Tudo isto para chegar aqui: que esta nova manifestação de insegurança artística de Coppola quanto aos seus trabalhos passados foi ouvida por tantos como o reconhecimento definitivo do último Godfather enquanto falhanço. Só que, para quem encara The Godfather: Part III (O Padrinho: Parte III, 1990) como o apogeu da saga (como eu), Coppola não falhou. A falha está nesta nova versão [The Godfather Coda: The Death of Michael Corleone (2020)] que, embora preserve intacto 90% do filme original, lesa os importantíssimos outros 10% (essencialmente, o início e o fim), o suficiente para escangalhar uma obra-prima.

Para explicar o meu ponto, um pouco de História. A reunião entre Michael e o arcebispo (que surgia no filme original ao fim de 40 minutos para introduzir o segundo acto, e que agora é o novo começo) sempre foi o início que Coppola tinha em mente. Só que, chegada a altura da montagem, o perspicaz editor Walter Murch reparou que algo estava em falta. Diz ele no recomendabilíssimo livro de entrevistas The Conversations: Walter Murch and the Art of Film Editing: “O que ficou claro, para mim, é que a cena não levava em consideração o estado de Michael no final do 2º filme (…). Está sentado sozinho numa cadeira junto ao lago, mas ele está vazio. Portanto, agora estamos a pegar nele muitos anos depois, e ele está outra vez cheio. A questão é, O que é que aconteceu? Como é que ele está tão cheio depois de estar tão vazio? Senti que um sítio mais interessante para começar seria na igreja, com todas aquelas associações de pecado, redenção e confissão. Nessa cena na igreja, onde Michael está a ser nomeado cavaleiro – enquanto ouvimos quão maravilhoso ele é enquanto pessoa – poderíamos reintroduzir as imagens de morte do seu irmão Fredo. Aqui está esta pessoa a receber a maior honra da Igreja, que é na realidade o assassino do seu irmão (…). Há uma tensão nisso, que achei que seria uma provocação interessante para o resto do filme. Sim, Michael, és bem-sucedido financeiramente – mas vais ter de lidar com este pecado primitivo e antigo.”
Se antes o que se sentia [no final] era um soco no estômago, agora mal passa de uma palmada na mão. E dada por um vegetariano.
Murch, como é seu apanágio, sumariza de forma sóbria e eloquente tudo aquilo que Coppola parece ter esquecido 30 anos depois. O início à beira da casa abandonada do lago Tahoe no tempo presente da acção, seguido da cerimónia na igreja com os incidentes que nele aconteceram a serem recordados em flashback, introduzia instantaneamente a culpa de Michael e a necessidade de expiação, mostrando um homem atormentado pelo passado ao ter cometido, qual Caim da Máfia, o acto criminoso do fratricídio. Tudo isto era conseguido pelas imagens do estado delapidado da casa do lago (um espelho da decadência moral do protagonista), pelo espaço da igreja (associado aos temas católicos que Murch referiu) e pelo flashback (a sobreimpressão sugere que Michael pensa na atrocidade cometida, explicitando a sua consciência pesada). Não só isso, como a primeira cena referia a importância crucial do que representa a paternidade para Michael: “A única riqueza do mundo são os filhos”, dizia ele numa carta a ser escrita para os seus, chamando-os de “verdadeiro tesouro”. Era, portanto, o começo certo também pelo modo como preparava o desfecho trágico, aquele que anunciava a vida vazia, solitária e irredimível que esperaria Michael ao perder Mary ou Anthony. O novo início em nada põe em marcha a sua contrição nem refere essa força e alívio existencial que há no amor paterno, favorecendo apenas o que no caso de The Godfather III não é o mais relevante (a subplot do Vaticano), esquecendo-se de delinear aquilo que realmente importa: o estado moral e psicológico de Michael Corleone. Em suma, prejudica o filme pelo tom com que inicia (o original é mais pesado e ominoso) e pelo que deixa de realçar por completo.

