Manuel Garin é professor na Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona. É autor de vários artigos que relacionam videojogos e novos media com o cinema. Defendeu em 2012 a sua tese de doutoramento que foi adaptada a livro em 2014 pela mão da excelente editora espanhola Cátedra. El Gag Visual: De Buster Keaton a Super Mario foi o objecto que provocou o contacto com este jovem investigador. É difícil resistir à inventividade, inteligência e criatividade das suas propostas reflexivas em torno de uma “cartografia” do gag visual, de Keaton a Super Mario. Na estruturação deste nosso dossier, Na Presença dos Palhaços, era fundamental não só desfazer as fronteiras tradicionais da figura do clown na história do cinema como ir muito explicitamente além dela. Este audacioso trabalho de investigação surgiu, assim, como a oportunidade perfeita para lançarmos a reflexão sobre o gag para lá da história convencional do cinema, entrando, para o efeito, na mitologia e gramática dos videojogos e dos próprios géneros televisivos [Garin invoca como “caso de estudo” o esgrouviado concurso concebido por Takeshi Kitano, Fûun! Takeshi Jô (Nunca Digas Banzai), que esteve no ar na televisão japonesa entre 1986 e 1990].
Publicamos abaixo a primeira tradução portuguesa deste trabalho de Manuel Garin, deixando, desde já, um especial cumprimento ao autor por ter prontamente autorizado esta reprodução. Para os efeitos do nosso dossier, e para deixar alguma “água na boca” do leitor mais curioso, traduzimos abaixo uma pequeníssima parcela desta obra monumental, com um total de 398 páginas. Essa parte, correspondente às últimas páginas do livro (pp. 370-384), tem por título De Buster Keaton a Super Mario e pode ser lida no capítulo 10 chamado Jugar el gag. Joguemos, então, ao gag visual à pala de Garin. (Luís Mendonça)
Que Mario seja a personagem a suscitar actualmente um maior número de gags e vídeos cómicos no YouTube – com milhões de visualizações – não se deve unicamente à sua popularidade mundial, nem à sua divertida caracterização, deve-se à matriz estética dos seus grandes jogos. Imagens que nos falam de trajectórias, miniaturas e desvios, de perseguições e lançamentos de objectos, dentro da melhor tradição do slapstick. Se milhões de pessoas se riem actualmente com vídeos e remontagens na Internet que parodiam o canalizador da Nintendo, deve-se às suas poderosas qualidades como actor cómico [que a adaptação cinematográfica das suas aventuras, Super Mario Bros. (Super Mário, 1993), captou só em parte]. A nossa hipótese propõe pensar-se Mario como o último elo de uma cadeia de clowns que remonta ao cinema mudo e aos desenhos animados; imaginá-lo a patinar em silêncio sobre os anéis de Saturno, na companhia de Keaton e Chaplin. Por isso, nestas páginas vamos ligar a estética operacional do slapstick à sua actualização nas hilariantes máquinas de Goldberg de Nunca Digas Banzai e nos ecrãs de Super Mario. Do corpo privilegiado de Buster Keaton aos corpos aleatórios da televisão e dos comandos dos videojogos [1].
O grande ecrã jogável da história do cinema aparece em Sherlock Jr. (Sherlock Holmes Jr., 1924), quando Buster entra e sai da tela durante a projecção de um filme. No entanto, em vez de nos centrarmos nessa única sequência (sobre a qual já falámos noutros lugares [2]), vamos isolar gameplay gags de outros filmes seus para compará-los aos gags de Nunca Digas Banzai e níveis de Mario. Como dizia o próprio Keaton, o formato das suas comédias mudas consistia em produzir imagens inesperadas, inusitadas, excepcionais, que faziam do movimento uma aventura constante. Essa excepcionalidade visual é um claro ponto de contacto entre os seus gags e a forma de dispor o espaço no famosíssimo show televisivo de Takeshi Kitano Nunca Digas Banzai, onde um punhado de concorrentes passa por uma delirante série de provações físico-mecânicas para conquistar um castelo. O traço do programa japonês é bastante mais grosso que o dos filmes de Keaton, mas o objectivo é o mesmo: evocar aquela excepcionalidade visual do slapstick. Daí que os gigantescos cenários do programa em Yokohama funcionassem como uma máquina de Goldberg colossal, que coloca concorrentes e actores em labirintos de barro, miniaturas e plataformas impossíveis.
