Esta crónica é especial. Em três anos de Civic TV apenas por uma vez ocupei por inteiro uma crónica com cinema português. A razão é simples: muito simplesmente, ele escasseia nos nossos televisores. E como gosto de chamar aqui descobertas ou revelações, a probabilidade de incidir mais sobre o nosso cinema tinha de ser reduzida. Trazer um filme belo e corajoso como é Gipsofila (2015) constitui, portanto, motivo de celebração para mim. Tentei estar à altura desta minha felicidade indo falar com a sua realizadora, Margarida Leitão, e tentando enquadrar a estreia directa na televisão deste filme naquilo que é a linha programática dos canais TVCine, que o acolheram no seu segundo canal. Para o efeito, tive oportunidade de trocar algumas palavras por email com o director de programação Miguel Pires Ramos. Agradeço aos dois, em especial à Margarida Leitão, o seu tempo e disponibilidade.
Temos uma história e já temos uma produção de cinema suficientemente ricas para sentirmos a ausência de obras portuguesas na programação de cinema da maior parte dos canais de televisão. Para lá da presença regular das famosas “comédias à portuguesa”, sobretudo na programação de domingo à tarde da televisão pública, o cinema português só pontualmente espreita nas várias janelas que se abrem a partir do televisor. Temos uma relação inconsistente com a nossa casa e vizinhança culturais, acabamos por distrair a mente com “vistas” distantes, paisagens que têm o inglês como língua oficial. É assim ou então esta é simplesmente a convicção da maior parte dos programadores, que olham com desconfiança para um cinema que se baseia na individualidade do autor, leia-se, na liberdade criativa de quem faz cinema. Se o cinema português se tem definido, essencialmente, como espaço de experimentação e risco, então a televisão tem de sair da sua concha ideológica para lhe fazer justiça. Esse fechamento ideológico resume-se amiúde pela frase estupidificante mais vezes repetida por quem trabalha no mercado e tem os filmes – e o cinema nos filmes – como mero produto: “damos ao público aquilo que ele quer”.
Até hoje esta é melhor resposta ao sacrossanto sofisma do mercado cinematográfico e televisivo: “Com o progresso do cinema (…) uma grande parte da antiga espontaneidade desapareceu. (…) Daí vêm as intermináveis discussões sobre aquilo que «ele» pretende – sendo «ele» naturalmente o público. Mas isso engendrou uma situação que, estou disso firmemente convencido, estiriliza a imaginação e barra o caminho à originalidade”. Mais à frente reforça o interlocutor a ideia: “O público pode generalizar declarando que não gosta duma certa espécie de filmes – Caligari, se se quiser -, mas isso não prova que o público tenha em mente o modelo bem definido daquilo que deseja. (…) Com toda a franqueza, não acredito que o público saiba aquilo que quer: é a conclusão que colho da minha própria carreira”. O texto, intitulado «O Público Sabe o Que Quer?», tem exactamente 91 anos e quem fala é Charles Chaplin. Ninguém foi mais popular – e amado por esse “grande público” – como o foi Chaplin e a sua criação, “The Tramp”. Todas as suas lições – e os seus apelos humanistas – são intemporais e devem ainda hoje ser cuidadosamente seguidas. É que o cinema não é ração, mas alimento. Ora, ninguém ousará dizer que se o espírito tivesse palato gostaria de comer sempre “mais do mesmo”.
Estilhaçando as verdades insolentemente fixadas sobre “o que o público quer”, a televisão deve olhar para o que está mais próximo, mesmo que isso a faça (ar)riscar mais do que inicialmente desejaria. Como tal, também a televisão não deve seguir “as boas práticas” generalizadas no mercado de distribuição comercial, que se rege tanto por essa “política do gado” como a própria televisão. Se as salas fecham as portas a esta “diferença”, a televisão pode bem “ultrapassá-las” e abrir a(s) sua(s) janela(s) a novas aragens. É o que acontece hoje mais sistematicamente não na televisão pública – como devia -, mas num canal comercial como é a TVCine, que, para além de homenagens e retrospectivas a alguns dos nossos grandes realizadores (por exemplo, Fernando Lopes, João César Monteiro e, posso adiantar, em Dezembro prepara um ciclo especial dedicado a Manoel de Oliveira) tem aberto espaços devotados aos novos cineastas, alguns deles cujas obras se circunscrevem ao circuito dos festivais.
