Pablo Larraín revelou numa entrevista recente que nos seus últimos filmes [salvo melhor informação, a partir de El Conde ( O Conde, 2023)] havia decidido voltado a operar a câmara, impulso que trazia de Tony Manero (2008), Young & Wild (2012) e No (2012). Este pode ser visto como um gesto de aproximação – às personagens – e de controlo – da obra. Mesmo nos casos em que não o faz pelas próprias mãos, o trabalho de câmara no cinema de Larraín procura traçar essa linha de separação da personagem com o seu mundo, no sentido de salientar e de focar no efeito que o segundo tem no primeiro.

Essa proximidade emocional é aquilo que havia permitido a filmes como Jackie (2016) e Spencer (2021) sobreviver por si, afirmando-se para lá da etiqueta biográfica das suas personagens. Essa proximidade era uma estratégia de composição que centrava nos planos a ideia (algo ingénua, mas que deu os seus frutos) de que o “escondido” da senhora Kennedy era simplesmente Jackie e que a profundidade humana de Lady Di se encontrava afinal em Spencer. Como se o filme fosse, nessa pequena estratégia de desnudamento, a manifestação do ser humano como “behind the scenes”, um sonho molhado do “access all areas”, no qual o privado seria, por detrás da cortina do público, o produto muito mais valioso e apetecível.
Apesar de querer escapar ao seu fatal e trágico destino, Maria é assim, plenamente e no pior sentido da palavra, biográfico.
Em Maria (2024), filme que tem sido visto como terceiro tomo da denominada trilogia das grandes mulheres, a estratégia parece ser semelhante. Larraín, juntamente com o argumentista Steven Knight, focam-nos nos últimos momentos da vida de Maria Callas, em 1977, quando vivia em Paris apenas na companhia dos seus dois “seres humanos de estimação” – os criados Ferrucio (Pierfrancesco Favino) e Bruna (Alba Rohrwacher) – e os seus dois caniches. Nestes tempos, a voz da diva grega já não correspondia e por isso, e mais uma vez, não é La Callas que interessa tanto a Larraín, mas mais encontrar Maria no interior da grande soprano.
Neste período Maria Callas lida com a falência da sua voz (pensa-se que consequência de uma doença inflamatória crónica) e, consequentemente, com a decadência do seu estatuto, ao mesmo tempo que a automedicação de hipnóticos lhe irá desencadear momentos de alucinação, até ao ataque cardíaco final. Se a esta breve descrição adicionarmos a ópera e a voz de Callas e, naturalmente, o peso da presença de Angelina Jolie, facilmente compreendemos que, apesar das intenções de Larraín, Maria nunca consegue escapar de La Callas. E que, ao contrário dos dois outros filmes da trilogia (sobretudo com Jackie, para o qual o argumento premiado em Veneza de Noah Oppenheim contribuiu fortemente), aqui a imponência da figura (e da sua depressão), o sentido de tragédia constante, devoram um sentido de progressão.
Apesar de querer escapar ao seu fatal e trágico destino, Maria é assim, plenamente e no pior sentido da palavra, biográfico. Fica-se com a profundidade da sua música mas também com o sublinhar da homenagem. E Angelia Jolie parece ser para Larraín um pouco a sua Callas, com um certo sentido de reverência e acomodação da sua exuberância e maneirismo (que talvez lhe darão um Oscar). No resto, as alucinações de Maria servem menos a alucinação do filme e apenas a introdução do diálogo e confronto com o seu passado, via um documentário biográfico que um realizador com nome de medicamento estaria a fazer (personagem desempenhada por Kodi Smit-McPhee). A isto juntemos ainda a caução da profundidade de representação de Jolie (com meses de preparação para entrar na postura, no tom de Callas) e a leve bizarria de episódios dramáticos (o piano que se move ao longo do filme), que confere à diva um sentido de excentricidade e de existência torturada, encerrada no palco da sua casa, com os já referidos dóceis interlocutores.
Não deixa de ser interessante que os momentos iniciais e finais, revelem, de longe, com um recato elegante, a morte de Callas. Como se Maria começasse, desde cedo, a dirigir-se para o seu início que é o seu fim. A questão com esta crónica de uma morte anunciada é que, ao contrário de filmes que abordam este inevitável declínio de uma diva [por exemplo, Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses, 1950) ou All About Eve (Eva, 1950)], aqui, tudo sublinha, sem progressão, essa tragédia: os olhares, o regresso ao passado, o uso do preto e branco, o sentido de fracasso terminal. Não se trata tanto de uma questão de refinamento de linguagem, quanto de redundância, de não acreditar suficientemente numa progressão da dor e de concluir sempre antes de enunciar.
Perto do fim voltamos à cena inicial: os criados de Maria encontra-na morta na sua casa. Neste momento, Ferrucio faz uma chamada a anunciar a morte da grande cantora. Nesses instantes, os seus caniches ganem, levemente, um par de vezes. Nesse pequeno detalhe sublinha-se um maior sentido de tragédia do que provavelmente em tudo o que vem para trás. Confirmando assim que as homenagens estão a toda a volta e não apenas na centralidade do palco, do canto, das palavras. E que o cinema, esse, arrisca-se a escapar pelas frestas quando com um dispositivo queremos fechar portas e janelas.
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