Conceptualizado durante os anos do primeiro boom dos videojogos de 8 bits, Nunca Digas Banzai transferiu o gameplay de alguns videojogos para o ecrã televisivo, com provas que homenageavam – ou directamente plagiavam – níveis de jogos de plataformas (desenvolvidos pela Sega ou Nintendo nessa mesma época). Produz-se, assim, uma interessantíssima amálgama estética, porque o programa não só prova a existência de gags nesses videojogos como afiança a conexão de todos eles a um referente originário do slapstick. É certo que os filmes de Keaton e os melhores jogos de Mario [Super Mario Bros 3 (1993), Super Mario World (1990), Super Mario 64 e Super Mario Galaxy (2007)] são inigualáveis, não têm comparação, e que, para efeitos “artísticos”, são mais genuínos que as montagens de Nunca Digas Banzai. Mas o show fornece um elemento fundamental que nem os filmes nem os videojogos exploram: a comicidade espontânea, errónea e deficitária, o disparate – do concorrente – como grande paradigma televisivo. Neste sentido, Nunca Digas Banzai é uma espécie de elo perdido entre a passividade do público cinematográfico e a performance activa do utilizador de videojogos.
“Em Kitano, o mecânico já não nos remete para a máquina – locomotora em Keaton, edifício racionalista em Tati – mas à mecanicidade dos «falsos movimentos» da montagem, que reparte indícios de uma conexão física e imediata entre as coisas. Se nas narrações de Kitano os laços causais que unem as sequências são débeis, cada uma destas por separado é, à sua vez, a encenação de um pequeno enlace, uma microcausalidade imediata e física.” [3]
Estas palavras captam muito bem a especificidade do gag em Kitano, sempre próximo do lúdico, sempre pronto a estalar. O exemplo mais belo são quiçá os jogos dos yakuza na praia de Sonatine (Sonatina, 1993); mas embora não estejam filmadas com a mesma genialidade, as partidas e quedas de Nunca Digas Banzai trabalham assim mesmo sobre essa microcausalidade, que convida a personagem a entrar no jogo. O concurso, sobre o qual Keaton e Mario partilham a mesma vitalidade da cultura popular, é como uma cadeia de ADN que explica a evolução da espécie. Se admitirmos que os gags de Keaton nunca foram superados na história do cinema, quanto à sua mecânica, geometria e operatividade, o programa de Kitano é a constatação de essa impossibilidade de superá-los. Como não se pode ressuscitar Buster, por que não deixar que os espectadores “o imitem” num concurso, por que não fazê-lo bestial e radicalmente?
“O prazer das comédias de Keaton provém da sua capacidade para revelar o mundo, não só como um lugar social ou um código situacional, mas como um jogo, físico, onde a imediata relação do corpo com a topografia que o rodeia supõe a principal relação entre eu e mundo. Gostamos de reviver a diversão de certos jogos da infância baseados no regateio, nas escondidas e na corrida, cujo âmbito de possibilidades físicas e atléticas do corpo – tamanho e forma, destreza e agilidade – se reinventam e se põem em jogo ao nos relacionarmos com o meio que nos rodeia.” [4]
Isto é o que partilham os ecrãs de The High Sign (1921), Mario Bros (1983) e Nunca Digas Banzai, uma forma de relacionar personagem e espaço através do gag. Se nos filmes de Keaton essa relação é resolvida quase sempre com êxito (um êxito sublime), nas provas televisivas implica chapadas e tortas de creme, imagens de uma estética do erro que aprecem também nos videojogos de plataformas. De modo que tudo depende se um ou outro concorrente – um ou outro jogador – é capaz de “roçar” a excelência motriz de Buster. Até o próprio Kitano deixou claro ao explicar o que significava para ele rodar Nunca Digas Banzai: “Ir aos estúdios de televisão é para mim como ir ao parque brincar com as crianças” [5].
