Sinto-me mal. O meu sexo acaba de ser determinado.
Maria Gabriela Llansol
Desde os primórdios do cinema, em todas as décadas encontramos exemplos de cenas, personagens e filmes verdadeiramente transgressores face aos códigos dominantes na sua época. Dando continuidade a recursos fantasiosos, transformistas e radicais da história das artes cénicas, veremos como a história do cinema é uma narrativa da sua intervenção na sociedade, com o objectivo de contornar os limites opressivos da estratificação sexual, deixando-nos a multiplicidade de um legado com os mais coloridos, lúdicos e vivos exemplos de resistência e de dissolução das fronteiras entre os géneros.

A Androginia de Hamlet
Anos antes das adaptações de Hamlet ao cinema por Orson Welles, Philip Saville, Aki Kaurismaki, Grigori Kozintzev ou Carmelo Bene (que chegaria a fazer três versões), em 1921, os dinamarqueses Svend Gade e Heinz Schall adaptaram o famoso drama de Shakespeare a uma versão produzida e protagonizada pela estrela dinamarquesa do mudo, Asta Nielsen. Conhecida na Alemanha como “Die Asta”, em 1920, a actriz fundava neste país o seu próprio estúdio e este Hamlet (1921) seria uma das suas mais surpreendentes produções, materializando uma modificação ao texto original: aqui, Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, surge como uma rapariga forçada a travestir-se para dissimular o seu sexo a vida inteira. Esta versão decalca a leitura do crítico victoriano Edward P. Vining (1), para quem Hamlet não era apenas um homem afeminado mas uma ‘‘mulher de facto, desesperadamente almejando o preenchimento de um lugar para o qual ela era, por natureza, inadequada.’’
Nesta versão, o tormento de Hamlet é o de uma princesa andrógina que, em solidão, se debate com a sua feminilidade por cumprir. As remodelações ao texto prosseguem e, se a sua relação com o melhor amigo Horatio adquire uma tensão sexual, a sua relação com Ofélia passa a ser um fingimento insuportável. Jan Kott, crítico literário polaco, reflecte acerca da densidade estrutural das personagens de Shakespeare, que instalaram ideais de feminino e de masculino (2), sendo Hamlet um ponto de partida para uma elaboração complexa acerca das questões da identidade de género. O texto presta-se a interpretações, ao longo do tempo disputadas entre vozes tão influentes como Goethe, Coleridge ou T.S. Eliot. No seu ensaio crítico de 1919, ‘‘Hamlet e os seus problemas’’, T.S. Eliot explica o comportamento de Hamlet colocando a tónica na replicada expressão da sua opinião face ao comportamento feminino, tanto dedicada à censura da própria mãe, de ‘‘raça pecaminosa’’ (3), como a palpites acerca daquilo que deveria ser o futuro de Ofélia: o convento. Mas a ambígua pele de Hamlet já havia sido vestida por mulheres previamente, no palco e no ecrã. Sarah Bernhardt tinha interpretado Hamlet, tanto em teatro como em cinema. Charlotte Clarke, Maxine Peake, Frances de la Tour, Ruth Mitchell ou Abke Haring são apenas alguns exemplos de outras actrizes que deram corpo à complexidade da personagem entre o século XIX e o século XXI.

