Dar de caras com um filme como Timecode (2000) durante mais uma sessão nocturna de zapping é coisa para gerar faísca no cérebro menos avisado, pois neste filme-experiência de Mike Figgis o exercício voraz e alucinante da passagem manual de imagens-canais é “planificado” de modo automático. E digo planificado em sentido duplo: tudo se “dispõe” num único plano que se desmultiplica em quatro “canais” que exibem, sem cortes, imagens em simultâneo. Chegámos àquela espécie de “canal 0” que havia na antiga TV Cabo, onde o espectador podia assistir – já sem ter de premir em botões – a todos os canais na mesma imagem.
Paramos em Timecode porque este fala a linguagem da televisão, tornando o espectador simultaneamente passivo (porque já não tem de premir no botão para ver “vários canais”) e activo (porque em frente a um split screen que divide o ecrã em quatro planos distintos o espectador terá de fazer a sua montagem dos acontecimentos, ou seja, a “síntese” do que neles se exibe). O espectador de 2000, ano de estreia deste filme de Figgis, estaria menos preparado para o desafio do que está o espectador moderno da televisão digital, ele que tem agora cada vez mais (aparente) poder sobre a enxurrada de imagens vomitadas 24 frames por segundo. Carregando no botão vermelho – aquele que tradicionalmente, uma vez pressionado, faria lançar a bomba atómica – o espectador dispõe das imagens escondidas atrás das imagens que lhe chegam em “primeira mão”. Isso acontece de modo mais evidente nalgumas transmissões de futebol ou nos canais que transmitem durante 24 horas a partir da casa que, apesar de estar sob a vigilância de todos nós, dizem ser “dos segredos” – aqui, contudo, a montagem é linear.
O mesmo não se passa com o dispositivo de Timecode, que hoje facilmente identificamos nos novos modelos de directo televisivo, em que dois planos transmitem em simultâneo “o tempo real” no ecrã – duas janelas abrem-se na imagem para acontecimentos con-correntes no tempo mas espacialmente distantes. Estas duas imagens que se geram lutam por ocupar o espaço maior no ecrã, há uma competição invisível entre o que se passa num lado (o lado “próximo” onde se dão notícias) com o que se passa no outro (o lado “longínquo” on spot que poderá virar breaking news a qualquer altura). Antes da banalização deste dispositivo jornalístico, Figgis fez do overlapping de acontecimentos, em quatro “canais” diferentes mostrados no mesmo plano temporal de imagens, uma reflexão algo desarmante em torno da ideia de fabricação do directo ou, por outras palavras, da fabricação de uma unidade espaço-tempo a partir de fragmentos de uma suposta (hiper)realidade imaginária ou de um reality show muito bem encenado (como toda a boa reality e como todo o bom show o são amiúde).
Por coincidência ou não, trata-se também, na nossa televisão que tanto gosta de passar os mesmos conteúdos por vezes quase em loop, de um comentário ou, sendo exacto nos termos, de uma desmontagem (neste filme de filmes em plano único) da própria ideia de repetição, que no caso deste filme pode acontecer sem que haja propriamente “repetição” na sequencialidade das imagens tal como são percepcionadas pelo espectador de visionamento em visionamento. Não que a ordem fundamentalmente mude – isso acontecerá com as projecções aleatórias, em split screen, do “objecto do cinema” chamado Chelsea Girls (1966) – mas a percepção dessa história arrisca-se a ser sempre ligeiramente diferente a cada novo zapping que nela pare. De repente, este filme, que foi um desastre nas salas de cinema – e ainda o será como mero objecto cinematográfico, isto é, como mero “objecto do cinema” -, parece servir na perfeição a ambição do programador televisivo: mostrar a mesma coisa ad eternum produzindo sempre alguma (nem que muito ligeira) diferença na repetição. Um convite à reprise, logo, um “produto” televisivo que seria quase perfeito não estivesse ele demasiado preso a um exercício de “auto-demonstração”.
O futuro passará por tornar cada uma dessas janelas, cada um desses pequenos “quadrados mágicos” numa televisão gerada de forma aleatória, nunca se repetindo tal como produzindo sempre a ilusão da necessária convergência final (a síntese…), onde tudo apareça con-fu(n)dido (como escreveu recentemente o Carlos Natálio a propósito de Cloud Atlas). O filme de Figgis é, (também) nesse aspecto, mais limitado que o já citado clássico de Warhol e Morrissey, na medida em que o som conduz de modo previsível o espectador pela história que “circula” entre os quatro quadrados no ecrã; também não há espaço de indeterminação neste “zapping mental”, zonas de hesitação ou narrativas novas a abrirem-se em simultâneo à nossa frente (apenas detalhes que nos escaparão sempre e que talvez se “façam ver” em novo visionamento…). Neste particular, e apesar de sinalizar algo que “está a acontecer”, Timecode já parece coisa do passado, estando longe sequer de adivinhar uma “televisão inteligente para um espectador inteligente”, palco de uma espécie de reality game com um telespectador que, sem comando, faz a sua história de entre as várias histórias que se abrem à sua frente. Uma história feita de (in)decisões e arrependimentos, uma história que nos implique enquanto “visores” – uma ou várias “segundas vidas” oferecidas no ecrã como faces sempre móveis de um cubo mágico. Assim, o filme, como um videojogo, seria sempre o mesmo sem ser sempre a mesma coisa.