O gag passa de Buster (cinema) ao concorrente que fracassa tentando ser Buster (televisão), e depois ao jogador que é bem sucedido em sê-lo – por fim – graças aos comandos de uma consola (videojogo). Há, nos três casos, um contágio entre a base operacional do gag – as máquinas de Goldberg – e a performance da personagem. É o que Noël Carroll chama a inteligência corporal, completando uma ideia de Merleau-Ponty: “a interacção entre peso e equilíbrio, impulso e detenção, acção, reacção, tracção e tensão através da importância de relações espaciais como esquerda/direita, cima/baixo, para a frente/para trás” [6]. O que manda é a visualidade, acima das tramas e argumentos, de tópicos e situações: uma forma de entender a imagem operativamente. Por isso, porque o gag se alimenta de uma inteligência poderosamente física, não é raro que Buster [The Playhouse (1921)], Mario [Mario Party 8 (2008)] e um concorrente aleatório (Nunca Digas Banzai) acabam a fazer de peças em imensas gavetas, seja um puzzle tipo Tetris, um jogo de mesa ou uma gigantesca máquina de Pachinko [7].
Um dos rasgos mais distintivos de Keaton é o uso de largos travellings de acompanhamento que exaltam a sua deslumbrante mobilidade. Ainda que as perseguições fizessem parte do slapstick desde as suas origens, foi sobretudo Buster quem as sublimou em scrolls laterais como os de College (Colegial, 1927): “quando fugia de um polícia, as suas transições em passo acelerado a trote ligeiro, e de médio galope em sprint desatado – sempre flutuando, e sobre esse frenesim, o seu rosto permanece impassível -, eram tão distintivas e sobriamente ordenadas como engatar uma mudança automática” [8]. Não é exactamente como engatar uma mudança o que tem em mãos um jogador de Super Mario Bros (1985), mas se um comando de controlo permite emular essas transições no movimento, pois o gameplay do jogo está desenhado segundo intervalos cinéticos. Exactamente o que não conseguem fazer os concorrentes de Nunca Digas Banzai em muitas das provas, incapazes de sincronizar a aceleração com os obstáculos que aparecem lateralmente. O tipo de movimento é idêntico, pelo que cada actor, concorrente ou jogador terá uma maneira distinta de jogar o gag. Ben Turpin não corria como Keaton, do mesmo modo que um concorrente desajeitado não o faz como um adestrado, nem um principiante sabe fazer correr Super Mario como um jogador experimentado.
Os verbos de movimento, que desde os tempos de Rabelais fundamentam a comédia física, são a principal ferramenta criativa de Shigeru Miyamoto na conceptualização dos jogos de Mario: “desenha os seus jogos baseando-se em verbos, isto é, em torno de acções que o jogo torna possíveis de realizar aos utilizadores. Quere que cada jogo introduza um novo tipo de missão, tornar possível ao jogador aquilo que nenhum outro jogado tornou possível antes” [9]. Uma forma de entender a imagem que gera os gags de Keaton, Mario e Nunca Digas Banzai, porque o mais importante não é quando surgirá a gargalhada, mas que verbos podem suscitá-la e que espaços podem albergar esses verbos. Há, desde logo, momentos decisivos, pontos de ataque do gag nos três casos, mas parte-se de uma concepção aberta das imagens. Um lugar onde a excepção está ao virar da esquina e que se manifesta visualmente: uma queda, uma mão quando tudo parecia perdido, uma pirueta que de repente faz saltar três níveis… Como vemos no escorrega de The Haunted House (1921), nos slides de Super Mario 64 e nas provas de deslizamento de Nunca Digas Banzai.
