Quarta-feira pela tarde, João Bénard da Costa abre as portas do anfiteatro de Geografia, onde os seus alunos vão assistir a mais uma aula do Curso de Cinema. Vivem-se tempos já salazarentos demais, guerras várias, frias, quentes e coloniais e a juventude que assiste a estas aulas é a que fará e viverá os Abris e os Maios vindouros, por adivinhar só desgraças para o futuro e preferir começar a sonhar esse “sonho lindo que passou”, como cantou muito depois José Mário Branco. Conhecem Bénard da Costa, “católico progressista”, já veterano de revoluções e já vencido delas nos anos 50. São eles os verdadeiros “filhos de Bénard”, por terem recebido os ensinamentos em primeira mão e privarem com ele em conversas, entre aspirações e confissões, como o fazem jovens que encontram aquelas almas raras, bondosas, a quem se podem dar por inteiro.
É só cinema, o que se segue, mas esse “só” é matéria dos sonhos e matéria das consciências. É a matéria de que são feitas as mudanças. A conversa é inventada, os nomes dos alunos também, tomando como ponto de partida o testemunho de Jorge Silva Melo sobre estas aulas: “No anfiteatro de Geografia, que estava cheio, a rebentar, às Quartas-Feiras à tarde, falando ele, eu diria que era das duas da tarde até às seis – sem parar -, de cinema, começando no mudo, no Griffith, na Lilian Gish, quase tudo filmes que nenhum de nós tinha visto (nem podia ver, porque não havia Cinemateca, havia a censura, o cinema moderno não passava, estava escondido) e nós éramos miúdos, portanto muitos dos filmes nós nem podíamos ver porque eram para maiores de 17 anos.”
Não faz justiça nenhuma aos tempos, nem às aulas, nem sobretudo ao “poder encantatório da palavra de João Bénard”, mas é o que se consegue:
João Bénard da Costa: Boa tarde, juventude. Espero que tenham todos dormido bem. Comido, também. Já almoçaram? Senão, trata-se já disso… Ninguém? Bom, de que é que falámos a semana passada?
Rui: Estávamos nos anos 30. Começámos a falar sobre os primeiros filmes de Fritz Lang em Hollywood.
João Bénard da Costa: Ah, sim, já me lembro. Muito obrigado, Rui. Já não sei como vai ser isto, estamos em finais de Abril e só vamos nos anos 30… Mas tudo se resolve.
Rui: Também já estávamos no final dos anos 30.
João Bénard da Costa: Então resolve-se com toda a certeza. Fazemos assim: hoje e durante as próximas semanas, ocupamo-nos dos anos 40, que foi a década em que comecei a ver filmes e portanto fica por minha conta. Mas daqui a um mês, são vocês que me ensinam os anos 50. Quero que escrevam um texto sobre os primeiros filmes que viram, sobre os filmes que deixaram em vós marca irreparável. Não prometo que haja tempo para falarmos sobre eles todos, mas vai-se tentar.
Maria: Quantas páginas, professor?
João Bénard da Costa: Quantas quiserem. Uma, vinte, é convosco.
Paulo: Mas sobre os primeiros filmes ou sobre os que deixaram a tal marca? Podem não ser os mesmos, não é?