Teatro, uma História de Travestismo
Travesti (também en travesti ou travesty) significa disfarçado e surge no jargão das artes cénicas em referência a uma personagem numa ópera, teatro ou ballet desempenhada por um performer do sexo oposto. Recordamos como a história do teatro está, desde o seu início, ligada ao travestismo. No drama grego, cujas origens remontam a 700 A.C., todas as personagens – inclusivé as femininas – eram interpretadas por homens com máscaras. A história das artes cénicas é também uma história da censura da participação das mulheres. Como denuncia Dympna Callaghan (4), ‘‘uma proibição sistemática da mimesis feminina’’ atravessa a história do teatro. Se ainda hoje o emblemático teatro tradicional japonês, kabuki, é interpretado por homens que se dividem entre papéis femininos e masculinos, a realidade é que este género teatral deve a sua invenção a uma mulher, uma miko (sacerdotisa) chamada Izumo Taisha que, em 1603, começou a encenar um novo e expressivo estilo de dança dramática em Kyoto. O estilo conquistou popularidade instantânea mas a sensualidade sugerida pelas danças, conduzidas por actrizes também envolvidas em meretrício, levou a que a formulação para performer-de-kabuki fosse sinónima a cantora-prostituta-dançarina. Assim, em 1629, durante o período Edo, o envolvimento das mulheres no kabuki seria banido e esta prática viria a continuar com performers masculinos, mantendo a sua popularidade até hoje. E só em 1660, 44 anos após a sua morte, é que a primeira mulher surgiu numa peça de Shakespeare. Na Inglaterra, até à Renascença, os grupos de teatro profissionais incluíam apenas actores masculinos, os primeiros a vestir a pele de personagens como Julieta, Rosalind, Lady Macbeth ou Cleopátra. A proibição foi levantada com a chegada ao poder do Rei Charles II e aconteceu na encenação de Thomas Jordan de Otello com uma actriz a interpretar Desdemona. Desde a Grécia Antiga até ao kabuki contemporâneo, era comum que os actores desempenhassem vários papéis em simultâneo, femininos e masculinos, demonstrando como entre feminino e masculino há mais proximidades do que distâncias.
Feminino/Masculino e a Ambiguidade dos Géneros

Asta Nielsen adiciona um pequeno twist à sua versão de Hamlet, não interpretando um homem mas, sim, uma mulher disfarçada de homem. Nos seus cabelos curtos e trejeitos arrapazados, a enérgica actriz-empresária celebrizou-se pela sua beleza andrógina e por uma actividade fervilhante. Outro ícone precursor da emancipação feminina no ecrã prateado e fora dele, Greta Garbo, contracenara com Asta na Alemanha, na produção alemã de Joyless Street (de G.W. Pabst, 1925) e viria a dizer que, junto desta, aprendera ‘‘tudo o que sabia’’ (5).






Décadas mais tarde, Victor/Victoria (1982) representaria uma complexificação deste jogo de representação de géneros: uma mulher faz de homem a fazer de mulher. A potência cómica deste filme protagonizado por Julie Andrews reside precisamente na permanente farsa desta mulher-travesti que, num rodopio alucinante entre as suas várias peles, oscila entre ser a mulher que é, o homem que finge ser e a persona travesti desse homem em palco. Neste jogo de identidades forjadas e de role playing sexual, medita-se acerca da construção da identidade de género.
As Calças de Greta, Marlene e Katharine

Chega-nos da sueca Greta Garbo o registo da primeira mulher a usar calças no grande ecrã, no filme The Single Standart (O Direito de Amar, 1929). Nesta comédia romântica da MGM, a protagonista defende que uma mesma conduta deve pautar a acção dos dois sexos; apesar do espírito libertador dos roaring twenties, estas calças não deixariam de chocar uma sociedade onde as mulheres eram presas por usá-las (na lei da Califórnia, em 1938 ainda era inaceitável que as mulheres ‘‘se mascarassem de homens’’ pelo uso de calças, havendo casos de mulheres detidas e julgadas). (6) Símbolo de igualdade para as mulheres e de perversão para os homens, as calças tornaram-se uma ostensiva prova da atemorizante ascensão da mulher numa sociedade que, nesse desejo feminino de independência, lia uma vontade de masculinidade e um sinal provável de lesbianismo. Numa época fechada por códigos e tabus, Cary Grant contracena com Katharine Hepburn no filme de Howard Hawks, Bringing Up Baby (Duas Feras, 1938) e, ao ser obrigado a travestir-se temporariamente com um roupão de senhora, exclama: ‘‘I am suddenly gay!’’ Esta frase, tida como a primeira vez em que o termo gay foi proferido no cinema em alusão à preferência sexual, dá visibilidade a essa suspeita de uma ligação entre o vestuário e a orientação sexual, denunciando como o cinema replicava os clichés de uma sociedade hermética onde a homossexualidade era encarada como um desvio normativo e uma aberração. Como esclarece o documentário Celluloid Closet (1995), de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, ‘‘o cinema deu-nos acesso a uma história do que a sociedade pensa que os homossexuais são.’’


