I. Será o clown um niilista? Um niilista em quem do espaço restou apenas o Fantasma, a performance e o perfume do resto decadente do mundo? Será o clown um melancólico, a quem cabe reconstituir o mundo de seu spleen nesta casa que é o seu próprio corpo, constatação de sua extrema solidão no palco, confirmação de sua capacidade de reconstrução do corriqueiro e da História, Sísifo que, encetado em ainda mais denso castigo, tem de inventar a pedra?
A tristeza do clown parece advir daí. Ter que recriar tudo a partir apenas do Nada, ou do que os seus braços podem reconstituir daquilo que um dia fora a Ideia, traçando-a, desenhando-a. A Ideia agora num mundo de vento, que se foi, e que cabe, resumida, simplificada, nesses braços; a solidão como primeiro e último lugar da Ideia, de onde ela brota e aonde ela volta para poder morrer. Perfazer a história do drama, mas como memória, e a da Presença, mas como rastro. O clown é um niilista da triste esperança, ou, como todos vocês sabem há tempos sem muita discussão, um ser felliniano, a flanar por uma alegria algo adoecida, algo infectada pela dormência.

II. Por outro lado, o que talvez não soubéssemos sobre José Mojica Marins foi somente o tempo quem tratou de nos mostrar: sua tragédia, ou melhor, a tragédia de seu maior personagem, é a de uma crise da mise en scène, justamente esta que o clown deve dominar para que a memória permaneça viva, impressa no gesto, na expressão, nas tintas do rosto; ou seja, é preciso, para este ser, esta aparição, saber cartografar do zero o seu “número” (de dança, de drama, de crime); fazer e manter presente, a partir da única força possível, o seu universo.
O começo de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), filme que terá de grafar novamente crueldades ainda mais elaboradas, “números” ainda mais tétricos: Zé do Caixão, este moralista, este romântico eternamente equivocado na busca por uma pureza louca e delirante, de volta à pequena cidade que o odeia, enquadrado a sós no plano, nos recita o desprezo que nutre pelos seus convivas, todos “inferiores, supersticiosos”. Está tudo lá, porque a composição é antes coisa de vestuário e de maquiagem: o chapéu e a capa pretos, a barba, as sobrancelhas também negríssimas, as lendárias unhas sem fim… É seu equipamento clownesco, claro; parte visível, muito importante para o mito, mas não a principal. Ora, já dissemos: Josefel Zanatas – como diria Paulo Martins, em um outro filme [Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha) – “é um trágico”.
III. Trágico, sim, e duas vezes trágico: a) em meio à solidão do clown que o habita na consistência cristalina, perfeitamente ditada e descrita, com que segue e explana suas ideias; e b) nessa outra maldição, desdobramento lógico da primeira, que adiciona a Zé do Caixão uma força a mais, uma habilidade a mais, que é a de ser um filósofo – um filósofo-clown, que se norteia apenas pela utopia de gerar a criança perfeita, no ventre da mulher ideal, e que encontrará o mesmo fim, em Esta Noite…, que dá conta aquela famosa pichação (ou anedota?) quando da morte de Nietszsche (“Nietzsche está morto. Assinado: Deus”). A proximidade com a arte do clown é expressa, em Mojica, pelo elemento que tantas vezes falta a ela: a palavra, a conquista da fala. Daí sua “perversão”, daí sua “crise de mise en scène”. É ela quem inscreve a solidão e a loucura de Zé do Caixão (mas não só: lembrem-se de Finis Hominis, este outro clown mojicaniano, diria até quintessencial, no filme homônimo de 1971), é ela quem o afasta do mundo, quem o mantém à parte, quem o colocará na condição precisa do clown e até um pouco além desta, esta solidão vertiginosa, elaborada por gesto e palavra, que só é superada pelas ideias que dela nascem e que a partir dela são transmitidas.