João Bénard da Costa: Simplifico: sobre os primeiros filmes que deixaram a marca. A primeira grande memória e que ainda hoje não vos larga… Se calhar são precisas duas décadas para aprender a ver filmes – pelo menos comigo foi assim – e portanto as seguintes ensinam-nos que é da primeira que não conseguimos sair, porque as imagens cá ficaram e para isso nunca há remédio. E ainda bem. Os fantasmas e as mulheres em retratos dos anos 40 ainda não me deixaram e até hoje não arranjei maneira de as – e os – esquecer… E, portanto, daqui a quinze dias gostava de ter textos vossos sobre os filmes que não vos largaram até hoje e cuja lembrança esta nossa década de 60 só ajudou a reforçar. Se já passaram noites em claro por causa de um filme, se já tiveram sonhos ou pesadelos, se vos mudaram até o olhar para a vida, se as coisas se poderão encarar da mesma maneira. Se, se. Deixem sair tudo, contem se foram vocês que viram os filmes ou se foram os filmes que vos viram. Mais, ainda… Mas, bom, já passámos pela época das invenções, por Edison e pelos Lumière, pelas guerras de patentes um pouco por todo o lado. Em relação aos Lumière, como já tentei dizer, não basta falar da faceta científica, ou seja falar da parte meramente técnica. Confunde-se muito a técnica com a forma, infelizmente. Podia ser só isso e vermos enquadramentos inocentes, quando na verdade não o são, mas antes arrojados, precisos e completamente ao serviço do movimento. Pensados e com um princípio, um meio e um fim, por mais pequenos que sejam. No L’Arrivée d’un Train à la Gare de Ciotat (1896), por exemplo, o tal que levou as pessoas a fugir pela sala fora para não serem ceifadas pela locomotiva, a força da imagem, esse susto, só pode ser resultado de um posicionamento da câmara calculado meticulosamente para esse mesmo efeito. Portanto não deixem ninguém convencer-vos de que esses filmes são meras curiosidades históricas e a que se devem reverências apenas por isso. Como o não são os de Mèlies, que inventou o futuro que os Lumière não viram e descobriu o espectáculo. Os sonhos. Se lhes juntarmos Max Linder, talvez não precisemos de mais, porque talvez mesmo mais nada tenha sido inventado. Os princípios e as coordenadas estão todos assentes. Depois só os vemos em acção, mais deslumbramento menos deslumbramento. As companhias e os estúdios e as cidades que deles floresceram explorarão tudo isso porque as possibilidades e as combinações são infinitas, estarão como as notas para a música ou como as cores para a pintura. Será a época de Griffith, de Chaplin e de Murnau, que apuram a técnica até ao cume absoluto, que podemos dizer ser esse Sunrise (Aurora, 1927) maravilhoso desse alemão também maravilhoso. O cinema torna-se arte . Com a chegada do sonoro, repararão que bastam quatro ou cinco anos para que os princípios e as coordenadas integrem o som, como integrarão depois a cor em muito menos tempo. Por 1934-35, Hollywood chega à maturação das formas e o cinema torna-se um ofício, um trabalho como outro qualquer. Com regras estabelecidas e que se podem aprender, mas já não inventar – acaba a era dos pioneiros e começa a dos artesãos. Deve ter sido por aqui que ficámos, com as sementes da discórdia a ser plantadas na Europa e com a emigração de imensos talentos para a América, na época do New Deal de Roosevelt e em tempos de plena expansão. Como já vimos, é nos anos 30 que para lá partem Sternberg, Lang, Wilder, Preminger, Ulmer e (também já vimos) como já o tinham feito nos anos 20 Lubitsch, Murnau e Sjostrom e o fizeram Stroheim e Maurice Tourneur com o filho Jacques nos anos 10, com maior ou menor sucesso e levados por razões diferentes… Mas Lang, Fritz Lang, e Fury (Fúria, 1936), o seu primeiro filme americano. Um dos filmes preferidos do realizador, como disse o próprio aos Cahiers há coisa de três anos e picos. Trouxe para aqui uma data dessas revistas outra vez e sei que foi em ’59, que tinha uma foto do Lang nas rodagens do épico indiano, que aqui em Lisboa, no Condes, vimos em versão reduzida, infelizmente; é da segunda parte, penso eu… Cá está, é o número 99… Afinal é da primeira. Podem ver, está dar indicações a Debra Paget… E, portanto… diz Lang: “M (Matou, 1931) e Fury são, penso eu, os filmes que prefiro. Há também outros, que realizei na América, como Scarlett Street (Almas Perversas, 1945), Woman in the Window (Suprema Decisão, 1944), While the City Sleeps (Cidade nas Trevas, 1956). São todos filmes fundados sobre uma crítica social. Naturalmente prefiro isso, porque acho que a crítica é qualquer coisa de fundamental para um cineasta. Metteur en scène não tem tradução. Mise en scène também não. Ou se entende ou não se entende. E mais à frente continua, diz que não se pode distinguir crítica social de crítica civilizacional: “é a crítica do nosso ambiente, das nossas leis, das nossas convenções.” Avouer, avouer… Ah, “Admito-vos que tenho um projecto. Tenho que rodar um filme em que coloque todo o meu coração. É um filme que quer mostrar o homem de hoje, tal como é: esqueceu o sentido profundo da vida, não trabalha a não ser para as realidades, pelo dinheiro, não para enriquecer a alma, mas para ter benefícios materiais. E por ter esquecido o sentido da vida, já está morto. Tem medo do amor…” Bom, isto basta-nos. Esses três últimos filmes da década de 30 na América não nos mostram outra coisa senão isso. Não vi ainda o terceiro destes filmes com Sylvia Sidney, mas arrisco que mostre outro tanto do mesmo. É por esta alienação em relação aos sentidos profundos das coisas, que outras coisas se passam como se passam e é por uma acumulação terrível de confusões e mal-entendidos que tudo acaba em tragédia. São filmes desesperados, terríveis. Nota-se nos olhares de Spencer Tracy e Henry Fonda, parece que colocados nesta terra para castigar milénios de injustiças. Mas a fúria e a vingança deles, se nos re-encaminham para as obsessões da Alemanha natal (obsessões que, de resto, não mudarão nos filmes seguintes da obra de Lang, ao contrário do que muito boa gente acredita), não são menos criticadas.