Marlene Dietrich é outra das mais precursoras gender-benders da história do cinema e, em 1930, gerou controvérsia ao vestir um smoking em Morocco (Marrocos, 1930), filme de Josef von Sternberg. A estratégia do realizador agiria como um golpe sobre as expectativas de um público que antecipava rever as célebres pernas alemãs de Der blaue Engel (O Anjo Azul, 1930), filme do mesmo realizador, feito no mesmo ano, e contribuiria para moldar a imagem de dureza de uma Marlene impávida e inalcançável. As esfíngicas Dietrich e Garbo, misteriosas actrizes de origem europeia, foram retratadas num allure sexualmente ambíguo demonstrando como, nos anos 30, uma mulher em roupa de homem se apresentava como um atraente símbolo de poder, enquanto um homem vestido de mulher seria inevitavelmente bizarro, ridículo ou degenerado. (O que é que mudou?)


Se o cinema da década de 30 foi sobre o poder icónico da mulher masculina, estas personagens que diluem as fronteiras entre os géneros problematizam, em simultâneo, as questões da orientação sexual. O primeiro beijo lésbico no grande ecrã foi dado pela Dietrich en travesti de Marocco, e Greta Garbo seguir-lhe-ia os passos numa interpretação ousada da Rainha Christina da Suécia que, conhecida por rejeitar os preceitos femininos tradicionais, nunca casaria e, neste filme, viveria uma longínqua paixão lésbica como uma das suas aias.



Katharine Hepburn elevou a dureza de Garbo e de Dietrich a um outro nível e talvez não tenha havido star mais gélida no grande ecrã. Em Sylvia Scarlet (1935), a ambiguidade sexual da diva perturbou a audiência do seu tempo. Apesar de ser um dos seus favoritos, em 1934 seria o redondo flop do realizador George Cukor, e só se viria a tornar num filme de culto umas décadas mais tarde, adoptado como manifesto LGBT. Manuel Cintra Ferreira escreveu sobre o contexto de recepção do filme, assinalando como ‘‘Sylvia Scarlet era um filme que aparecia em Hollywood, muito à frente do seu tempo, portanto incompreensível, provocando um efeito de estranheza e repúdio como um estranho fenómeno.’’ (7) Na pele da grande star Katharine Hepburn travestida, o espectador é situado no interior de uma constante experiência na indefinição entre os géneros e respectivos papéis sexuais. Uma precursora intervenção que, inscrevendo-se precisamente na distinção entre sexo e género, subverte os clichés sexuais estabelecidos por Hollywood. Através de uma Sylvia Scarlet que a todos tenta convencer de que é um homem, se demonstra como, apesar do seu sexo feminino, a sua personalidade se inscreve numa base de identificação psicológica com comportamentos associados ao masculino, num apelo à performatividade individual em que se baseia a construção do género. ‘‘– Eu vivi como um homem. Fiz o que bem me apeteceu, ganhei dinheiro suficiente para me sustentar e nunca tive medo de estar sozinha!’’(8), disse Katharine Hepburn, explicando como rejeitou as expectativas associadas ao feminino tradicional.

