O amigo X bem me tinha avisado: o que eu ia fazer seria um pouco como analisar e comparar diferentes tipos de excremento. Por acaso, não sei se X disse “diferentes tipos”, mas se o disse – e, de facto, a memória pode-me estar a atraiçoar – o bom amigo estaria, pelo menos nesse particular, errado, já que de diferente ou variada pouco teve a experiência que acabei por levar avante. Mas adiante: o que nesta crónica proponho aos caros leitores é uma viagem pelos “magazines de cinema” da televisão nacional, anotando com algum grau de objectividade o formato, o registo discursivo, os conteúdos e (dis)semelhanças dos elementos que compõem a amostra. Se é um cinéfilo sensível, faça o favor de se agarrar bem.
Antes de mais, como manda a boa prática científica, convém identificar o corpus de análise. O magazine de dez minutos Estreias da Semana do canal Hollywood, Cinebox da TVI e TVI24 e Janela Indiscreta da RTP – estes dois últimos com cerca de 30 minutos – foram os “tele-jornais cinéfilos” que encontrei numa inspecção mais ou menos aturada que fiz pela lista de canais não pagos que a plataforma Meo tem para oferecer. Escolhi analisar a semana de estreias de 30 de Outubro, tal como podia ter escolhido analisar outra semana qualquer – de qualquer modo, a proximidade temporal entre esta crónica e os objectos da experiência que aqui trago facilitará por certo a leitura das conclusões a que cheguei.
Começando pelo mais pequeno, Esteias da Semana, trata-se de um jornal em formato de magazine que propagandeia uma estreia sonante da semana. O que se propõe aqui é uma edição mínima, para não dizer preguiçosa, do material enviado pelas distribuidoras do “filme em foco”, que pode incluir imagens de trailers, de making of e alguns depoimentos dos actores, realizador, argumentista, etc. O que se produz de raiz é a introdução por parte do apresentador aos diferentes segmentos desse material que é cortado como postas de bacalhau. No estúdio, o anfitrião folgazão – na edição que visionei apanhei um rapaz chamado Bernardo Mendonça, que, aviso já, não pertence à famiglia – debita um texto pobremente redigido, tentando apelar à “malta jovem” na mímica forçada e com frases do género “Brutal! Crime e acção num filme carregado de carisma!” ou “bons actores e as meninas… meninas giras, hem?!”. O rapaz fala de Lawless (Dos Homens Sem Lei, 2012), mas o título pouco importa, porque algo me diz que, por aqueles lados, tudo deve ser “brutal” e “carismático” 24 frames por segundo. De qualquer modo, o filme de John Hillcoat é o título que Estreias da Semana esgota todo o seu precioso tempo a vender. Se a Dica da Semana fosse um magazine de cinema para jovens, pois então teria aqui o seu mais perfeito avatar televisivo.
Apesar de mais extenso, o formato é sensivelmente o mesmo em Cinebox. De novo, temos um “jornal” que se limita a passar “press releases” com os “melhores momentos” e todos os taglines ou punchlines que produzam impacto no espectador-médio, entendido este como aquela pessoa que entra em êxtase com a simples velocidade e agitação das imagens tanto quanto qualquer bebé recém-nascido com as projecções de luz e formas multicolores no tecto do quarto. Não se comem tantos gelados com a testa como em Estreias da Semana, mas a administração da anestesia é parecida, apesar de aqui – até pelos 30 minutos de duração – existir um acrescido trabalho de agendamento e um registo mais cuidado/profissional na apresentação dos conteúdos. Também é preciso ser justo: em Cinebox procura-se a produção de alguma coisa original para lá do teleponto (não tão miseravelmente escrito como o de Estreias da Semana) a partir do qual se inserem ou são lançados aqueles cocktails pré-fabricados de trailers-misturados-com-junkets-misturados-com-making–of. Exemplo disso é a entrevista feita em estúdio a José Wallenstein pela mão do apresentador Vítor Moura, jornalista sóbrio que daria alguns bons conselhos ao hiperexcitado Bernardo Mendonça. Pese embora predomine a produção de língua inglesa, registo com algum agrado a realização de uma pequena conversa em torno de um filme português, no caso, A Moral Conjugal.
Passo para o terceiro, e na minha opinião mais importante, magazine de cinema, o qual no item “formato” confirma aquela ideia, que já todos intuímos, de que o canal pode mudar e a oferta permanecer (n)a mesma. Para mal dos nossos pecados, o programa Janela Indiscreta de Mário Augusto é outrossim uma sucessão de promos (cheios de adjectivos de satisfação supimpa, como se o “mundo do cinema” fosse um grande anúncio ao Kinder Surpresa) aos filmes “quentes” a sair nessa semana ou lançados na semana anterior. É o caso de Skyfall (007 – Skyfall, 2012), que merece uma cobertura especial com três momentos de entrevista: um primeiro com o protagonista, Daniel Craig – que Mário Augusto sublinha ter entrevistado para os filmes anteriores de James Bond, ressalvando, com indisfarçável vaidade, que nunca antes o viu tão seguro -; um segundo com Javier Bardem – que Mário Augusto também faz questão de dizer que já entrevistou -; e, por fim, um terceiro na presença das duas “bond girls” do filme. Comparando com o Cinebox, nota-se de imediato uma diferença de natureza editorial: é que o programa da TVI, com uma cobertura mais representativa das estreias da semana, apenas inclui um segmento dedicado ao mais recente James Bond, com duas entrevistas – onde nem se dá pelo entrevistador Vítor Moura – às “bond girls”.
