Há vários tipos de realizadores: aqueles que reconstroem, minuciosamente, o mundo à semelhança da sua imaginação; aqueles que prescindem do mundo para se entregarem, totalmente, à matéria das coisas; aqueles que acendem no mundo a fagulha de uma ideia para depois se regozijarem com os prazeres do seu fogo-fátuo. Há, ainda, aqueles que negoceiam, permanentemente, a sua relação com aquilo que os rodeia, ora assimilando, ora repelindo. Há também os que negando o mundo parecem sacralizá-lo a partir dos seus signos. E, a estes, juntam-se aqueles que se diluem inteiramente no mundo, como uma forma de entrega e sacrifício. Não sei, ao certo, que tipo de realizador é Miguel Gomes – talvez nenhum dos anteriores.

Contudo, parece-me que a partir de Aquele Querido Mês de Agosto (2008), o realizador passou a ser daqueles que se serve do mundo como se de uma tômbola se tratasse. Os seus filmes têm sido o resultado de um bailado com o seu entorno: por vezes Gomes inicia a construção de uma empresa formal, deixando que esta se cumpra de forma quase autónoma [Diários de Otsoga (2021)], doutras vezes monta um “mecanismo de disponibilidade” a partir do qual acolhe e modela aquilo que lhe cai na rede [solução levada à letra na figura do narrador, em As Mil e um Noite (2015), preso no emaranhado do seu próprio enredo], doutras ainda trata-se de um jogo de reconstrução a partir das ruínas – mais ou menos desejadas – de um falhanço [o referido Mês de Agosto]. Diante de Grand Tour estou em crer que se trata de uma versão miscigenada das experiências anteriores, onde o desejo de descontrolo se fez método.
De facto, a grande lição que Miguel Gomes tirou das contrariedades de Aquele Querido Mês de Agosto (e da sua atribulada rodagem – e das subsequentes contrariedades de Tabu) foi que a obstaculização sistemática se poderia operacionalizar. Daí em diante, cada um dos seus filmes tem resultado do processo de superação de um conjunto de dificuldades autoimpostas – sendo que o realizador tem sido sempre capaz de definir antecipadamente os ardilosos caminhos por onde se decide meter, deixando à sorte – e ao engenho – a descoberta de uma saída. Se em As Mil e Uma Noites estabeleceu um intervalo temporal para a recolha de “histórias reais” e um enquadramento “sociopolítico” provocado pela atuação do FMI em Portugal, já em Diários aproveitou-se dos entraves à circulação e ao convívio impostos pela pandemia. Nesses dois casos, o realizador partiu de imposições externas (a crise financeira, a crise sanitária) para, a partir delas, construir um edifício formal que integra e reformula essas condicionantes, pervertendo-as e transformando-as em peças de um jogo que cabe ao espectador descobrir como jogar.
Grand Tour marca, no contexto da obra do realizador, uma mudança. Depois da falta de orçamento que interrompeu a rodagem de Aquele Querido Mês de Agosto, depois da necessária reestruturação da segunda parte de Tabu após o “esgotamento” provocado pela primeira, depois do (des)apertar do cinto estético de As Mil e Uma Noites e da dimensão concentracionária e autorreflexiva do confinamento em Diários, depois de tudo isso, eis que Grand Tour resulta – quase inteiramente e pela primeira vez – de restrições concebidas e organizadas pelo próprio realizador.
O grande feito de Miguel Gomes em Grand Tour passa por produzir uma violenta sensação de desorientação e de desconsolo, como se de um “pesadelo pacificado” se tratasse.
Mas que restrições foram essas que impulsionaram Grand Tour? No fundo, trata-se de uma espécie de inversão do que se passou em Tabu. Ao invés de uma primeira parte em rodagem “convencional” seguida de um processo de reescrita que surpreende e reinterpreta a primeira parte, agora o realizador lançou-se numa viagem (com uma pequena equipa) através de uma séries de países do Extremo Oriente – o dito grand tour asiático, modelo de viagem aventurosa popular no início do século XX, que neste caso começou no Myanmar e acabou na China, passando pelo Vietname, Tailândia, Filipinas, Singapura e Japão – e foi a partir das imagens filmadas ao longo desse percurso que “se constituiu um arquivo de viagem” a partir do qual o realizador e o seu comité central (Mariana Ricardo, Telmo Churro, Maureen Fazendeiro) escreveram o argumento que orientaria a segunda parte, em “rodagem convencional”, integralmente feita em estúdio, entre Portugal e Itália, e aí já com atores.
