Hiroshi Shimizu, que conta com mais de 160 filmes como realizador, é o primeiro autor que aparece repetido no contexto dos ciclos Mestres Japoneses Desconhecidos, mas pela amostra desta preciosidade escondida até agora que é Haha no omokage (Imagem de uma Mãe, 1959), já começa a justificar um ciclo em nome próprio, tal parece ser a riqueza potencial de uma filmografia pouco conhecida. Depois da estreia do maravilhoso Kiri no oto (O Som do Nevoeiro, 1956) no ciclo anterior, este filme apresenta um melodrama ao mesmo nível dos filmes dessa época de Yasujiro Ozu ou os Shoshimin-eiga de Mikio Naruse (um género de filmes realistas, que se centram na vida quotidiana de pessoas comuns ou da classe média), e no qual muito podemos reconhecer das práticas de autores modernos como Hirokazu Koreeda no seu retrato das relações familiares no Japão.

A premissa do filme é tão simples quanto moderna e representativa da transformação da sociedade japonesa no pós-guerra, na qual uma das suas instituições fundamentais, a família nuclear como elemento central, vai ser posta em causa e passar por um momento de fragmentação, com novas variações dessa unidade a substituírem a versão tradicional. Em Imagem de Uma Mãe encontramos um pai recém-viúvo sozinho com um filho pequeno, e uma mãe também viúva, com uma filha, num espaço de indefinição, de reconciliação entre passado e presente.
A simplicidade aparente da premissa esconde uma complexidade temática e emocional, particularmente na figura do filho (Michio) que, ainda apegado à sua mãe biológica (entretanto falecida), demora a chamar a sua madrasta de mãe, uma imagem simbólica da recusa em largar o passado e enfrentar um novo paradigma, um recomeço, que pode ser aplicada à sociedade japonesa como um todo, ela própria ainda a recuperar do trauma da Segunda Guerra e a despojar-se das suas tradições.
Acima de tudo, esta premissa simples disfarça uma claridade visual do filme ao serviço da narrativa, de uma forma que ainda hoje é pouco comum, tal é a eficácia e facilidade em primeiro fazer-nos compreender o drama, e depois sentir o que está em causa. É sem dúvida um legado do passado de Shimizu no cinema mudo, que utiliza aqui uma linguagem reconhecível, de gestos, acções e palavras que partem da universalidade da experiência humana, para evocar a nossa empatia de forma notável.
Shimizu recorre aqui brilhantemente a uma dicotomia visual para mapear o estado emocional destas duas personagens: um contraste entre a câmara em movimento quando segue as fugas de Michio, de cada vez que é pressionado a repetir a palavra mãe; por outro lado, a fixação-imobilidade de Sonoko, sem conseguir reação perante a rejeição de Michio, contagiada pelo desvanecimento da sua esperança de estabilidade.
O filme começa com o pequeno Michio, a personagem principal, a brincar com o seu pombo-correio, cujo simbolismo iremos descobrir mais tarde, e depois em casa com o seu pai, Sadao, um condutor de cacilheiro recentemente viúvo. Em frente a esta casa vive o tio de Sadao, com a sua mulher e filha, que são efectivamente uma extensão da família de Michio, e muitas vezes o recebem em casa. Esta dinâmica familiar, e a geografia destas duas casas, é habilmente estabelecida em poucos minutos, com uma nitidez pouco comum. Para isso, Shimizu recorre a uma mise-en-scène que filma cada uma destas casas de forma semelhante, quase sempre do lado de dentro virado para fora, com a rua e a outra casa em pano de fundo, utilizando as casas numa espécie de campo / contra-campo, reforçando a proximidade e familiaridade destes dois lares, quase sempre visíveis, em diálogo uma com a outra.
Pouco depois, o tio de Sadao propõe-lhe combinar um “arranjinho”, uma espécie de encontro de Sadao com uma outra mulher que este conhece das suas entregas à cantina de um hospital. O tal encontro entre os dois decorre de forma maravilhosamente desajeitada, brincando com o sentimento comum da dificuldade japonesa em exteriorizar os sentimentos, e tudo parece correr bem para a união entre Sadao e Sonoko, a viúva que trabalha no hospital, e que tem também uma filha do casamento anterior. A partir daqui o filme joga-se na mudança de Sonoko e da sua filha para a casa de Michio, e a difícil adaptação deste à ideia de uma nova mãe.

Na verdade, Michio é ainda muito apegado à sua mãe biológica: tem um retrato seu no quarto (a imagem de uma mãe do título), ao qual se dirige quando chega a casa, mantendo viva a sua memória, fazendo-a parte da sua rotina. Repetem-se momentos de inquietação para o pequeno Michio e as pessoas à sua volta, que o tentam convencer a aproximar-se da sua madrasta, algo especialmente difícil para Sonoko, que procura a aceitação por parte do seu enteado como uma validação da sua nova vida familiar.