Lev Manovich insistiu na especialização como um dos rasgos mais distintivos dos meios interactivos, um processo que remete ao cinema mudo: “substituem o movimento psicológico da narração, típico ao romance e ao cinema, pelo movimento físico através do espaço” [10]. Esta concentração espacial dá lugar a numerosos mecanismos que, como em Cops (1922), New Super Mario Bros (2006) e Nunca Digas Banzai, ligam a personagem ao espaço circundante: pêndulos, rotores, polias, trapézios, alavancas, zíperes… Saltar ou deslizar passam a ser acções bastante mais importantes que falar ou relacionar-se com outros seres vivos; daí que o gesto de agarrar-se a um objecto voador – uma corda, um serrote, uma seta – se repita nos ecrãs de Steamboat Bill, Jr. (O Marinheiro de Água Doce, 1928), Super Mario World e Nunca Digas Banzai. O gag alimenta-se de figuras geométricas e de engenhos mecânicos que põem à prova a inteligência corporal da personagem, seja actor, concorrente ou jogador: “a vivência do influxo, da causação, de ser guiado” [11].
Manter-se em pé pode converter-se num problema sem solução, porque em vez de avançar com os pés no solo, a personagem dá voltas sem controlo sobre um rolete: acontece a Buster sobre as rodas de pás de um navio a vapor em Day Dreams (1922), a Mario sobre uma roda gravitacional em Super Mario Galaxy e os pobres concorrentes de Nunca Digas Banzai quando tentam caminhar sobre um cilindro. Todos estes gags alimentam-se do que Roger Caillois chama ilinx: “buscar a vertigem, com o intuito de destruir por um instante a estabilidade da percepção e de infligir à consciência lúdica uma espécie de pânico voluptuoso” [12]. O ilinx ou vertigem é uma das quatro espécies fundamentais do jogo, junto com competição (agon), o azar (alea) e o simulacro (mimicry). As acções que cita Caillois ao defini-lo são idênticas às que definem uma bobine de slapstick ou um jogo de plataformas: projecções no espaço, piruetas, quedas, rotações rápidas, deslizamentos, velocidades, acelerações, movimentos rectilíneos e giratórios [13]. O ilinx confirma assim a potência de certos gags feitos de trajectórias, volumes e superfícies que resistem como um dos meios de expressão mais poderosamente visuais da cultura contemporânea.
Há que experimentar com a imagem para saber o que temos pela frente, para entender como funciona; essa é a lição dos gameplay gags. Porque o ecrã pode tremer sem aviso prévio, como ocorre em The Navigator (O Navegante, 1924) ao mover o leme, e em Wario Land Shake (2008) e Nunca Digas Banzai ao activar um botão que faz vibrar o quadro e as personagens com ele. O impulso material converte-se no principal canal humorístico das imagens, à maneira de Bachelard:
“Existem imagens directas da matéria. A vista nomeia-as, mas as mãos conhecem-na. Uma alegria dinâmica maneja-as, amassa-as, aligeira-as […] a imaginação trabalha em geral tendendo para onde está a alegria – ou mesmo uma alegria – no sentido das formas e das cores, no sentido das variedades e das metamorfoses, no sentido de uma perspectiva da superfície.” [14]
Este ir para onde está a alegria é, quiçá, o que melhor define o tipo de entrega incondicional de Keaton saltando, do concorrente caindo, do jogador aprendendo a saltar.