E You Only Live Once (Só Vivemos uma Vez, 1937), e só digo agora porque ainda não o disse, é nada menos que uma das maiores obras-primas da história do cinema. Sylvia Sidney, com esses olhos húmidos, com essa fragilidade e essa força que só os grandes sopranos líricos de Hollywood têm, como a Lilian Gish de que tanto vos falei, como a Janet Gaynor de que tanto vos falei, é o reflexo e a revelação tocante dos erros desses homens que tanto ama, imagem suprema da consciência, indissociável desses olhos imensos que abarcam o mundo… E por muito que aceite essa crítica social, que efectivamente lá está e é tão necessária nos tempos que correm, não me posso esquecer da fuga belíssima de Fonda e Sidney por essa América fora, a adiar o inadiável, a prolongar impossivelmente a promessa de um futuro em que a morte não dizime os voos desse amor… E termino com este filme, que em termos formais e mesmo temáticos, anuncia já os anos 40, fale-se do film noir ou dos filmes desesperados de um Nicholas Ray, que tanto tenho aprendido a pôr lá no alto ao lado dos maiores quando falo de cinema. O They Live by Night (Filhos da Noite, 1948) é filme-irmão deste Lang… Depois desses três filmes, Lang fez um western, género em que encontrou equivalência para as suas sagas germânicas do mudo e equivalência para o estudo das raízes mitológicas de uma nação. Há um raccord propositado com o filme de Henry King, Jesse James (A Justiça de Jesse James, 1939) de que este filme é sequela, quase recapitulação à maneira das segundas partes das sagas germânicas. E no meio de tantas recapitulações, retornos e eternos retornos, não é finalmente por acaso, ou não me parece ser por acaso que esse western se chame The Return of Frank James (O Regresso de Frank James, 1940). E se não chega ver esse jogo soberbo de encenações e de batalhas por que as mentiras se tornem verdade, a lenda e os factos e como as “lendas se podem tornar factos”, como vimos, por exemplo, no último filme de John Ford, o ano passado; e se não chega ver Henry Fonda elevado a Ulisses, tomando as mesmas posições que ele em situação e dilema muito semelhantes; se não chega ver Gene Tierney tomar as vezes de Sylvia Sidney com olhos azulíssimos antes de se tornar emblema absoluto dos forties com Lubitsch, Preminger, Stahl e Mankiewicz; se não chega assistir a esse trajecto de redenção caminhado por Henry Fonda, acompanhado por uma paisagem que lhe eleva as dimensões; se não chega nada disso têm esse Technicolor já maravilhoso e esse Oeste pintado a paleta de artista… Por ter que dar atenção ao tempo falo agora de Woman in the Window e Scarlett Street em par, os dois com Joan Bennett, os dois com Edward G. Robinson. Penso fazer todo o sentido. Em ambos os filmes, Joan Bennett é uma “chienne”, mas só o segundo é que é remake do filme de Jean Renoir, com quem Bennett aliás trabalhou em The Woman on the Beach (A Mulher Desejada, 1947). Lang, ao contrário de Renoir, que destruía o casamento e a justiça como instituições, puxou as coisas para o seu lado, para o da moralidade, para a solidão, para o medo e para a culpa. Veremos mais à frente, quando analisarmos