Don’t turn a scientific problem into a common love story.
Snaut
Kris Kelvin desce da sua nave para a estação espacial que orbita Solaris. Sem ninguém para recebê-lo, percorre os corredores até encontrar os membros remanescentes da tripulação. A estação parece abandonada ou, na verdade, deixada ao deus-dará, acumulando-se objetos ao acaso enquanto as paredes curvas parecem lutar ainda contra a entropia, conservando o brilho funcional da tecnologia. Muito em breve, Kris estará, como estes corredores, dividido entre um espectro do passado que aparenta contrariar a segunda lei da termodinâmica e o reconhecimento de que todo o projeto da “Solarística” chegou a um impasse inultrapassável.

Corredores
Os corredores duma nave ou estação espacial são praticamente um cliché do cinema e das séries de ficção científica, a ponto de significarem o género pela sua mera presença. A eles subjaz toda uma economia narrativa, seja pela funcionalidade prosaica de permitirem multiplicar os espaços com baixos custos de produção, bastando pequenas mudanças no enquadramento, na iluminação ou nos adereços, seja pelo modo eficaz como conotam a tecnologia – a “tecnologia-como-ideologema”, se quisermos ser bakhtinianos –, ou ainda, em instâncias específicas, como no filme Alien (Alien – O 8.º Passageiro, 1979) e suas sequelas, pelo potencial claustrofóbico. Talvez daí que a novela de Brian Aldiss Non-Stop [A Nave-Mundo] nunca tenha sido adaptada ao cinema ou à televisão: como adiar visualmente, para o espectador tanto quanto para as personagens, a descoberta do facto de se estar no interior duma gigantesca generation starship?
Não se esgota aqui a potencialidade significante dos corredores, e em Solyaris (Solaris, 1972) essa potencialidade é magistralmente explorada. A claustrofobia a que nos referimos vem acompanhada da sua negação, tal como toda a imagem “em campo” evoca um “fora de campo”: a finitude ou mesmo exiguidade da estação espacial evoca a incomensurabilidade do espaço exterior; a familiaridade quase monótona daquelas paredes e daquelas salas evoca a alteridade radical do planeta Solaris e do seu oceano. Num futuro em que se tornou possível viajar para o espaço exterior, os artefactos que possibilitam essas viagens são ainda demasiado humanos na sua escala.

Círculos
Uma outra característica destes corredores filmados por Tarkovsky é a sua forma circular. Sem dúvida uma estratégia de verosimilhança, comum a outros filmes que partilham do género, em consonância com o estar em órbita e com a produção, pelo movimento de rotação, de gravidade artificial – gravidade essa que apenas por breves momentos será suspensa. Mas também as paredes laterais são em círculo, as escotilhas, e até o espelho (para quê um espelho num corredor duma nave só com três tripulantes?) tem essa forma: naquela estação espacial assombrada pelos “hóspedes” deixou de haver princípio ou fim. Quanto mais se avança no tempo, mais estes duplos aperfeiçoam a sua capacidade para reproduzir o passado (pense-se no momento em que Hari “aprendeu” a dormir), reforçando essa ilusão – ou talvez realidade para o oceano-planeta – de que é possível contrariar a entropia e de facto trazê-los de novo ao mundo dos vivos.
Aliás, é ao adormecer que Kris é visitado pela primeira vez por Hari, confirmando que a temporalidade desse retorno é a temporalidade do sonho. Como para os corredores em círculo, só é possível sair do loop onírico de forma violenta, ora fazendo Hari entrar numa nave que atinja a velocidade de escape, ora por um brusco acordar do sonho, ora, como Gibaryan, pondo fim à própria vida – solução radical que aliás, por um golpe de ironia, aparenta estar vedada a Hari. Ou finalmente – numa estratégia narrativa que evoca uma auto-reflexividade gödeliana ou escheriana – subindo a parada do sonho vigilante com um sonho febril do qual Kelvin enfim irá acordar liberto do seu fantasma.

Interiores e exteriores
Contraste-se a circularidade dos corredores com as curvas na viagem de automóvel de Burton, ainda numa fase inicial do filme. Na estação espacial, a monotonia dos arcos de círculo; na viagem de automóvel, a diversidade apesar da repetição. Na estação espacial, estamos condenados ao interior porque até o exterior, Solaris, já tomou conta da estação e dos seus tripulantes; na viagem, alterna-se entre o exterior das vias rápidas e o interior dos túneis.
Burton, ainda que afetado para sempre pelo stress pós-traumático, entra e sai dos túneis na sua viagem, sendo capaz de regressar à realidade tal como é capaz de regressar a casa e à família, com o filho no banco de trás. Já no caso de Kris Kelvin, experienciamos o trauma em crescendo, um trauma que, ao contrário do de Burton, aparenta tornar-se insuperável a partir do momento em que este decide não abandonar a estação espacial e passa a apresentar aos outros tripulantes o duplo de Hari como a sua esposa, optando pela circularidade em vez de quebrá-la.
Aliás, são dois os traumas. Também Hari está condenada a reviver o seu: quanto mais humana se torna, maior a probabilidade de repetir ad infinitum o seu suicídio originário. O círculo é contudo quebrado precisamente quando ela adquire essa humanidade (ou o oceano de Solaris a adquire, se se preferir atribuir a causa ao mais trivial estratagema do eletroencefalograma) – isto é, a capacidade de sacrificar-se pelo outro e não por si mesma. Do ponto de vista de Kelvin, essa saída traduz-se no trabalho do luto que nunca havia empreendido e que agora pode finalmente fazer-se.

Tecnologia e natureza
Regressemos por uma última vez aos corredores da estação espacial. Significam a tecnologia, já o dissemos; mas uma tecnologia que não está imune à entropia, e à qual os tripulantes parecem ter cedido com o seu desleixo, que macula a previsível pureza assética destes lugares. Limpo mas também sujo, polido mas também desmazelado, funcional mas também avariado. Ainda assim, esse é apenas um “pequeno contraste”, miniatura do “grande contraste” que é o que opõe a tecnologia à natureza, também ele representado por diversas ocasiões em Solaris.
Abrindo mas também encerrando a narrativa, e portanto estabelecendo-se desde logo como um dos pólos, a natureza do lago e da casa de campo da família de Kris. Fosse contudo esse o único contraste e haveria o risco de cair-se no bucolismo, no cliché do “regresso a uma natureza em harmonia com o humano” que também a sequência com os planos do quadro de Brueghel, o Velho, Caçadores na Selva, parece querer significar. Mas por mais que a natureza possa ser o local ao qual se regressa, é também aquele onde residem as potências que estão acima do humano e que lhe fogem ao controlo – Solaris e o seu oceano significam essa incomensurabilidade, sem que seja necessário, como com o xenomorfo de Alien, representá-la como uma ameaça física.
Entre a natureza bucólica, pré-tecnológica, e a natureza como fundo que transcende qualquer tecnologia, o justo meio-termo é evidenciado pelo momento em que a estação espacial inverte a órbita e fica temporariamente sem gravidade. É significativo que essa sequência nos seja mostrada não no corredor, embora este possa vislumbrar-se através duma porta, e sim na biblioteca, local que representa o ponto de encruzilhada entre humano, natureza e tecnologia a que chamamos cultura.
Jorge Martins Rosa
Professor universitário