Buster cresceu fazendo de criança-projectil e criança-trapo no número de vaudeville de seus pais, conhecia na perfeição todas as variantes do verbo “lançar”: lançar algo, que te lancem algo, ser lançado como algo (pois era assim que o utilizavam os seus pais). Pode tratar-se de uma galeria de tiro como aquela de Chaplin e Eisenstein, como se passa em The High Sign, em Wii Play (2006) e nas de Nunca Digas Banzai; ou pode usar-se a clássica tarte lançada à cara, como o faz Keaton a Arbuckle em The Butcher Boy (1917), as personagens da Nintendo em Super Smash Bros (2008) e Kitano e seus seguidores na prova da “tarte em comprimento”. A graça está em que cada actor, cada concorrente e cada jogador tem formas distintas de lançar, não só entre quem sabe jogar o gag e quem não, como também entre jogadores feitos. Ainda que muitas vezes se esqueça, a interpretação (no sentido de performance) não é património exclusivo do teatro, do cinema e da televisão, no videojogo cada jogador desenvolve um estilo próprio, como os comediantes do burlesco, e esse estilo é quase tão importante quanto o êxito da partida. Segundo quem está ao comando, um ecrã pode completar-se torpemente ou com a suavidade patinadora de Chaplin. E, sobretudo, há formas de jogar mais cómicas que outras, mais divertidas e mais brutas que outras.
É revelador que imagens tão distanciadas no tempo e pertencentes a meios tão diferentes alberguem os mesmo gags. Uma das cenas mais memoráveis do cinema mudo é o final de Seven Chances (As Sete Ocasiões de Pamplinas, 1925), em que Keaton provoca um desprendimento maciço de até 1 500 de rochas e pedras que perseguem a personagem até abaixo [15]. O gag repete-se literalmente – à letra – numa das mais populares provas de Nunca Digas Banzai, onde os concorrentes devem atravessar uma colina malfadada, de onde cai um montão de rochas de papier-mâché; e reaparece também numa infinidade de jogos de plataformas como Super Mario Galaxy. A personagem passa a actuar como um especialista num filme de acção, enfrentando o espaço circundante com a sua inteligência corporal, exactamente o que liga as piruetas de Buster às de Jackie Chan: “Como Keaton, é capaz de converter qualquer lugar numa corrida de obstáculos” [16]. O parkour, uma prática urbana que consiste em deslocar-se por um qualquer entorno da forma mais rápida e fluida (escadas, fachadas, cornijas), condensa esse bodily coping típico do slapstick, que milhares de jovens emulam actualmente em vídeos do YouTube e jogos de plataformas.
O gameplay deste tipo de gags gera posturas idênticas: a flexão do corpo de Buster quando sai disparado de um tubo em The Scarecow (1920) é igual ao de um concorrente que atravessa o tubo Pipe Down de Nunca Digas Banzai, enquanto sair e entrar em tubos é uma das acções prototípicas de qualquer jogo de Mario. Mediam sete décadas entre estes gags e, apesar disso, a consciência postural permanece. O mesmo pode dizer-se de outro tipo de gag que aproveita carros, motas e outros veículos motorizados para reinventar a mobilidade da personagem, desde a moto que anda sozinha em Sherlock Jr. até aos buggies de Super Mario Kart (1992) e as ridículas motos em miniatura de Nunca Digas Banzai. Um tipo de perseguição que, nos três casos, implica uma estratégia de mise en scène equivalente: o acompanhamento de um actor, o concorrente ou o jogador sobre um travelling em movimento, com a câmara “enganchada” ao veículo para captar melhor os choques, desastres e outras desventuras móveis.
O último de estes gameplay gags é uma das rotinas preferidas de Keaton: a queda de uma porta/janela que atravessa o corpo da personagem. Aparece em One Week (Uma Semana, 1920) e volta a aparecer em Steamboat Bill, Jr., demonstrando que o vazio é susceptível de ser jogado como outro espaço: “Arbuckle fugia, tinha medo dos espaços vazios. Por isso Keaton teve que esperar pelas suas próprias curtas-metragens para fazer comédia nesses mesmos espaços” [17]. Atravessar uma porta converte-se assim num pôr em crise integral do entorno, como acontece em Super Paper Mario (2007) quando o jogador salta de duas dimensões a duas dimensões e meia accionando um botão: uma mudança de perspectiva que permite atravessar os ecrãs em profundidade, não só lateralmente. Este tipo de gag remete para a citação de Foster Wallace sobre as portas de Kafka [que abre o capítulo 4 (não reproduzido neste espaço)], e até o próprio Rohmer ligava essa multidimensionalidade ao cinema de Keaton: “uma espécie de discussão do espaço, de busca sobre o ‘porquê’ das três dimensões” [18]. “Porquê?” é justamente o que perguntam os concorrentes de Nunca Digas Banzai quando num arrebate correm contra o labirinto de portas, sem saber quais podem atravessar e quais não podem. Assim, aleatoriamente, o espaço e o jogo convertem-se num problema, num elogio ao erro.
