Os grandes destaques desta edição do Palatorium Walshiano vão para o cinema português, como vem acontecendo nos últimos meses de desconfinamento (enquanto as salas não são inundadas, de novo, pelas majors norte-americanas – se é que isso alguma vez voltará a acontecer). Entrevistámos Basil da Cunha a propósito de O Fim do Mundo (2019), falámos também com Mário Barroso sobre Ordem Moral (2020), já havíamos trocado ideias com José Oliveira, antes de Os Conselhos da Noite (2020), e deixamos, agora, um comprimido sobre o desaire que é O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020) de João Botelho. Já das terras da estranja chegam-nos, no entanto, outros títulos, que aqui recordamos em doses homeopáticas (e sem grande entusiasmo).
O filme de Desplechin ancora-se imediatamente em muitas famílias: o naturalismo de Zola e as pinceladas do pequeno crime numa comunidade pobre francesa; a geometria suave dos policiers de Melville; o noir americano em tons falsamente cândidos; a violência e a escondida dimensão humana policial nos melhores Eastwoods; os procedimentos mais recentes como em The Wire ou True Detective. Há, portanto, muito por onde olhar para este Roubaix, une lumière, bonito filme, embora um tanto desequilibrado. A lumière, representado pela figura da paz e serenidade, o comissário Daoud (Roschdy Zem), figura anjo-Obama no seio da escuridão das ruas, rima bem como a primeira metade do filme. Aqui, sentimo-nos aconchegados juntos do quotidiano de um grupo de polícias, suas missões, conversas, espaços fechados, iluminados por uma aura natalícia. Só que, na segunda metade, o lado realista de Roubaix destrói um pouco o enlevo, a fábula. Uma vez que retrata um crime real e vai-se concentrando num acontecimento particular. Ainda que Desplechin seja inteligente na forma como gere os rostos, e a montagem dos diálogos entre polícias e suspeitos, o que começou por ser do domínio da metafísica e da potencialidade – o espírito de um local, o mistério das 1001 vidas que compõe uma comunidade e uma profissão – vai-se fechando, deixando pontas soltas e aproximando-se da dimensão mais descartável do género policial: achar quem é o culpado. Mas não são todos culpados e inocentes diante da luz?
Carlos Natálio
O cinema de terror sempre espelhou (de formas mais ou menos directas) os medos da sociedade. O cinema de terror norte-americano, em particular, vem reflectindo os receios daquela que é a sua audiência maioritária, uma classe média branca e aburguesada (tradicionalmente o terror mainstream nunca foi um género que cativasse o público afro-americano). Daí que o medo por excelência, no cinema de terror do último meio século, se expresse na invasão da casa (em inglês o subgénero denomina-se home invasion) e na destruição da sacrossanta propriedade – ideologia que resulta (ou que advém) das leis de stand-your-ground. Como diria uma amiga: minha casa, meu lar, meu pote de cagar. O interessante, em The Rental, é a forma como este adapta todas essas tensões imobiliárias que caracterizam a América contemporânea no caso particular das aplicações de alojamento temporário, e que associamos, sempre, à empresa Airbnb (neste caso servindo de catalisador dramático para a paranoia e o preconceito). O filme de Dave Franco revela, de forma exemplarmente ilustrativa, a bipolaridade norte-americana entre as costas e o interior, entre democratas e republicanos, entre classe alta e classe baixa, entre highbrow e hillbilly. O olhar niilista sobre os personagens (que se poderiam descrever como very bad people on both sides) seria tão mais cativante quanto nunca chegasse a consumar o mal numa figura concreta. Quando o faz, desfaz-se na vulgaridade de uma série B insossa, anónima e formuláica.
