… E deixar para o lado morto, para o olho morto essa outra parte que é precisa, mas menos interessante. Isto porque essa confunde-se muito, do meu ponto de vista, com o Expresso, com o pior lado do Público, mesmo ficando com os textos Luís Miguel Oliveira e por outros que lá passaram.
CN – A crítica é uma espécie de um grão na tal engrenagem que estavas a falar onde as coisas parece que têm de circular todas umas por dentro das outras. A crítica devia poder ser feita a partir de um lugar de exclusão, de um lugar imunológico, de um espaço de monge, indiferente a humores, lucros, conveniências a amizades. Mas é preciso haver contexto para a produção e existência sustentada desses lugares de pensamento e, pelo menos, no nosso caso vamos envelhecendo e tendo menos disponibilidade do que os mais jovens.
Era o que te estava a dizer sobre o workshop: quanto mais jovens, menos preparados e mais arriscado é este impulso. Tem que se amparar um bocadinho os mais jovens, que evidentemente são sempre mais frágeis quando filmam: as pessoas que querem fazer são as que precisam de mais um bocadinho de sacudidelas. Ou seja, é difícil com tudo o que está à volta. Por exemplo, para um jovem escrever uns textos sobre um filme do Scorsese hoje, ou se está de um lado ou se está de outro. Se está do lado da análise, é uma coisa séria: eu acredito que um filme se pode analisar, um filme pode ser completamente desconjuntado, num banco de sala de aula numa universidade e ser analisado peça a peça, sobre todos os ângulos e depois pode juntar-se e explicar-se e etc. Mas se não for analisado assim, tem de haver uma coisa mais… não sei o que é que existe hoje, sinceramente. Há escritores de que eu gosto muito, não sei se fazem exatamente isso, mas não parece que isso exista também muito em Portugal: há um patinar da crítica de cinema muito evidente para mim, patinar realmente no mesmo sítio. Ou seja, se a cena analisada tem graça ou não, não é propriamente o que eu gostava de saber… Isso assusta-me um bocadinho.
Nos financiamentos, por exemplo, em relação ao filme que estou agora a preparar, é sempre a mesma coisa, as mesmas reacções: “É lá no bairro?” “O bairro já não existe, já não existe há muitos anos”. Ou dizem: “Adorei o seu filme. E o Ventura, como é que ele conseguiu fazer aquilo?” “Mas você foi ver o Scorsese? E por acaso pensou como é que o DiCaprio conseguiu fazer aquilo?” É que não dá: o trabalho do Ventura parece que é visto como magia negra, e eu sou depois visto como um gajo muito estranho, que tem um poder especial “de capturar essa magia”. Essa mistificação também passa nas críticas do vosso site, acho eu. O Ventura, um não ator qualquer, esse tipo de coisas… se não vem pela “magia do cinema”, vem com certeza de um talento muito grande do Ventura. Não se coloca a hipótese do Ventura ter feito a mesma coisa que o DeNiro, e que eu, que é uma coisa que me desgosta dizer, devo ter feito o que o Scorsese fez. Isto é só trabalho, é repetição, são dias e dias dele e meus, apesar de tudo a pensar nisso. Em suma, o pensamento de uma pessoa como o Ventura não passa… E o problema é que não passa na crítica também, percebem? Se for só na opinião do espectador, que sai do filme e diz “incrível, como é que você consegue fazer estes gajos dizer aquelas coisas?”, aí tudo bem. Nas pessoas do bairro a perspetiva é outra. Por exemplo, no bairro, já lhe disseram: “Ventura, eu vejo-te a cair aos tombos, bêbado, ali em baixo, e hoje vim cá, e és o meu rei”. Aqui há magia, aqui sim, mas isto é outra maneira de fazer crítica, percebes? Agora, não falar nunca desse trabalho, e do que esse trabalho foi no cinema? Isto para não falar da história do cinema, do que esse trabalho foi no Renoir, no Pasolini, com quem eu não tenho afinidades, mas apesar de tudo isso foi um tipo que, pela política, pela militância, pensou nisso, e pensou que isso era uma coisa importante, trazer o povo daquela maneira. E é uma coisa em que eu acredito, ou seja, quanto mais profundo for o trabalho com o ator, que é não ator, mais político é.
Pergunto-me se a atualidade e se a quantidade de filmes que hoje os críticos mais jovens vão ver não é de mais. Como dizia o Vertov, se calhar não ver tantos filmes e escolher mais os que se veem.
E eu tive a prova quando mostrei o Vitalina Varela, na Cova da Moura, e todos os homens estavam com um carão [cara má ou pesada] e como ela sai forte na vida e no filme, e eles apanharam uma, não é uma vergonha, mas… é aquilo que ela diz no filme: quanto mais o trabalho vai fundo, ao íntimo, mais provavelmente político ou social será. Isso não passa na crítica, passam outras coisas que também são interessantes, mas outras nada. E eu não estou a falar do vosso site em especial, estou a falar de Portugal, estou a falar dos Estados Unidos… Pelo menos na internet, acho que há mais gente a acreditar que era possível discutirmos coisas, sem ser como se faz nos estudos fílmicos.
Sei lá, uma boa revista como eram os Cahiers, quando nasceu, ou a Filmkritik na Alemanha que tinha lá um naipe de escritores impressionante, a Sight & Sound não sei bem, a Film Comment talvez… mais no princípio até. Tinham a chamada atualidade mas se tu fores ver, pá, aquilo era o Walsh desse ano, ou o Lang, os últimos do Godard, o Skolimovski, etc. A diferença é um bocadinho grande mas apesar de tudo havia essa propensão para o estudo, sobretudo nos Cahiers, sobre isto, sobre aquilo, depois uma entrevista muito longa com o realizador, só que era sempre o Buñuel e o Mizoguchi, etc. Pergunto-me se a atualidade e se a quantidade de filmes que hoje os críticos mais jovens vão ver não é de mais. Como dizia o Vertov, se calhar não ver tantos filmes e escolher mais os que se veem. Nos workshops o que eu sinto é isso, é que eles veem muito e nem veem em sala, veem no Karagarga, e estão sempre a ver. Os que gostam de cinema estão mesmo sempre a ver e veem tudo e o que é curioso é que quanto mais veem menos preparados estão. Isso é que é muito estranho, menos preparados nesse sentido de estarem mais confusos na prática. É impressionante porque agora eu senti isso, tinha à minha frente pessoas que nunca tinham ouvido falar do Mizoguchi, vagamente no Bresson… Ou seja, pessoas com um grande desconhecimento. Que veem milhares de coisas, sobretudo americanas, mas depois, com uma câmara, com um assunto que está ali, que não é escrito por eles, filmam exatamente como uma criança, como uma coisa da televisão, tentam apenas repetir o que já viram. E é incrível. Pergunto-me até que ponto é que isso na crítica não é igual, sem originalidade. Enfim, é uma longa discussão.
O À pala de Walsh gostaria de agradecer a António M. Costa, pessoa sem a qual esta entrevista não teria sido de todo possível.
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