a obra doutro cineasta europeu em Hollywood, Alfred Hitchcock, que há muitas semelhanças entre os dois, embora tomem caminhos diferentes. E salto agora para 1948, em direcção a outra parceria Bennett-Lang, chamada The Secret Beyond the Door (O Segredo da Porta Fechada, 1948), outra das obras-primas maiores da história do cinema. Filme encantatório, críptico e misteriosíssimo, nele Bennett volta a ser aparição, fantasma, deambulando entre quartos proibidos construídos por um marido cheio de segredos e que ela quer desvendar. Já se sabe o que a curiosidade fez ao gato, mas aqui os termos e as consequências não são tão simples, enquanto as névoas, as flores do mal e esses corredores escuros de mansões vitorianas nos fazem duvidar de quem tem o segredo e quem tem a loucura. O melhor seria irmos vê-lo agora e ver se encontrávamos respostas, que eu não as tenho… Enquanto ainda estou em Fritz Lang, vou-nos situar, senão ainda corro o risco de que também o meu discurso se torne indecifrável… Estava-se em plena Segunda Guerra Mundial e é nesta década de 40 que se multiplicam os filmes com mortos vivos, transmigrações de almas, casas assombradas, vozes-off e símbolos afins. Pode-se percorrer esses anos e contar: Rebecca (Rebeca, 1940) e Shadow of a Doubt (Mentira, 1943) de Alfred Hitchcock, The Man in Gray (Perfídia, 1943) de Leslie Arliss, The Cat People (A Pantera, 1942) e I Walked with a Zombie (Zombie, 1943) de Jacques Tourneur, Laura (Laura, 1944) de Otto Preminger, Woman in the Window e Scarlett Street de Fritz Lang, como já vimos, Woman’s Face (A Cicatriz do Mal, 1941) e Gaslight (Meia Luz, 1944) de George Cukor, Phantom Lady (A Mulher Desconhecida, 1944) de Robert Siodmak, The Picture of Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray, 1945) de Albert Lewin, e há muitos, muitos mais. Jacques Tourneur, nascido em França, começou por vir para Hollywood com o pai, como já disse. Demos isto, alguém se lembra?
Rui: Eu lembro-me.
João Bénard da Costa: Vais ter que me desculpar, Rui, mas não podes ser sempre tu a responder a estas coisas. Mais alguém?
André: Eu lembro-me assim por alto… Mas apontei isso tudo.
João Bénard da Costa: Então tenta por alto, se não der vai aos apontamentos… André, não é?
André: É, sim… O Maurice Tourneur foi para a América com a mulher e com o filho porque uma companhia francesa tinha aberto um estúdio em Nova Jérsia. Acho que era a Pathé…
Rui: Era a Éclair!
André: Peço desculpa se não sei tudo como tu. Sempre a corrigir os outros, enervas.
João Bénard da Costa: Então, não sejam patetas.
André: Pronto e depois o pai voltou para a França. O filho já tinha trabalhado um bocado em cinema na América enquanto estudava, em filmes do pai. Deixe-me ver aqui… E ficou, arranjou trabalho como actor e assistente de realização. O pai chamou-o a Berlim, a dada altura, por causa de um filme e o Jacques começou a achar que a montagem era o melhor caminho para começar a fazer filmes e foi fazendo isso até realizar o primeiro filme. Quando achou que já tinha experiência que chegasse, voltou à América mas andou com algumas dificuldades, só conseguiu fazer umas curtas.