Se Zé do Caixão é esta figura trágica não é por outro motivo senão o de que o que reside de secreto nos clowns (a melancolia e a lassidão: o que as causou? de onde elas vieram?), seu Mistério, sua Razão inconfessável, nele está explícito e delimitado, aberta e justamente explicado: as ideias estão em chamas, o corpo em alerta e em riste (aqueles olhos injetados…)., a Origem de suas ideias plenamente filmada. Há essa dor pronunciada, essa angústia que Zé carrega consigo: sempre perguntas inquietantes e difíceis por fazer – e elas serão sempre feitas às vítimas e a nós, espectadores embasbacados com a invenção deste cinema, que é, logicamente, a invenção do mais triste dos clowns, esse resistente que sobreviveu à censura, à ditadura e às brutalidades e que retornará, quatro décadas depois, em Encarnação do Demônio (2008) para encontrar o seu destino, ainda a falar.

IV. Sim, por definição e por natureza, o clown é um sobrevivente das mutilações, das ausências, dos escombros do mundo de onde nascem suas recordações, e por fim da total falta de recursos, que lhe cortou a voz. Ser essencial no vazio, e que desenha aí um punhado de lembranças. “Sobrevivente” é também a palavra com a qual desde sempre designamos Mojica e sua criação, desde quando eles nos ousaram perguntar, em sincronia e olhos nos olhos, o que há para além da Morte. Nós, brasileiros, sabemos bem dessa imagem, dessas perguntas insondáveis que tocam o vazio e o infinito. Bem demais até, muitas vezes quase ao ponto da diluição e do abstrato. É Mojica, este bravo, que – nos anos 90, sem filmar desde finais dos anos 80 [Demônios e Maravilhas (1987)], gravando um vídeo em meados do final dos 90’s [A Guilhotina do Terror (1997)] – vai parar na TV Bandeirantes, apresentando, em plena tarde, um programa onde eram exibidos filmes “trash”, vestido como Zé do Caixão, em versão tida costumeiramente como mais “caricata”, rogando pragas, sondando pesadelos alheios, marcando irreversivelmente outra geração – talvez esta que o encarna como um palhaço falido, nada triste, mas ridículo, próximo mesmo de um Toninho do Diabo. O drama do clown: chegar perto demais do cérebro de sua arte, de sua auto-consciência nefasta, da pose pura e simplória, esta que a rigor não constrói nada (só a publicidade, e, como sabemos desde Daney, “a publicidade venceu”), separação do criador da criatura, a supremacia do primeiro sobre o segundo.
V. É neste ponto preciso que chamamos Zé do Caixão de “resistente”, como chamamos disso um Straub, um Costa, e até mesmo um Oliveira, este último um clown por excelência. Contra a diluição de sua silhueta, contra a ridicularização de sua forma, contra a venda desenfreada de seu destino, estão a permanência desse mito, o retorno fortíssimo de sua pureza brutal e cega, e até mesmo a insurgência de sua inocência quando volta ao cinema, depois de anos na TV, como se as décadas e outros filmes com o personagem não houvessem passado por sobre ele. Zé continua o mesmo, cruel, acreditando nas mesmas forças que sempre o moveram: ideais e violência. Está lá também o completo controle da mise en scène, que no clown, exemplo maior da figura do ator, é toda centralizada naquilo que pode um corpo e sua imaginação, seu sistema nervoso primordial. É que, sendo um clown triste (o mais triste de todos, pois seu segredo e seu maior desejo são sempre compartilhados com nós, os outros, deixando às claras o coração pulsante de seus mistérios: Delírio de um Anormal, (1978), inabalável em sua vontade e em sua concepção, cabendo apenas nos limites impostos pelas ideias de sua solitude, Zé retorna até nós fiel a si mesmo, sendo ainda vítima de tudo o que o alucina, da escritura que sempre o manteve vivo – essa maldição que nos clowns mais comuns é a da descrição melancólica e telúrica de eventos, e que em Josefel só pode vir como um amor selvagem pela adição da palavra, pedaço de coisa que ad aeternum reconstrói o homem, esvaziando o Tudo e preenchendo o Nada. Se Zé do Caixão é sem dúvida o mais triste dos clowns, é porque indo longe demais na ação alcançou e conheceu bem a palavra. Ou seja, ele soube conceber o seu próprio castigo.
Ranieri Brandão
Editor da revista de cinema brasileira Filmologia.