Como escreve Thomas Elsaesser, “o cinema também se implicou na transformação social do género, ajudando a redefinir os papéis sociais da mulher e especificando o sentido da sua visibilidade na esfera pública.’’(9) Estávamos já numa fase madura do western, tão popular género do cinema americano, quando Nicholas Ray nos apresenta uma das personagens mais memoráveis da história do cinema [e a mulher da vida de João Bénard da Costa que, realidade ou mito, por 68 vezes se sentou defronte de Johnny Guitar (1954)]. Dona de um saloon e de armas prontas, é uma segura Vienna (Joan Crawford) quem, com traços de cowboy, permanentemente disputa a sua força com os homens, numa sabotagem aos estritos códigos do western. Como reparou Rogert Ebert (10) na sua leitura do filme, ‘‘nós nunca vemos o seu boudoir’’, ou seja, a postura de Viena é sempre activa, movimentando-se no espaço público, eminentemente habitado pelo masculino. Ao escrever sobre o male gaze no cinema clássico, Laura Mulvey (11) observa como ‘‘a mulher se insere na cultura patriarcal como um significante para o outro masculino, presa a uma ordem simbólica na qual o homem pode viver as suas fantasias e obsessões através do comando linguístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa de uma mulher parada, atada ao seu lugar, como transporte de significado, não produtora de significado.’’ Contra a figuração clássica da mulher-objecto, Vienna jamais é retratada na leveza convidativa de uma roupa de dormir e nunca surge na disponibilidade de um quadro desprotegido de intimidade. O espaço desta personagem não tem lugares a preencher pelo masculino e, tão feminina como masculina, constrói uma figura que se distingue, precisamente, pela segurança da sua autonomia.
Porque o grande ecrã sempre gostou de gender-benders, por várias vezes fez renascer as mais emblemáticas mulheres-de-armas do Velho Oeste americano, entre elas, Annie Oakley, Calamity Jane, Stagecoach Mary Fields e Montana Belle Starr, pistoleiras e cowgirls figuradas em inúmeras adaptações como heróicas gender-benders, que implodem os meios tradicionalmente masculinos em que se movem.


Outro exemplo pronto a agitar as expectativas de género do seu tempo foi o de Cluny Brown (O Pecado de Cluny Brown, 1946), rapariga que se atreveu a viver livremente na Inglaterra de 1938 para lá das fronteiras estanques dos atributos de género. Sedutoramente refrescante nas suas maneiras impróprias a uma lady, a sua reputação é constantemente colocada sob suspeita por se encontrar no lugar da profissão do tio, ‘‘retirando o máximo prazer da acção de desentupir canalizações entupidas’’ (12). Num filme protagonizado por Jennifer Jones que surge em pleno auge do cinema clássico americano, o que Lubistch mordazmente denuncia, através desta protagonista subversiva, é o ridículo que atravessa os vários sistemas de classes, bafiento em expectativas e em códigos de comportamento.
Revolução Sexual

Com a progressão dos movimentos da Nova Esquerda, o espírito contestário que varre o Ocidente a partir dos anos 60 traduz-se de várias maneiras num tempo de Revolução Sexual, que carrega consigo uma agenda ampla de reformas sociais para mudanças estruturais nas dinâmicas de género (direitos das mulheres, direitos gay, etc). E se o esquerdismo propõe uma visão equalitária da sociedade que caminha para a dissolução do género, o cinema encontrou neste nivelamento dos corpos a entre-semelhança e a proximidade do direito ao desejo e à fantasia sexual, construindo um ideário visual para as reinvindicações emancipatórias. Oficialmente em vigor desde 1930, o Código Hays só viria a ser posto em prática por volta de 1934, estendendo-se até 1967. Tudo o que antes havia sido habilmente contornado, através da sugestão, enunciação, inscrição, ressurge em força levantadas as proibições – e uma nova explicitude povoa os ecrãs.
A Gloriosa Variedade Queer
A causa trans está 30 anos atrasada em relação à causa gay.
Caitlyn Jenner

Porque é de diversidade que vamos falar, antes de prosseguirmos, sentimos a necessidade de balizar algum vocabulário essencial. É determinante deixar claro que a orientação sexual está, até certo ponto, separada da identidade de género, e que há diferenças essenciais entre travestis/cross-dressers, transgéneros e transsexuais. Indivíduos trans, transsexuais ou transgéneros podem ser binários (mulher ou homem) ou não binários (genderqueer). O termo genderqueer ou não-binário é um “termo guarda-chuva”, e diz respeito a identidades de género que não sejam exclusivamente homem nem mulher, por oposição ao binómio dos géneros e da cisnormatividade (possuir apenas identidade de género). É indispensável ressalvar que quem se identifica como genderqueer pode ter variadas identidades de género: tanto homem quanto mulher (sendo bigénero, trigénero, pangénero/multigénero), parcialmente homem ou mulher (demigénero) ou nem homem nem mulher (pessoa sem género ou agénero), uma identidade fluida entre os géneros (ou género fluido) ou terceiro género ou outro-género (incluindo pessoas que não nomeiam o seu género). Há ainda que vincar que identidade de género e expressão de género são duas coisas diferentes, não necessariamente correspondentes.