Numa das cenas, no dia do casamento, é pedido a Michio que celebre a união dando os parabéns “ao pai e à mãe” em público, mas Michio recusa-se a chamar Sonoko de mãe, e saiu a correr pela rua, com a câmara a seguir o seu movimento [numa cena que lembra uma outra fuga em Les quatre cents coups (Os 400 Golpes), de François Truffaut, precisamente do mesmo ano]; por contraste, Sonoko é filmada na sua imobilidade, num plano fixo – esta imobilidade será outra vez importante numa sequência posterior. Shimizu recorre aqui brilhantemente a uma dicotomia visual para mapear o estado emocional destas duas personagens: um contraste entre a câmara em movimento quando segue as fugas de Michio, de cada vez que é pressionado a repetir a palavra mãe, uma fuga-mobilidade de Michio e da câmara perante a sua irredutibilidade, representativa da sua mente a vaguear, e turbulência interior; por outro lado, a fixação-imobilidade de Sonoko, que é retratada dessa forma em planos fixos do seu rosto, sem conseguir reação perante a rejeição de Michio, contagiada pelo desvanecimento da sua esperança de estabilidade.
Neste jogo, da aproximação-distanciamento entre Michio e Sonoko, dois momentos vão destacar-se como polos opostos, à volta da qual se vai organizar a narrativa. Num dia em que regressa da escola e vê-se sozinho em casa, Michio olha para o retrato da falecida mãe, e depois para um vestido de mulher pendurado que imagina ser da sua mãe, agarrando-lhe a mão imaginária de um fantasma que só ele vê, para depois jogar às escondidas com ela na casa, revelando um sorriso tão enternecedor quão saudoso – esta fantasia é interrompida pela chegada de Sonoko, e o sorriso de Michio não tem continuação. É uma belíssima sequência que pontua o filme com o desejo de Michio de não perder a memória da sua mãe biológica, um raio de luz temporário na tempestade que este vive.
Quando noutra ocasião Michio chega a casa e depara-se com a fuga do seu pombo-correio de estimação, a sua reação é tão violenta quanto bela tinha sido o seu momento de fantasia com a mãe falecida, vingando-se na irmã mais nova, Emiko, batendo-lhe perante a impassividade de Sonoko, incapaz de reagir, fixada no choque da impossibilidade de redimir a sua relação com Michio. Uma sequência que é levada ao limite na sua duração e agressão de Michio, um desconforto acentuado pelo choro de Emiko e da figura paralisada de Sonoko. É uma sequência que acaba com uma imagem de bonecas destruídas no chão, bonecas que Sonoko tinha estado a reconstruir como trabalho part-time, e que Michio usa como arma de arremesso contra a irmã – um sinal sobre as possibilidades de um futuro feliz despedaçadas.
Porém, Shimizu guarda ainda uma outra sequência para o desenlace desta turbulência de uma forma que coloca o filme no campo do melodrama clássico, tão desarmante na sua honestidade – porque apela à fragilidade das personagens – como comovente. Depois de outra fuga de Michio, Sonoko é chamada à escola para ser confrontada com uma composição que este escreveu sobre os seus sentimentos em relação ao que tem vivido nos últimos tempos. Se da primeira vez vemos apenas a reacção silenciosa de Sonoko perante a carta, na cena seguinte a família alargada reúne-se em silêncio enquanto ouvimos em voz off as palavras de Michio, intercaladas pontualmente com a imagem de uma torneira a pingar, muito reminiscente da imagem do envelhecido pai interpretado por Chishû Ryû a descascar uma maça enquanto reflecte sobre a sua vida em Banshun (Primavera Tardia, 1949); é, mais uma vez, uma aparente simples imagem que carrega uma complexidade tremenda, e que serve para contextualizar o que até aí aconteceu.
Como começamos por escrever, Hiroshi Shimizu realizou cerca de 160 filmes, muitos deles ainda no período do cinema mudo, muitos deles perdidos com o tempo. Segundo a nota de imprensa do filme, durante a sua filmografia, Shimizu retratou as lutas diárias de personagens vítimas de circunstâncias sociais e económicas, personagens fragilizadas que viviam nas margens da sociedade, como mulheres trabalhadoras, comunidades de viajantes, trabalhadores migrantes, e especialmente crianças, muitas vezes abandonadas pela sociedade – chegou a mesmo a dedicar filmes aos órfãos da Guerra e a crianças doentes ou abandonadas pela sociedade. Neste Imagem de Uma Mãe, que foi o seu último filme (viria a morrer sete anos depois), não será difícil imaginar algo de biográfico, mas acima de tudo encontramos também uma súmula do que terá sido o seu trabalho, pleno de humanismo, de defesa e empatia pelos esquecidos e incompreendidos, como o pequeno Michio neste filme. Convém então recuperar a sua obra, descobrir os seus filmes, e isso passa por vê-la em sala, agarrar essa oportunidade, porque é exactamente o que este filme, Imagem de uma Mãe pede: uma experiência colectiva de catarse emocional.