João Bénard da Costa: É isso mesmo. Só em 1939 é que consegue realizar a primeira longa em Hollywood. Que não vi, chama-se They All Come Out (1939) e parece que não estreou em Portugal. Porquê, não sei. E a seguir, acho que estreou tudo, mas o que me interessa – sem querer desmerecer o resto, mas porque para tudo nós não temos tempo -, e voltando às imagens dos anos 40, é Experiment Perilous (Noite na Alma, 1944), filme extraordinário. Vem na senda dos anteriores Cat People e I Walked with a Zombie, embora os monstros e os mortos-vivos tomem outra aparência e se escondam ainda mais na sombra. O que nos faz desconfiar se a intenção do realizador nesses filmes era tanto disfarçar a pobreza dos meios, porque a verdade é que quanto mais se escondem os monstros mais se entra em território do inconsciente. E aqui voltámos aos corredores e aos quartos proibidos do filme de Lang (que veio depois), voltámos aos domínios da noite e de cavernas sombrias. E voltámos à absoluta ambiguidade e à total abstracção. “We all have tigers under our beds”. Todos nós temos monstros por baixo da cama. Os maiores medos, os mais perigosos, são os que não têm forma, porque não se conseguem combater… Deixámos Alfred Hitchcock em Inglaterra e talvez devêssemos ter começado com ele, porque é Rebecca que inaugura estas paisagens e atmosferas dos “forties” em Hollywood. Ele não era estranho a essas paisagens, até porque os filmes da produtora em que trabalhou nos seus primeiros anos no cinema como artista gráfico, a Gainsborough, criada em 1924, era riquíssima em bizarrias fantasmagóricas. E o nome da produtora parecia já antever toda a produção da década de 40 em Hollywood. Foi assim chamada por causa de um quadro de Gainsborough de que o fundador, Michael Balcon, gostava muito. E quadros a desencadear filmes é outra das normas destas produções: Experiment Perilous tinha um, The Woman in the Window, também, e Laura, como vamos ver mais daqui a bocado, se tivermos tempo, também. Rebecca veio a acontecer por um convite de David O. Selznick. Era para vir mais cedo mas Gone with the Wind (E Tudo o Vento Levou, 1939) fez naufragar um primeiro projecto sobre o Titanic, e esse barco devem saber que destino teve. Hitchcock chegou à América em 1939 e triunfou. Rebecca foi um sucesso e ganhou mesmo o Óscar de Melhor Filme desse ano. Hitchcock continuou a carreira na América criando sucessos semelhantes, com a adoração do público e o ódio da crítica, até meia dúzia de jovens franceses loucos, nos anos 50, começarem a dizer que os seus filmes eram mais complexos do que se supunha. Mas isso vai ter que ficar para depois, que ainda não é tempo. É tempo de Suspicion (Suspeita, 1941) e de Joan Fontaine e Cary Grant, ela tão frágil, ele tão sinistramente calmo. Depois do genérico do filme, há uma escuridão que nos parece longa demais. Ouvimos o apito de um comboio e algumas vozes e só quando se faz luz e vemos Fontaine e Grant de frente um para o outro numa carruagem é que nos apercebemos que o comboio tinha atravessado um túnel. Apercebemo-nos também que ela se dá mal com a luz, enquanto ele se dá muito bem nela. Está a trama toda preparada, em pouquíssimo tempo. Até à prodigiosa sequência do copo de leite e até ao final do filme, todas as peripécias se vão dar nos termos estabelecidos no início, na carruagem. Shadow of a Doubt (Mentira, 1943) é a reinvenção dessa suspeita. Tudo aparentemente igual, mas nada tão diferente. Aquele misterioso laço, quase metafísico, entre tio e sobrinha é coisa que não deixa de me assombrar. Notorious (Difamação, 1946) é um triângulo amoroso sob múltiplos disfarces, múltiplas mentiras e múltiplas suspeitas, onde se revelam caracteres e posições morais pelas relações que as personagens mantêm com os objectos, relação e obsessão elevada ao cume absoluto no próximo Hitchcock de que vou falar, Rope (A Corda, 1948). Sabemos tudo desde o princípio, sabemos o que Philip e Brandon fizeram e o que é que vão tentar esconder com bastante alarido nessa arca, em casa deles, durante um jantar em que recebem alguns convidados. Faz tudo parte do plano. “The perfect