Le Voyage dans la Lune (Viagem à Lua, 1902) de Georges Méliès

Adam and Eve (1912) de Marc Chagall

A bandeira queer é composta por barras horizontais que representam as cores do arco-íris. Associada a movimentos libertários e pacificistas, é o principal símbolo LGBT / Pride.
- Transsexual: o indivíduo que nasce biologicamente pertencente a um determinado sexo, mas sente que pertence ao outro sexo. A identidade de género não é congruente com o sexo anatómico, biológico.
- Transgénero: o indivíduo que se identifica com o género oposto ao da designação no nascimento. A sua expressão do género com que se identifica pode – ou não – traduzir-se na forma como se veste ou se comporta. É uma questão particular, que depende da experiência de quem a vive. Em geral, os Transgénero fazem algumas modificações corporais, sem alterar necessariamente os seus caracteres genitais.
- Travesti ou Cross-dresser: o indivíduo, mulher ou homem, que usa roupas associadas ao género oposto no dia a dia, por interesse, fetiche ou outro motivo.
- Drag Queen/King: são artistas performáticos que se vestem com roupas femininas, independente da sua identidade de género, no contexto de apresentações.
O Género como Construção


Linda Manz (como o seu ídolo Elvis) em Out of the Blue (Angústia de Viver, 1980) de Dennis Hopper

‘‘Nós somos as nossas escolhas’’, escreveu Jean-Paul Sartre, alicerçando um existencialismo que tem por base a relação entre subjectividade e responsabilidade, incutindo no indivíduo o trabalho autónomo no projecto individual de ser, num movimento particular da acção. Se “ser é tornar-se” (13), tal como recorda Simone de Beauvoir, “uma pessoa não nasce mulher – torna-se mulher.” Sexo (carácteres genitais), identidade de género e expressão de género não são necessariamente correspondentes e, nestas questões, o plano psicológico adianta-se ao biológico. Como diz Judith Butler a partir de Beauvoir, é o comportamento que cria o género (14) e este é, necessariamente, uma característica da inserção do indivíduo na sociedade. O género é uma construção social e em Out of the Blue (Angústia de Viver, 1980), Linda Manz veste a pele de uma pré-adolescente que idolatra o Elvis, que elege como pai simbólico e precursor do movimento punk, situando-se, indefinidamente, nos interstícios entre os géneros. Através do seu radicalismo, desajustado de uma família disfuncional, reflectimos acerca de como o reagir à sociedade é participar num ininterrupto movimento de aquisição de pertenças, onde a formulação de uma identidade sexual surge como uma questão desde cedo – questão esta que aparece ainda mais precocemente problematizada em Tomboy (Maria-Rapaz, 2011) de Céline Schiamma. Este filme coloca-nos junto de uma maria-rapaz de dez anos, fase do desenvolvimento infantil em que rapazes e raparigas são superficialmente tão semelhantes que se explicita como entre feminino e masculino não há tanto uma oposição mas, sim, um espectro de gradações possíveis.
A transição completa (anatomicamente falando) de masculino para feminino de uma celebridade como Bruce Jenner para Caitlyn aconteceu ‘‘debaixo das câmaras’’ e prossegue publicamente no programa I am Cait (E! TV), que se dedica a debater questões trans. A modelação comportamental assumida por Bruce parece quase funcionar como um documento de prova, partindo do seu caso particular, para exemplificar uma questão essencial: a identidade de género, questão de debate íntimo, nem sempre se traduz na expressão física desse mesmo género. A actualidade desperta para a fluidez das questões de género, lugares cambiáveis de expressão da personalidade e da identidade. Em última análise, a identidade de género é uma questão íntima, relativa à pessoa e à sua verdade sobre si.