Após dar-me conta desta linha de acção que considero exemplar, entrei em contacto com o director de programas dos canais TVCine, Miguel Pires Ramos, para perceber em que medida essa política de programação privilegia ou não o cinema português. Registei, acima de tudo, esta parte da sua resposta: “(…) temos apostas em filmes que ainda não tiveram estreia comercial, filmes como O Primeiro Verão (2014) de Adriano Mendes por exemplo, que estreou connosco antes de sequer saber se iria existir ou não essa passagem pelos cinemas”. Este é um exemplo acabado do que já referi: antecipar o cristalizado, e tantas vezes trôpego, mercado de distribuição e lançar um filme que se arriscava a ficar esquecido ou marginalizado. Um filme que conseguiu um resultado muito apreciável nas salas – com meia dúzia de semanas em cartaz – foi mostrado antes a um público mais alargado através da televisão. A TVCine não esperou pelo atraso de vida que é, hoje, a distribuição comercial em sala e soube cavalgar a onda formada no IndieLisboa 2014, onde o filme ganhou o Prémio de Melhor Longa-Metragem Portuguesa. A sua passagem no pequeno ecrã serviu, depois, de anúncio para o subsequente sucesso popular e mediático gerado nas salas – a actividade da sua página de Facebook atesta esse sucesso. Provavelmente, acontece aqui aquilo que vai sendo o segredo dos bons “negócios” nos dias que correm: o marketing passa-a-palavra.
Dentro desta estratégia dos canais TVCine está aquele que é um dos mais bem guardados segredos do cinema português recente: Gipsofila, de Margarida Leitão. O filme foi estreado directamente no TVCine 2, após uma passagem relativamente discreta pelo IndieLisboa. Este pequeno “laboratório do eu”, onde a realizadora procura trabalhar as questões da vida, da morte e do cinema partindo da relação com a sua avó, encontrou no pequeno ecrã um espaço ideal para chegar a um público mais alargado. São raros objectos como este no nosso cinema, em que o realizador, sem se esconder por trás de dispositivos cénicos ou dramatúrgicos, vira a câmara para si mesmo e faz desse gesto de nudez uma possibilidade de aceder a um espaço universal do íntimo. No caso, esse espaço é ocupado pela relação entre neta e avó, não especificamente “aquela neta” e “aquela avó”, mas uma “ideia de neta e avó”.
Gipsofila acaba por ser mais sobre uma temporalidade transformada do que sobre a relação de Margarida Leitão com a sua avó Lourdes Albuquerque.
Foi muito bom conversar com a realizadora e poder confirmar algumas destas ideias que ficaram da minha experiência do filme. Disse-me: “No filme há várias temáticas que surgem naturalmente da nossa vivência: a solidão, a morte… Mas eu também as ligo muito ao próprio cinema. (…) Queria que fosse um processo solitário. Queria estar sozinha a fazer o filme, não queria intermediários ou pessoas entre mim e a câmara a traduzirem as minhas palavras. Queria eu própria operar, experimentar”. Trazia nas minhas notas a referência a um filme que me ocorreu – influência que foi corroborada pela realizadora – enquanto assistia a Gipsofila: Là-bas (2006), da imortal Chantal Akerman. É o mesmo gesto – ainda que o nível da violência seja outro – de clausura e ablação de meios, de confronto e exposição do “eu” ou de “eus”. Durante três anos, Margarida Leitão também não “quis sair” do apartamento da avó, tal como a realizador belga, e judia, não quis pisar o chão das ruas de Israel naquela viagem que transformou num “documentário de cativeiro”. Nem de propósito, a última obra de Akerman, intitulada No Home Movie (2015), é sobre a relação com a sua mãe.
Mas voltemos a Gipsofila. Se a neta (que me apetece chamar tanto “a pessoa” Margarida Leitão como “a personagem” Margarida Leitão) vive, numa angústia secreta, os problemas da sua idade de “jovem adulta” ou, usando uma expressão que um amigo usava há pouco tempo para as pessoas da minha idade, de “jovem velha”, a avó, sentindo a proximidade da morte, recapitula uma vida feita de pequenos nadas. São duas experiências do tempo que se complementam. Lembrei-me de dois aforismos de Paul Valéry, nos seus Cadernos: “O passado está entre o presente e o futuro – é a primeira consequência – e o futuro, a segunda”, donde “Perder a vida [é] perder o futuro./- Não és o futuro de todas as recordações que estão em ti? O futuro de um passado?”. A avó ensina a neta a não ter pressa de ter passado e de ter futuro – de ter o “futuro de um passado” -, isto é, oferece a esta o segredo que a idade, na sua sabedoria própria, lhe revelou, a de que a felicidade se surpreende nos pequenos nadas do momento presente.