murder”. Falei já por alto das semelhanças entre Hitchcock e Fritz Lang, que parecem trabalhar sobre temas muito parecidos, sobre personagens em aventuras e desventuras muito próximas. Mas o que é que os separa? Bem, Lang parece acreditar na bondade inata dos homens, no Bem, enquanto Hitchcock parece questionar se há um Bem, se não seremos todos culpados, agentes do Mal, activos ou passivos. Hitchcock neste filme faz-nos partilhar dessa culpa e torcer por que Philip e Brandon não sejam apanhados. Lang, se filmasse esta história, filmava-a doutro ponto de vista, tinha forçosamente que o fazer. Se ambos trabalham os mecanismos do “suspense”, Hitchcock alimenta a nossa safadeza até nos surpreender e nos fazer perceber isso mesmo, de que de alguma maneira não somos isentos de culpa. Lang, por outro lado, suspende a acção e faz-nos esperar para que tenhamos algum compadecimento ou alguma empatia por quem sofre, enfim, de que nos passem pela consciência todas as implicações dos actos de violência. Para me fazer entender e acabar com isto de uma vez por todas, tomo como exemplo Rope, precisamente. Hitchcock, sabemos o que fez, filmou um acto de violência e toda a hora e meia que imediatamente lhe seguiu. Lang, se fizesse Rope e quisesse concentrar também o espaço e o tempo, filmava o acto de violência e a hora e meia que o antecedia. Sim, penso que é isto… Bom, claro que me lembro muito bem do filme, ainda nem um mês fez que o vi no Tivoli e acho que não calhou em má altura, não senhor. Até nos convém. Algum de vocês o conseguiu apanhar?
Maria: Eu fui ver, com os meus pais. Gostei, mas sinceramente queria que… é o Philip e o Brandon, não é?
João Bénard da Costa: Exactamente.
Maria: Queria que eles se safassem.
Paulo: Mas não vês que caíste na esparrela, então não ouviste o que o professor disse da culpa e de nós participarmos disso? És perversa, Maria.
Maria: Então não ouvi? Não sejas parvo. Acho é que há qualquer coisa que não bate certo naquilo tudo.
João Bénard da Costa: Vá, não se peguem que não vale a pena. A Maria não é perversa e é capaz de ter razão, também a mim me pareceu que havia ali qualquer coisa que não batia certo.
Rui: Mas não é por estarmos a ver as coisas do lado dos assassinos? Se estivéssemos do outro lado e não soubéssemos nada e depois descobríssemos, só os queríamos ver atrás das grades. Como o professor disse há bocado, se fosse o Fritz Lang a fazer o filme nós nunca ficávamos do lado dos assassinos.
João Bénard da Costa: O que eu disse há bocado, ou ainda agora, se calhar é estar a simplificar um bocado a coisa. O Fritz Lang também já nos mostrou esse lado com bastante que se lhe dissesse. O que é certo é que tanto em Hitchock como em Lang nunca se está do lado do assassínio. Dos assassinos é outra história… Mas chegam a essa conclusão sempre por caminhos e processos diferentes. O assassínio é um fim. Os assassinos são um meio e podem não ser verdadeiramente responsáveis. Podem ser comandados ou manipulados pelo turbilhão da justiça, da sociedade ou da civilização, enfim, como quisermos. Ou por patologias que lhes toldem a vontade. O M e o The Blue Gardenia (A Gardénia Azul, 1953) não falam doutra coisa…
Rui: Mas eles fazem aquilo tudo porque querem, planeiam tudo até ao último detalhe.
Paulo: O único que às vezes dá a impressão de ir mesmo desistir é o Philip, o que se parece arrepender de alguma coisa, mas é um fantoche do outro. E esse, é um sacana. Uma víbora autêntica.
João Bénard da Costa: Mas a questão está em saber se mesmo esse, actuando de livre vontade, não terá sido também um fantoche nas mãos doutra pessoa ou doutro esquema hierárquico qualquer. Nos livros policiais, nos filmes também, há um detective que pergunta “quem é que beneficia deste homicídio”? Façamos um exercício semelhante. O Rupert e o Philip estão de fora, porque sabemos como acabaram… não beneficiaram coisa nenhuma.
Luísa: Mas o professor está a partir do princípio de que há um plano por trás desse plano deles. Acho que o filme só acaba bem e que os criminosos são castigados como devem ser, como no resto dos filmes. O Bem tem que ganhar.