Revolução Sexual e Drag-Queen/King
”De facto o cinema dos ‘palhaços’ do mudo norte-americano está “cheio de exemplos” de travestismo – “No período do cinema mudo o ênfase no entretenimento visual, o relativo relaxamento da censura e a qualidade lúdica da nova forma de arte combinaram-se para criar filmes com travestismo que eram imaginativos e relativamente abertos” (Bell-Metereau 1985, 25). Interpretados por Charles Chaplin, existem três títulos com personagens travestidas, Buster Keaton tem uma breve aparição travestida em Sherlock Jr. (1924) e o actor do burlesco mudo que mais vezes se travestiu foi Stan Laurel, num total de nove títulos (Connor 1981, 398-399) (…) Como afirma Rebeca Bell-Metereau em Hollywood Androgyny: A presença de papéis de troca de géneros e o travestismo nos filmes acompanha picos que correspondem a períodos de maior experimentação na sociedade como um todo. Durante a era pré-código Hays e no final dos anos 1960 parece ter havido uma tendência geral para a experimentação e para a rejeição de papeis sexuais delimitadores. Por oposição à era do pós-Segunda Grande Guerra quando o motivo era visto negativamente, reflectindo a vontade da sociedade regredir às antigas convenções.” Ricardo Vieira Lisboa, em A MÃO QUE DESPE A MÁSCARA – OS TRAVESTISMOS DE “RITA OU RITO?…” DE REINALDO FERREIRA
A Revolução Sexual constrói, no grande ecrã, personagens transgéneros e transsexuais desafiantes, com dimensões psicológicas trabalhadas de forma complexa e onde se inscrevem questões identitárias reais e incontornáveis. Ao contrário do glamour intencional dos drag-queens, cujo impacto espectacular serve excepcionalmente a celebração visual do movimento queer, o drama dos personagens transgéneros e transsexuais tende a ser oposto, normalmente focado numa tentativa de inserção. Filmes como In einem Jahr mit 13 Monden (In a Year With 13 Moons, 1978), Transamerica (2005), Une nouvelle amie (Uma Nova Amiga, 2014) ou The Danish Girl (A Rapariga Dinamarquesa, 2015) são alguns entre vários exemplos construídos sobre a fractura entre identidade de género e biologia, descrevendo personagens que se debatem com a mais vital necessidade de parecer com o sexo oposto até à imperceptibilidade. Quem adivinharia que os jovens protagonistas de Bara no sôretsu (O Funeral das Rosas, 1969) eram, afinal, lindíssimos ladyboys?


In einem Jahr mit 13 Monden (In a Year With 13 Moons, 1978) de Rainer Werner Fassbinder

The Danish Girl (A Rapariga Dinamarquesa, 2015) de Tom Hooper
Le locataire (O Inquilino, 1976) de Roman Polanski

Une nouvelle amige (Uma Nova Amiga, 2014) de François Ozon

Ba wang bie ji (Adeus Minha Concubina, 1993) de Chen Kaige
Todas as artes cénicas desenvolveram narrativas relacionadas com o poder da ambiguidade de género, explorando a força do disfarce e da alteridade sexual. Os mais distintos artistas transfiguraram-se através do drag e vimos autoretratos en travesti de Andy Warhol, Cindy Sherman, Claude Cahun, Marcel Duchamp, Alfred Hitchcock, Federico Fellini, Francis Bacon, Ana Mendieta, etc. Sendo os mais ostensivos e teatrais entre todos os cross-dressers, o drag queen e o drag king são figuras de efeito, que procuram um impacto cómico, satírico e dramático. A sua estilização exagerada responde com leveza a uma sociedade estratificada, demonstrando a dimensão lúdica com que as questões da sexualidade, orientação e identidade de género podem ser endereçadas. O cinema sempre foi palco de figuras transformistas, de transgéneros, de transsexuais, de drags e de travestis, particularmente espelhando um projecto redefinidor das categorias de género que atravessa a sociedade a partir dos anos 60/70. Estes princípios prosseguem a ampla e remodeladora missão de reconstrução do lugar dos géneros na sociedade, que ocupa um lugar nas academias e dá origem aos Estudos Queer – uma teoria que, segundo, Eve Kosofsky Sedgwick, se baseia na existência de uma intrincada realidade em movimento no interior de cada indivíduo: ‘‘Queer é um momento, movimento, motivo contínuo – recorrente, espiralado, agitado. A palavra queer também significa através – e vem da raíz Indo-Europeia twerkw, que também produz o alemão quer (transverso), o latim torquere (dobrar) e o inglês athwart.’’ (15)