É o “ir vivendo” a grande lição que uma avó pode dar a uma neta ou a um neto. O filme acaba por ser mais sobre esta temporalidade transformada, pelo instante tocado pela vida e pela morte (pelo amor), do que sobre a relação de Margarida Leitão com a sua avó Lourdes Albuquerque. “Cada pessoa gosta de cenas diferentes por razões diferentes. Isso é importante, porque eu não queria fechar o filme, com uma voz-off. Queria que estivesse lá a parte do vivido e não algo que tornasse a leitura do espectador fechada e única. Queria mesmo que fosse uma experiência para eles próprios e eles pudessem caminhar pelo filme e habitar à sua maneira”. Habitar uma relação resulta, neste filme, como habitar uma maneira de se viver o tempo. Através do íntimo, redescobre-se o poder que tem o poderosamente ontológico “isto-é” do cinema: “Eu queria essa conjugação no presente. Viver com esta pessoa estes momentos”. Não há, portanto, aqui, qualquer forma de exibicionismo narcisista ou exploração do íntimo – e nisso discordo do meu colega walshiano João Lameira na crítica que fez ao filme na sua cobertura ao IndieLisboa.
O “eu” aqui é, de facto, como um laboratório ou um oficina – não devia ter ficado surpreendido ao saber que este filme integra a tese de mestrado da realizadora no Conservatório de Cinema -, que aponta para a tentativa de cristalizar nas imagens uma experiência (uma sabedoria inerente à vivência) do tempo. Está, por exemplo, nos antípodas de filmes recentes, que vivem de uma exaltação “patética” das potencialidades do home movie. Penso aqui, por exemplo, no filme de Sarah Polley, The Stories We Tell (Histórias Que Contamos, 2012), ou mesmo no comovente, e aqui analisado, filme de Petra Costa, Elena (2012). Nestes filmes, as suas realizadoras esventram o íntimo à procura de um efeito. No filme de Leitão, não se procura nada “por dentro de”, mas na superfície do que se mostra – e talvez, por isso, o seu fascínio por espelhos e janelas, onde se inclui obviamente o ecrã da televisão (que num dos planos vemos reflectido na janela), uma espécie de terceiro eixo da relação entre neta e avó. Temos uma cena – apetece-me chamar-lhe cena, de facto, tal é a nudez do acto de inscrição de uma mise en scène na vida – em que neta e avó dormem uma sesta ao fim da tarde, iluminadas apenas pelo brilho colorido da televisão. A avó acorda e pergunta à neta qual o interesse de filmar aquilo. Ela responde-lhe docemente: “Agora dormimos um bocadinho, só. Vamos ficar no filme só a dormir. É um filme sobre duas pessoas a dormir. Já fizeram isso. Não era original”. Essa cena celebra a singularidade desse “aqui e agora” que aquelas duas pessoas – pessoas ou personagens que encarnam as ideias de neta e avó – põem em representação. Isto por muito que um Andy Warhol tenha inventado o dispositivo, e este tenha sido copiado mil vezes, de há 51 anos para cá.
Para Margarida Leitão, a passagem do filme na televisão revelou-se uma oportunidade valiosa para dar uma nova vida ao seu filme, após a presença no IndieLisboa, até porque tenciona ainda mostrá-lo em sala por todo o país – ambição mais do que legítima, até se tivermos em conta o referido caso de O Primeiro Verão. Conta como a passagem no TVCine levou a que tivesse recebido mais – e diferentes – reacções ao filme. O meu caso é paradigmático disto: descobri Gipsofila fora do contexto, por vezes intelectualmente poluído, de um festival, movido apenas pela curiosidade de saber até onde iam aquelas “visitas”. Talvez até tivesse calhado bem que um filme de interiores, que tem a televisão como uma espécie de terceira personagem, se tenha estreado no TVCine 2: “Para mim, é muito interessante esta oportunidade. Acho que deveria haver mais destes espaços na televisão, para objectos que não são propriamente catalogáveis”. Acrescenta logo a seguir: “Eu tenho muita nostalgia da televisão da minha infância, em que passavam clássicos. Na altura, era a minha cinemateca. Havia uma muito boa programação de cinema. Hoje em dia, há cada vez menos espaço”. Não pode haver melhor emblema desta mudança de atitude das nossas televisões que Gipsofila, filme corajoso que procura revelar um universal “tempo do íntimo” nas barbas de uma sociedade da transparência onde o voyeurismo surge como a prática mais vulgarizada. Faltam ao cinema português, onde quer que ele esteja e se veja, mais objectos como este.