Ao mesmo tempo, a reunião com o arcebispo, pela maneira como está filmada (um plano fechado de alguém a pedir auxílio ao “Don”, um zoom out calmo até o Padrinho entrar no enquadramento visto de trás, um corte para este sentado numa cadeira), sugere comparações com a interacção entre Bonasera e Vito Corleone na clássica cena de abertura de The Godfather (O Padrinho, 1972). O problema é que, por mais adequada que possa parecer a citação quanto ao que representa (o estatuto, poder e respeito que Michael alcançou, em tudo semelhantes aos do pai no primeiro tomo), o destaque que adquire ao ser tornado no novo início, requisitando (mesmo que indirectamente) esta ligação mental, faz com que sobressaia o modo como não acarreta a pujança, a solenidade, o cuidado estético e dramatúrgico do outro. De onde sai, evidentemente, empalidecido.
E, depois, claro, o final. É incompreensível a forma desleixada (até mesmo amadora) como se salta rapidamente do segmento mutilado das danças em flashback (que já só contém aquela com a filha) para o que parece ser um computorizado zoom in panorâmico feito por alguém que acabou de descobrir o Movie Maker, terminando no plano fechado com Michael a colocar os óculos de sol, enquanto entra apressadamente o fade out com aquela declaração redundante: “Quando os sicilianos desejam ‘Cent’anni’, significa ‘para uma longa vida’. E um siciliano nunca esquece.” Coppola está a sublinhar a traço grosso o que o final original já sugeria. Pois que mais diziam todas as danças e o rosto apagado de Michael a não ser essa morte espiritual sofrida (é a ela a que o subtítulo da Coda se refere), de como a sobrevivência inesperada à tentativa de assassinato o condenou a uma vida de remorso, luto e recordações, tornando-o num cadáver vivo preso no purgatório? Para além disso, na nova versão, o facto de só existir a valsa com Mary faz esquecer que houve outras vidas destruídas por causa do amor que Michael tinha por elas, limitando-as ao número de uma pessoa. Ao sentir a necessidade de reforçar a mensagem, Coppola sacrificou a mais bela sequência da sua carreira, assim como parte do seu significado simbólico. Porque os planos já não respiram a dor aguda de Michael, a tragédia não atinge o seu ponto paroxístico, e não há a garantia absoluta, pela queda na cadeira, de que ele nunca chegou a conhecer a paz que sedentamente procurou. Há obras que dispensam finais abertos. E sem a morte física de Michael, o que se obtém é uma catarse frouxa, um arco dramático incapaz de se fechar de maneira intensa, um final emasculado que remove absolutamente a força majestosa do da versão original, aniquilando, assim, o impacto estético e emotivo que encerrava a saga com chave de ouro. Ou, pondo de maneira mais simples, se antes o que se sentia era um soco no estômago, agora mal passa de uma palmada na mão. E dada por um vegetariano.
Se era a devida reapreciação crítica o que Coppola procurava, mais valia uma restauração em 4K (ou algo similar) a propósito do 30º aniversário de The Godfather III e que a pusesse nas salas. Porque todas ou quase todas as virtudes que boa parte dos críticos norte-americanos apontam em Coda já estavam na outra versão. Simplesmente não quiseram vê-las ou reavaliá-las, deixando perdurar o estigma cinematográfico. Por isso, termino lançando um desafio ao leitor. Se já passaram alguns anos e não tem presente, na sua memória, o derradeiro Godfather, experimente tirá-lo uma vez mais da sua estante. Confronte-se com a obra, seja absorvido pelo ritmo das imagens, e deixe-se levar pelo conto de redenção falhada de Michael Corleone. Caso a sua opinião negativa ou não-tão-impressionada ainda se mantenha, agradeço-lhe sinceramente o esforço. Mas caso se dê o feliz acaso de passar a compartilhar, nem que seja um pouco, do entusiasmo que eu e mais alguns temos, peço-lhe, não hesite em espalhar a palavra sobre ele. Hoje é você, amanhã será outro, num mês serão dezenas, num ano seremos milhares. Ao invés de se ver The Godfather Coda, reveja-se The Godfather: Part III. É hora da reabilitação.