A narrativa do recente The Lobster (A Lagosta, 2016) constrói-se como uma crítica extraordinária à hipersexualização – demonstrando, precisamente, como a abertura dos canais discursivos no interior da sociedade relativamente ao sexo não significa necessariamente uma liberalização ou mudança de paradigma face às questões de sexo, género ou orientação. Antes pelo contrário. Neste futuro distópico, um hotel-prisão é o derradeiro destino destes solteirões que, se não têm habilidade para deixar de o ser, são transformados em animais. Aqui, o amor é sexual e é uma construção algorítmica, onde a capacidade de acasalamento é a prova de préstimo do ser humano enquanto tal, numa demonstração barroca do cinismo das pressões sociais que enredam o indivíduo e sobre si forçam desejos de pertença aos códigos da normatividade (o casal, hetero ou homo, etc). Hoje, como disse Philippe Garrel numa entrevista que nos concedeu À Pala de Walsh, ‘‘tudo o que são as vias do mercado são as vias do amor’’ e o capitalismo é a primeira matéria-prima para a construção artificial do romance. O actualíssimo documentário HyperNormalisation (Adam Curtis, 2016) introduz o conceito de hiper-normalização para descrever o sistema de hegemonia das ideias dominantes que estrutura a multiplicidade dos discursos na sociedade ocidental segundo um processo de afunilamento à escala global. Por outras palavras, esta hiper-normalização é o estado disseminado de receber o que é falso como um procedimento que é aceite como normal devido a uma contínua falta de concretização de uma realidade alternativa.




”You’ve got your mother in a whirl ‘cause she’s
Not sure if you’re a boy or a girl”
DAVID BOWIE (Rebel Rebel)
Cinema, Lugar Permanente da Alteridade
Num mundo de circulação global de ideias, o discurso dominante é contendedor e, neste âmbito, é na ligação íntima entre o cinema e os regimes de poder que se explica a vocação conservadora da grande arte do século XX, e a que tem sido, à escala popular em que existe desde a sua origem, o lugar privilegiado das propostas de comportamento e de papéis a aderir. Mas, contra as tendências generalistas que viriam a viciar o discurso dos gender studies, que tanto se dedicaria a analisar as décadas predecessoras da história do cinema sem a minúcia de uma visão compreensiva, devemos começar por aliviar as obsessões cronológicas para ressalvar como, apesar dos códigos dominantes, nunca Hollywood caminhou numa direcção linear. Ainda que o laboratório desta análise tenha pouco mais de cem anos de existência, é a vitalidade díspar do cinema o que importa sublinhar neste balanço transversal à história da representação dos géneros. Resta-nos dissecar um percurso não uníssono que, ora se exprime em conformidade com os ritmos da sociedade em que insere, ora lhes responde com um ponto de vista crítico. Porque qualquer arte reivindica para si mesma uma liberdade – principalmente se esta lhe falta – reconhecemos o radicalismo poliforme de cineastas precursores que, habilmente, fintaram as regras sobre o que não podia ser dito nem mostrado.
- Anos 60 :

Mondo Trasho (1969) de John Waters
Flesh (A Carne, 1968) de Paul Morrisey
- Anos 70 :

The Rocky Horror Picture Show (Festival Rocky de Terror, 1975) de Jim Sharman
Fatucha Superstar (1976) de João Paulo Ferreira
Pink Flamingos (1972) de John Waters
Der Tod der Maria Malibran (A Morte de Maria Malibran,1972) Werner Schroeter
- Anos 80:

Polyester (1981) de John Waters
Cruising (A Caça, 1980) de William Friedkin
- Anos 90 :

Raising Cain (Em Nome de Caim, 1992) de Brian De Palma
To Wong Foo Thanks for Everything, Julie Newmar (Os Três Mosqueteiros do Amor, 1995) de Beeban Kidron
- Anos 2000 :

Before Night Falls (Antes Que Anoiteça, 2000) de Julian Schnabel
Morrer como um Homem (2009) de João Pedro Rodrigues
Venus Boyz (2001) de Gabriel Bauer
Contra o Machismo


Harvey Milk (o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo político, a quem Gus Van Sant dedicou um biopic em 2008), disse um dia: ‘‘Se um dia uma bala tiver que entrar no meu cérebro, que ela destrua todas as portas dos armários’’. Gostava que a este movimento de sair dos armários a que se associam as declarações individuais de homossexualidade, correspondesse um movimento social similar que destrua todas as portas dos preconceitos. Até que seja tão natural ser queer como outra coisa qualquer, e que um dia já ninguém se lembre do que significava isso de sair do armário.

Ensaiar esta genealogia no presente – num preocupante contexto de reavanço dos conservadorismos – é perceber o que se tem feito e o que ainda falta aos movimentos de aproximar feminino e masculino. Inscrevemos este desnível numa questão já esboçada mas tremendamente reveladora: porque é que, em 2016, uma mulher de fato exala confiança e poder mas um homem de vestido ainda é ridículo?
Agradecimentos:
Agradeço a Manuel S. Fonseca, Luis Mendonça, Ágata Pinho, Bruno Martins, Ricardo Vieira Lisboa, ILGA e Mehdi Jahan por contributos preciosos no decorrer da escrita destes artigos. Agradeço a Laetitia Morais pelo empurrão inicial.
Referências Bibliográficas:
(1) Edward P. Vining em Time in the Play of Hamlet.
(2) Jan Kott em Hamlet of the Mid-Century.
(3) Hamlet aconselha Ofélia a juntar-se a um convento, virgem, escusando-se a participar da ‘’raça pecaminosa’’ :‘’- Get thee to a nunnery. Why wouldst thou be a breeder of sinners? I am myself indifferent honest, but yet I could accuse me of such things that it were better my mother had not borne me: I am very proud, revengeful, ambitious, with more offences at my beck than I have thoughts to put them in, imagination to give them shape, or time to act them in. What should such fellows as I do crawling between earth and heaven? We are arrant knaves, all; believe none of us. Go thy ways to a nunnery.’’
(4) Dympna Callaghan em Hamlet: Language and Writing.
(5) Greta Garbo citada em Meet Asta Nielsen, Gary Morris http://brightlightsfilm.com/meet-asta-nielsen-gender-bending-silent-star-taught-everything-know-garbo/.
(6) Notícia que descreve o caso de uma mulher detida e julgada por usar calças (California, 1938) : http://www.latimes.com/local/california/la-me-california-retrospective-20141023-story.html.
(7) Manuel Cintra Ferreira em Folhas da Cinemateca (6 de Março de 2008).
(8) Katharine Hepburn em entrevista a Barbara Walters (1981)
(9) Thomas Elsaesser em Weimar Cinema and After: Germany’s Historical Imaginary
(10) Roger Ebert em Johnny Guitar (8 de Maio de 2008)
(11) Laura Mulvey em Visual and Other Pleasures
(12) Manuel Cintra Ferreira em Folhas da Cinemateca (6 de Março de 2008)
(13) ”Ser é tornar-se’’, uma proposta de reformulação geral da ideia de Simone de Beauvoir: ‘‘One is not born, but rather becomes, a woman” em O Segundo Sexo.
(14) Judith Butler em Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity.
(15) Eve Kosofsky Sedgwick, em Tendencies.
(16) Peter Wollen em Signos e Significação.
// //