Nesse sentido, tanto os gameplay gags de Keaton como os de Kitano e Mario estão abertos a uma reapropriação à maneira vanguardista. Aqui encaixa-se o trabalho de Keaton em Film (Samuel Becket’s Film, 1965), onde a sua inteligência corporal dá lugar à ruptura e ao absurdo, pela mão de Samuel Beckett e Alan Schneider; ou alguns dos últimos filmes de Kitano que, como Takeshis’ (Takeshis, 2005), provocam erros e pontos cegos na sua labiríntica comicidade. O mesmo acontece com os videojogos da Nintendo, que, ainda que na sua versão oficial distem muito de ser pesadelos rupturistas, são reinterpretados a posteriori por hackers e artistas de vanguarda, que corrompem os ecrãs do jogo original com glitches, mods e outros abortos digitais. Esses colectivos de hackers pervertem o código dos jogos em busca de armadilhas, lacetes e abismos, transformando as aventuras do canalizador em piscares de olho à modernidade. Se Buñuel, René Clair e companhia encontraram nos gags do slapstick um valor disruptivo, o mesmo fazem agora esses activistas new media ao aproveitarem erros de programação e bugs. Um trabalho de reapropriação impagável, porque transfere as imagens de Super Mario para contextos de radicalização e posta em crise, gags que nos fazem rir e nos inquietam, como faz Cory Arcangel na sua imprescindível peça Super Mario Movie (2005) [19]. Uma estética do erro que convida a personagem a perder-se entre labirintos jogáveis, misteriosamente.
“A forma é para nós um traçado de um movimento” [20]. Sobre esta bela frase de Bergson podem-se imaginar infinitos traçados para o gag, em ecrãs de telemóvel ou projectores HD, entre poltronas e comandos de controlo, para os lados de aquele ecrã que Buster atravessa em Sherlock Jr.. Nesse sentido, este último capítulo quer ser uma porta aberta, do presente ao futuro do gag. Ninguém sabe como evoluirá a linguagem cinematográfica neste tempos mutantes, quando custa cada vez mais ver gags projectados em 35 mm – velhos filmes cómicos, diria Mekas -, e querem vender-se uns óculos (que nem sequer são 3D) cada vez que se vai ao cinema. Quando parece que o gag visual terá conquistado um novo território nos canais do YouTube, recriando o espírito breve e fragmentário do primeiro cinema, em sequências roubadas que duram poucos minutos, e ecrãs cada vez mais pequenos.
Seria fantástico que nesse futuro incerto, saturado de mudanças, pudéssemos olhar para trás e maravilhar-nos ante uma das bobines de Keaton, fazê-lo nosso. Que nos riamos tão somente pela sua originalidade, não porque um manual de história do cinema diz que é preciso rir, apenas porque os seus movimentos nos recordam daquele concorrente que – por uma vez – se esquivou de dez armadilhas em Nunca Digas Banzai, porque o seus saltos nos devolvem às noites que passámos a jogar Super Mario, perseguindo e sendo perseguidos. É isso que Chuck Jones chamou prazer retroactivo e que, se abandonarmos etiquetas e preconceitos, nos leva das trajectórias de Lubitsch e Tati até aos tutoriais de uma aventura gráfica, das miniaturas de Bachelard ao interior de uma máquina de Goldberg. Deter-se um movimento e imaginar quantos passos há de aqui até à esquina em frente, calcular a distância, flexionar e saltar… porque, se cruzamos a perna, é quase certo que a escotilha em baixo se abre, e quem sabe o que há aí.