Outra nota importante na comparação entre Cinebox e Janela Indiscreta – e descartemos já o outro produto não “para” mas “de” adolescentes imberbes, que constitui, de facto, o grau zero da cobertura cinéfila em televisão – prende-se com o enfoque dado ao filme português da semana, A Moral Conjugal. Se no primeiro, José Wallenstein é chamado ao estúdio para trocar umas palavras, no segundo, é o Janela Indiscreta que sai do estúdio para “apanhar” actores e técnicos em pleno acto de rodagem, seguindo, enfim, o modelo mais típico da reportagem ou do making of. Outra divergência evidente, que volto a sublinhar, é a atenção gigantesca que Janela Indiscreta dispensa ao blockbuster britânico (abreviadamente referido no magazine da TVI) tal como à presença de Augusto, Mário Augusto nas suas conversas com os actores – e estes, filmados num tradicional campo/contra-campo, quase parece que falam “de igual para igual” com o the one and only…
Cinebox tem uma cobertura muito mais extensiva que Janela Indiscreta, que prefere explorar intensivamente determinada estreia. Para além dos títulos já mencionados, filmes como Paranormal Activity 4, Stoker, Lawless aparecem na agenda de Cinebox, ao passo que Janela Indiscreta, fora o referido Skyfall que come grande parte do tempo de antena, se resume no dia 30 à divulgação do último filme dos irmãos Taviani (aplauda-se esta que é a sua única referência entre os elementos da amostra!), a uma mais prolongada exposição sobre o filme de John Hillcoat (numa montagem de cariz didáctico sobre os anos da lei seca) e às “primeiras imagens” da última… “coisa” de Brandon Fraser, que dá pelo nome de Furry Vengeance, filme que, em português (e o filme conta com versão dobrada devidamente “promovida” no programa), tem como título A Bicharada Contra-Ataca.
Cinebox antecipa ainda a estreia do filme de Francisco Manso e João Correa sobre Aristides de Sousa Mendes, num momento de alguma criatividade cinéfila, já que o põe em diálogo com a antológica sequência de Casablanca (1942) na qual a personagem de Paul Henreid faz soar mais alto a Marselhesa para abafar o cântico alemão. Porquê este apontamento final? Por uma razão curiosa: uma das actrizes do filme, que aparece gritando “Viva a França! Viva a democracia!”, foi uma das muitas cidadãs judias que viram a sua vida salva graças à intervenção do cônsul de Bordéus, que ficou também para a história como o “Schindler português”. Outro exclusivo digno de registo é a pequena entrevista ao compositor português, radicado em Los Angeles, Nuno Maló, recentemente nomeado para os Hollywood Music in Media Awards 2012. Já a nota de criatividade em Janela Indiscreta – mesmo se existisse – nunca poderia superar, por muito que tentassem, a valência daqueles separadores com frases (supostamente) lapidares da Sétima Arte: desde “My precious” (de Lord of the Rings) a “Frankly, my dear, I don’t give a damn” (de Gone With the Wind), passando por “I’ll be back” (de Terminator II) e… “até que a voz me doa” (pois claro, desse clássico maior entre os clássicos chamado Amália… e assim se vai transmitindo e relativizando até ao absurdo a história do cinema e das imagens).
Concluindo, em face desta pequena experiência empírica, no que diz respeito ao programa da RTP2 Janela Indiscreta, o único espaço informativo dedicado exclusivamente ao cinema na televisão dita de serviço público, coloco de seguida algumas questões que, por respeito ao leitor, me vou escusar de responder.
Será o magazine de cinema Janela Indiscreta a alternativa pretendida para o fomento da cultura cinéfila tal como esta deve ser entendida pelo Estado português no quadro de uma efectiva programação de serviço público?
Olhemos para a lei…
Concorrerá o programa de Mário Augusto para o cumprimento do n.º 2, do Artigo 54º, da Lei da Televisão , onde se dispõe que “O segundo serviço de programas generalista de âmbito nacional deve assegurar uma programação de grande qualidade, coerente e distinta dos demais serviços de programas televisivos de serviço público”?
Olhemos, agora, para o contrato…
Cumprirá tal magazine o disposto na alínea c) da Cláusula 6.ª do Contrato de Concessão de Serviço Público que estabelece o seguinte objectivo da televisão pública: “Combater a uniformização da oferta televisiva, através de programação efectivamente diversificada, alternativa, criativa e não determinada por objectivos comerciais”?
Será possível esse programa possa ser a única resposta que a RTP2 nos dá à alínea d), do número 13 da Cláusula 10.ª, onde se estabelece que a RTP deverá ter na sua grelha: “Espaços regulares dedicados à cinefilia, com uma forte componente pedagógica, que contextualizem as obras difundidas na história do cinema”?
Por favor, não se sinta obrigado a responder; apenas se sinta na obrigação de “deixar respirar” as evidências de como a televisão do Estado se transformou num poleiro para os interesses comerciais de marcas instaladas ou para a projecção das carreiras individuais de bons rapazes com os amigos certos. Mas a culpa é dos “porreiraços” ou não será, antes de mais, do Regulador que não quer ou não sabe contra-atacar a bicharada?