Ricardo Vieira Lisboa
Desengane-se quem espera encontrar no filme de François Ozon um novo Call Me by Your Name (Chama-me Pelo Teu Nome, 2017). É verdade que tudo começa em cores de rebuçado, com uma reconstrução meticulosa de paisagens pop do Verão de 1985, pelos caminhos da descoberta cândida e titubeante de um primeiro amor. Por momentos, olhamos para este Été 85 (Verão de 85, 2020) como um possível contraponto a L’effrontée (1985) de Claude Miller, filme com o qual partilha o mesmo Verão. Mas atente-se nos pequenos vislumbres de algo bem mais inquietante, logo nos momentos iniciais do filme (aliás, poucos minutos se esgotam até que uma tempestade comece a desenhar-se no horizonte). Por exemplo, o cartaz de Suddenly, Last Summer (Bruscamente no Verão Passado, 1959) que assombra a cabeceira (e os sonhos?) de David e que faz adivinhar contornos soturnos deste amor de Verão. Ou até mesmo um pente ameaçador, com tanto de lúgubre quanto de lúdico – ou não fossem o lúgubre e o lúdico essência do cinema de François Ozon. Não podemos, todavia, deixar de lamentar que, ocorrida a primeira grande erupção de humor, estes momentos de descomedimento sejam tão fugazes, nunca chegando o filme a perder as estribeiras tanto quanto desejaríamos.
Daniela Rôla
A indústria norte-americana parece ter reagido ao movimento feminista digital #metoo com um reforço das protagonistas femininas em filmes de acção. Como se costuma dizer, a um homem com um martelo, todos os problemas se parecem com pregos. Não compreendendo necessariamente a crise do cinema de acção popular, os estúdios apostam em filmes de pancadaria de baixo orçamento mas com uma cartada pseudo-política pela representação e emancipação das mulheres. Veja-se como, no espaço de poucas semanas, estreiam nas esvaziadas salas portuguesas, além de Ava, The Old Guard (2020, Gina Prince-Bythewood), Rogue (Selvagem, 2020, M. J. Bassett), no encalço dos recentes sucessos de Luc Besson, Lucy (2014) e Anna (2019). Agentes especiais, espias, ex-militares, alterações genéticas ou o consumo de cocktails experimentais para aumento de desempenho são os panos de fundo onde dançam, de G3 em riste, mulheres lutadoras e decididas que têm dificuldade em manter uma estabilidade familiar ou relações de longa duração. Alegorias (simplistas, naturalmente) sobre a mulher moderna, assoberbada pelo trabalho e por tudo o resto que se espera dela. Dos cinco título citados, o melhor é, certamente, Anna, que descobre na duplicidade palindrómica da identidade e do desejo uma saída dos espartilhos morais do amor, da precariedade laboral e das expectativas de género. Ava, pelo contrário, cai rapidamente num dramalhão telenovelesco, ou não fosse Tate Taylor o mesmo realizador de The Help (As Serviçais, 2011).
Ricardo Vieira Lisboa
Chamado a comentar Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990) de Oliveira, no documentário de Ariel de Bigault, Fantasmas do Império (2020) João Botelho a certa altura sai-se com esta frase que me tinha vindo a rebolar na cabeça: “porque o cinema são ideias”. O cinema de Botelho, e como exemplo, esta sua adaptação de Saramago mostra bem essa veia cerebral do seu cinema. Por um lado, é uma obra tributária dos escritores, na medida, em que procura escrever entre linhas, ser-lhes fiel, introduzir-se numa linha de artistas que, como eles, reflectiu os destinos portugueses. Por outro lado, emerge, da pior maneira, uma certa dimensão do interesse de Botelho pela história, suas referências e reconstituição. Se é certo que existe um filme noir metido ali dentro [e que mesmo com boa vontade, começamos a imaginar Pessoa como um Sjöström em Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957) ou Reis como um Fonda em Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança, 1939)] o realismo fantástico tem o condão de chamar Jeunet, ou as inúmeras cenas de leituras de jornal, o pior da melancolia tuga de uma série como Conta-me Como Foi. E neste desequilíbrio vemos emergir a teatralidade dos diálogos. E também a atenção às “ideias” que têm como principal problema esvaziar as personagens e insuflar cada cena de uma ambição historicista. Como se o apaixonado pela História Botelho, comandasse a psyche do cineasta Botelho.
Carlos Natálio