João Bénard da Costa: Eu já aprendi há algum tempo a desconfiar de finais felizes de cineastas que tiveram décadas para aprender como circundar a censura. E, mais, não acredito que um realizador como Hitchcock, que planeia tanto e durante tanto tempo, ficasse satisfeito em mostrar apenas isso. Posso voltar aos Cahiers. Número 44… sei de cor, que também tenho andado às voltas com este trinta e um e quero descobrir a verdade. Os Cahiers comentam, “Jacques Becker disse um dia: Alfred Hitchcock é o realizador que deve ter menos surpresas do mundo, nas projecções“. Hitchcock responde-lhes, “É verdade. Nem sequer vou às rushes” – as rushes são projecções que se fazem nos estúdios depois de cada dia de rodagens – “Perguntam-me: porque é que não vai às rushes? Eu respondo: Porque é que havia de ir às rushes? Vi o que aconteceu no plateau; na minha cabeça, sei exactamente os enquadramentos e se qualquer coisa correr mal na iluminação ou na fotografia, o câmara diz-me, mas para o trabalho dos actores, para a composição das imagens, sei. Portanto não é preciso ir às rushes“. É assim, este homem está a rir-se de nós. Tem tudo na cabeça, movimentos, enquadramentos, planeia tudo de antemão e só nos quis dizer que o “Bem triunfa sobre o Mal”. Desculpem-me mas não engulo.
Maria: Hehe, eu sabia que havia alguma coisa que não batia certo.
Paulo: Ah, sim? E o que é?
Maria: Não sei. Mas acho que vemos demais aqueles dois tipos para que o objectivo seja só termos pena deles. Se calhar é para nos desviar a atenção de alguma coisa.
André: Mas se queremos saber se foi mesmo outra pessoa não é melhor falarmos das outras personagens?
João Bénard da Costa: Não é má ideia, não.
Ana: Os pais não podem ser, só se disfarçam muito bem.
Rui: Mas podem não ser pessoas, não é? Pode ser a patologia. Eles parecem um bocado…
João Bénard da Costa: Por enquanto é melhor focarmo-nos nas pessoas.
André: Eles os dois, a dada altura, não tentam sugerir que foi o antigo namorado da que estava noiva do morto que o matou? Desculpem lá, não me lembro dos nomes das personagens.
João Bénard da Costa: O antigo namorado é o Kenneth, a noiva é a Janet e o morto é o David. Mas, não, não me lembro de fazerem isso. Até porque o objectivo principal de Brandon é fazer o maior alarido possível em relação à sua pessoa e ao seu génio. À sua suposta superioridade. Repararam como se dá ao trabalho de pincelar o crime deles com imensos pormenores, que irritam Philip sobremaneira. Mas eu propunha lembrarmo-nos das personagens pela ordem em que as vemos aparecer no filme. Depois de Philip e Brandon matarem David, o que é que acontece?
Maria: Metem-no na arca.
André: Eu lembro-me que o Brandon vai abrir as cortinas mas o Philip pede-lhe que espere alguns segundos, que quer ficar um bocado às escuras.
João Bénard da Costa: Já não me lembrava disso. Extraordinário, mais uma vez há uma personagem que se dá mal com a luz e outra que se dá muitíssimo bem, num filme de Hitchcock. O que é que acontece a seguir?
Paulo: Eles fazem da arca uma mesa. Levam os livros para a cozinha e os castiçais para a arca. O Philip começa a beber.
Ana: É engraçado que acho que nessa cena na cozinha é o Philip que parece estar mais calmo. É ele que consegue abrir a garrafa, o outro não consegue. Mas acho que começam a beber antes do… do Brandon ter a ideia de servir o jantar na arca.
João Bénard da Costa: Não sei se repararam, quando viram o filme, mas até esta altura, não há nenhum corte, é tudo no mesmo plano.
Afonso: Sim, a câmara vai às costas das personagens para o corte não se notar.
João Bénard da Costa: Há oito planos no filme, cada um com dez minutos, que é a duração da fita no magasin da câmara de filmar. Sem nenhum corte. Depois a acção continua sem corte aparente, no magasin seguinte. E gostava de ver o filme outra vez para poder apreciar como é que o homem consegue distribuir personagens e objectos e mesmo assim mostrar só exactamente o que quer que nós vejamos.