Disse Buster a Beckett: uma coisa tão fragil como um gag, tão livre, merece ser vista e jogada onde quer que você esteja, entre o riso e o vazio (que nos invade depois).
Manuel Garin
[1] Roger Caillois, Los juegos y los hombres. La máscara e el vértigo, México, Fondo de Cultura Económica, 1986, p. 12.
[2] Para uma ampliação desta ideia: Manuel Garin, «Super Mario, de New Silent Clown: Video Game Parodies as Transformative Comedy Tools», in International Journal of Cultural Studies, 2014.
[3] O leitor pode encontrar uma análise em profundidade de essa sequência de Sherlock Jr. segundo o ponto de vista do gameplay no site www.gameplaygag.com. Nessa página pode consultar-se vídeos comparativos entre Keaton e Super Mario.
[4] Luis Miranda, Takeshi Kitano, Madrid, Cátedra, 2006, p. 145.
[5] Alex Clayton, The Body in Hollywood Slapstick, Jefferson, McFarland, 2001, p. 61
[6] Luis Miranda, op. cit., p. 411.
[7] Noël Carroll, Comedy Incarnate, Malden, Blackwell Publishing, 2007, pp. 9 e 127.
[8] Comprovámos, graças a uma estância de investigação na EA Game Innovation Lab da University of Southern California, que essas influências entre cinema mudo e videojogos não são simplesmente inconscientes, porquanto jogos como The Misadventures of P.B. Winterbottom (2010) desenham hoje em dia o seu gameplay baseando-se nos filmes de Chaplin, Lloyd ou Keaton, intencionalmente.
[9] James Agee, «Comedy’s Greatest Era», in Film Writing and Selected Journalism, Nova Iorque, The Library of America, 2005.
[10] Henry Jenkins, «Games, the New Lively Art», in Handbook of Computer Game Sudies, MIT Press, pp. 175-193.
[11] Manovich cita sobretudo Dziga Vertov. Lev Manocih, The Language of New Media, MIT Press, 2001, p. 78.
[12] Ludwig Wittgenstein, Investigaciones filosóficas, México, UNAM-Crítica, 2004, p. 175.
[13] Roger Caillois op. cit., p. 58.
[14] Ibidem, p. 60.
[15] Gaston Bachelard, El agua y los sueños, México, Fondo de Cultura Económica, 1978, p. 8. Para uma releitura dos jogos de Mario em linha com as investigações de Bachelard.: M. Garin, «Mitojuegos: Sobre el héroe y el mito en el imaginario Nitendo», núm. 7, Universidad de Sevilla, 2010.
[16] Na sua primeira versão do gag não incluía tantas pedras, mas depois de uma preview Keaton deu-se conta de que o público pedia mais, e aumentou exponencialmente o número de rochas rolantes.
[17] Walter Kerr, The Silent Clowns, Nova Iorque, Da Capo, 1990.
[18] Éric Rohmer, «Una geometría de la comicidad», in J.L. Guarner e J. Oliver, Buster contra la infección sentimental, Barcelona, Anagrama, 1972, p. 31.
[19] Para uma contextualização destas intervenções vanguardistas: Manuel Garin, «Super Mario reimaginado, Machinima, glitch y el arte de la apropriación fan en el video-juego, in C. Scolari e M. Carlón (eds), Collabor_Arte Medios y artes e na era de la producción colaborativa, Buenos Aires, La Crujía, 2012.
[20] Henri Bergson, La evolución creadora, Buenos Aires, Cactus, 2007, p. 28. Para uma mostra em vídeo, veja-se a montagem comparada Keaton Mario Scroll (2008): http://gameplaygag.com/videos/ .