O que daqui resulta é uma estrutura que trabalha segundo uma dialética de expansão e concentração (de sístole e diástole se se quiser ser cardía… romântico). A fase de expansão passa por um processo de desprendimento, de abertura ao mundo e às suas revelações, de hospitalidade, de acolhimento das coisas, das descobertas, das surpresas, do inusitado. Já a fase de concentração passa pela construção narrativa, pelo desenho de uma estrutura, pelo desenvolvimento de personagens, pelo trabalho sobre rimas, ecos e reverberações (internas e externas). E, como em todos os filmes de Miguel Gomes, todo este processo integra e enforma o próprio filme, revelando-se os trâmites da construção na experiência lúdica do visionamento. Daí que Grand Tour esteja recheado de imagens síntese da própria empresa narrativa a que o realizador se/nos propõe: a mais evidente é das marionetas, que abre o filme, mas a esta juntam-se outras, como o teatro de sombras, os fantoches, mas igualmente a coreografia das artes marciais e, de forma já metafórica, a “roda gigante”.
Esta última, da roda gigante, é talvez a “figura sinóptica” por excelência do filme. Trata-se de um carrossel mecânico-artesanal propulsionado pelo próprio peso dos operadores, que gira por vezes a uma velocidade alucinante, que está na vertigem do desconchavo (e de múltiplas fraturas expostas), que produz magníficas acrobacias e que, pela sua circularidade, produz um divertimento que se reproduz no seu próprio exercício, não avançando nem recuando e provocando – nos estômagos mais sensíveis – eventuais enjoos. Se dúvidas restassem, a sequência da rotunda esclareceria essa qualidade centrípeta e algo autofágica do filme.

A organização narrativa em espelho – a primeira parte, dedicado ao percurso do marido em fuga, a segunda, que acompanha a noiva no seu encalço – produz um estranho efeito de complementaridade/redundância que parece sublinhar a dimensão binária da própria trama: imagem documental/filmagem em estúdio, aventura exótica/meticulosa reconstituição, cor/preto e branco, sombra/luz, Ásia/Europa, caos/ordem, cobardia/persistência, “realidade e imaginário, mundo e cinema” (palavras do próprio Gomes) – tudo culminando no binómio homem/mulher. Daí que, em duas partes simétricas, o filme se organize numa lógica de variações onde, por exemplo, importa salientar a diferença dos dois finais, como sendo a diferença entre “mundo e cinema”, isto é, entre um sono-morte e uma morte-despertar.
O realizador referiu-se a esta estrutura bipartida como sendo a “sinfonia de um desencontro”, e talvez essa seja a dimensão mais cativante de Grand Tour – não o binarismo, mas a sensação física do desencontro provocada pela primeira parte (mais entregue à expansão/diástole). É que, ao longo da primeira hora de filme, o próprio espectador deixa-se levar pela dispersão errante da personagem sem rumo, experienciando a narrativa como um caos informe de materiais, línguas, personagens-tipo e sonoridades. O excesso de informação, o lado arbitrário da ação, a irradiação geográfica e cultural, o lado fragmentário e lacunar da narrativa, tudo isto lança o espectador naquilo que, à falta de melhor palavra, se pode descrever como turbilhão – daí a força simbólica da roda “roda gigante”. De facto, perante a primeira parte de Grand Tour está-se diante de um filme vaporoso, que se esvai no olhar, de que é difícil agarrar uma imagem que se seja. Essa qualidade inefável é o grande feito de Miguel Gomes em Grand Tour: produzir uma violenta sensação de desorientação e de desconsolo, como se de um “pesadelo pacificado” se tratasse.
A segunda parte, embora seja uma “necessidade conceptual” sem a qual a primeira deixaria de fazer sentido, acaba por surgir apenas como um suplemento. É certo que é a segunda parte que impõe uma mudança de tom – muito mais humorístico, veja-se o “riso-peido”, muito mais romântico e também muito mais trágico –, mas é igualmente a segunda parte que se preocupa em esclarecer tudo o que houvesse ficado em suspenso, encerrando todas as dúvidas e cosendo todas as pontas soltas que a primeira parte havia deixado (aliás, o desenlace opiáceo da primeira parte tinha já uma função de recapitulação). Essa “obsessão” em fechar completamente o círculo – numa roda gigante e em permanente rotação – define, simultaneamente, a pujança conceptual do projeto e a sua limitação programática.
“Tornar-se senhor do caos que se é” era a epígrafe, roubada a Nietzsche, que abria Viagem ao Princípio do Mundo (1997), de Manoel de Oliveira. Até certo ponto, a mesma epígrafe não ficaria deslocada em Grand Tour, como também não seria inapropriado que este filme de Miguel Gomes se chamasse “Viagem ao Princípio do Mundo” – porque no fim do caminho, o realizador (re)descobre o princípio de tudo: a luz, a mulher, o cinema. O domínio do caos é a razão do cinema de Miguel Gomes. Mas o prazer está em não se deixar dominar.
★★★☆☆