Paulo: A corda aparece por esta altura, antes de chegar a empregada deles. Depois está sempre a andar de um lado para o outro. O Brandon leva-a para a cozinha, depois vai para os livros, e etc.
João Bénard da Costa: A senhora Wilson é então a primeira a chegar.
Maria: Tem muita piada, ela. Fica muito chateada com a história da mesa que lhe deu tanto trabalho a arranjar.
João Bénard da Costa: E quem chega a seguir?
Rui: É o antigo namorado.
André: O Kenneth.
Rui: Sim, é isso.
João Bénard da Costa: E depois?
Ana: Depois é a noiva do David.
João Bénard da Costa: A Janet. Bom, e que têm a dizer sobre estas três personagens?
Afonso: O único que tem um motivo é o Kenneth, mas é assim… eu acho que já percebi onde é que isto nos vai levar, mas não percebo o que… nenhuma daquelas pessoas sabe onde está o morto, o único que fica a saber é o James Stewart, mas ele é o herói do filme. Está a tentar convencer-nos que é ele que puxa os cordelinhos?
João Bénard da Costa: Eu não estou a tentar convencer ninguém de coisa nenhuma. Mas Hitchcock sabe que o público tem uma certa ideia feita de James Stewart, e eu sei porque também a tenho, vi o It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu uma Estrela, 1946), vi o The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940), vi o Mr. Smith Goes to Washington (Peço a Palavra, 1939). E como voltou a suspeitar a Maria, há algo a desviar-nos a atenção de certas coisas. Não sei se repararam, mas quando Stewart entra, passa completamente despercebido, a câmara não o vai receber à porta como fez com todos os outros convidados. Move-se ligeiramente para a esquerda para o encontrar já em casa e surpreender Philip pelas costas, que já tinha dito a Brandon que não o queria na festa. E na sombra vai ouvindo conversas alheias, conversando com a senhora Wilson e juntando as peças todas.
Afonso: Tudo bem, mas diz várias vezes que está cheio de medo, lá para o fim. Também me parece que está a fazer o Bem, como disse a Luísa.
Luísa: E quer entregá-los à justiça.
João Bénard da Costa: Mas isso é o álibi perfeito para escapar de um triplo homicídio. Para ver se me compreendem. Eu suspeitei que havia mais do que as aparências nos mostram, quando o Philip, já bêbado, diz, virando-se para Brandon e James Stewart, “o gato e o rato, o gato e o rato, quem é o gato e quem é o rato?” E, no fim, já não pode haver dúvidas, quando James Stewart diz, “Vou ajudar a sociedade a fazer o que te vai fazer. Vais ser morto. Vão ser mortos, vocês os dois.” É ele o gato. Porque não nos podemos esquecer que foi professor deles e foi também ele que lhes meteu essas ideias na cabeça.
André: Mas ele diz ao Brandon que lhe distorceu as palavras com o que fez ao David, que parece que também foi aluno dele. Acho que foram todos. E pergunta-lhe se se julgou Deus quando o matou.
João Bénard da Costa: Ainda bem que falas disso. E que se julga James Stewart, quando depois de lhes dizer que os vai matar se senta naquela poltrona de pistola na mão? Não se julgará Deus, também? Que consiga servir-se da sociedade para matar Philip e Brandon e destes dois para matar David, só prova que foi ele quem conseguiu pôr as suas palavras e as suas ideias em acção e assumir-se como ser superior perante os inferiores Brandon e Philip. E isto é terrível, eu sei, coloca as questões morais de nível privado num nível mais vasto. Social, portanto. E é por isto que o filme é também uma corda. Infinita. Quanto mais se puxa, mais se fala em Deus, mais se fala em coisas inomináveis. E aperta-nos muito, a ponto de nos deixar sem palavras perante o triunfo das morais mais terríveis. Resta-nos pensar. Pensar se não é um bocado assim que se passam as coisas, se podemos fazer qualquer coisa para que elas mudem… E mais não posso dizer. Só esperar por vocês na próxima aula para falar de mais filmes dos anos 40.