FADE IN:
INT. SEDE FÍSICA DO À PALA DE WALSH – DIA
[Um escritório para os lados de Nova Iorque. Ou, por uma questão de realismo, apenas na Damaia. Nele, estão depostas as secretárias com computadores individuais. Vários colaboradores estão espalhados pelo piso, alguns a escrever nos seus lugares, outros em movimento acelerado com as críticas e crónicas recém-escritas nas mãos. Em todos eles, é visível o entusiasmo provocado pelo trabalho. Excepto num: sentado numa secretária a um canto, DUARTE está com a cabeça em cima dos braços, ocultando a sua expressão de desespero. Dele aproxima-se o editor do mês actual, JOÃO, cujo bolso direito do seu fato formal aparenta ter guardado um objecto rectangular. Está prestes a iniciar um diálogo pseudo-sorkiano – rápido e em estilo de ping-pong – em torno de Being the Ricardos (2021). Começa João, cujas falas serão sempre dadas em itálico.]
Caminha comigo.

[Duarte levanta-se e começam ambos a andar lado a lado pelos corredores do edifício. Nota: se um dia este guião for filmado, é evidente o emprego do plano-sequência a partir daqui.]
Já viste o Sorkin? Queres dizer o último Sorkin? Quero dizer o último Sorkin. Já vi o último Sorkin. Onde está o texto? Não tenho o texto. Diz-me o que aconteceu ao texto. Queres a verdade? Não me digas que não consigo lidar com a verdade. Estou com bloqueio de escritor. Estás a brincar. Achas?
Vamos trabalhar nisto… Gostaste do argumento? Creio que não. Gostaste da realização? Creio que não. Gostaste do filme? Creio que não. É assim tão mau? É um mau filme do Sorkin. Estamos a chegar a algum lado. Estamos? À parte o nome nos créditos, o que é que te faz dizer que é do Sorkin? Bom… Bom…? Os olhares sobre os bastidores de um programa televisivo, uma mulher tão ou mais intelectualmente capacitada que os seus colegas masculinos, a estrutura não-linear a alternar a acção num período temporalmente específico com flashbacks, e… O que se segue? …a sua dose de sorkianismos reconhecíveis, como aquele dito pelo Bardem a certa altura: “caminha comigo até ao cenário.”
Já percebemos porque é que é um filme “do Sorkin”. Falta compreender porque é que é “mau”. Essa frase do Bardem… Essa frase do Bardem…? No passado, introduzia um prolongado momento walk and talk filmado num plano-sequência imersivo. E neste caso? Não é um longo contínuo, são três curtos separados. Desde quando vais para um Sorkin à espera de ver Angelopoulus? Quero dizer que é uma cena desinspirada, sem a energia e virtuosismo já associados ao seu trabalho. E quanto à realização no resto do filme? Académica, ilustrativa, cataléptica. Estou curioso em saber o que é uma realização cataléptica. Campos/contra-campos estagnados onde as personagens se limitam a debitar as falas atribuídas. Portanto, é como se o “walk and talk” tivesse dado lugar a um… “Stand and talk.”
Dá-me mais sound bites: dirias que o Sorkin-realizador é pouco indicado para filmar o Sorkin-argumentista? Diria que isso é uma afirmação desmentível pelos seus dois filmes anteriores. Como por exemplo? Molly’s Game (Jogo da Alta-Roda, 2017): o blocking e o modo como este transmitia uma relação de poder e conflito entre as personagens. É tudo? Não. Havia também o uso activo da montagem, com cada corte a conferir às imagens uma musicalidade emocionalmente sintonizada com a cadência e conteúdo de cada diálogo. O resultado? Autênticos combates de pugilismo retórico que não esqueciam o cinema. E aquele filme com o Borat? Montagem outra vez e a maneira como alternava os relatos nos tribunais com a exposição efectiva dos confrontos dos activistas com as forças policiais, construindo uma tensão dramática em crescendo.
Resume-me em que é que Being the Ricardos é diferente. A montagem não tem essa construção de tensão pelo ritmo musical encontrado na duração de cada plano, e a sobreposição das várias cronologias parece mais confusa do que narrativamente orgânica. Tudo isto para dizer…? Sorkin não soube dar peso cinemático às suas palavras, nem pela realização nem pela montagem, caindo redondamente na armadilha a que se tinha esquivado até aqui: a do filme de argumentista. A qualidade do argumento não é suficiente para compensar as outras debilidades? É talvez o guião mais disperso já escrito por ele. Quão disperso? A histeria anti-comunista dos anos cinquenta, a força criativa de um casal, a inteligência artística feminina diante um sistema patriarcal, tudo isto são ingredientes no caldeirão da sopa da pedra insulsa que Sorkin dá a provar. Nunca provei sopa da pedra. Falta o elemento unificador que ajude a mistura heterogénea dos seus ingredientes a caminharem na direcção de um único sabor coeso. Larga as metáforas culinárias, Ljubomir. O argumento de Being the Ricardos poderia ser melhor se tivesse mais tempo ou menos coisas a acontecerem. Não se verificando nenhum dos casos, sente-se um filme que tenta ir para todos os lados sem chegar a um sítio concreto. Soa a um paradoxo de argumentista: a partir de certo ponto, quanto mais se acrescenta, menos acaba por ser dito. E com esse equilíbrio em falta, entre o que Sorkin quer efectivamente dizer e os meios narrativos para alcançá-lo, a impressão com que se fica é que o resultado final é menos um filme do que uma série condensada num especial de 2 horas.
[Param. Uma breve pausa, à medida que João olha nos olhos de Duarte. O ambiente criado deixa a audiência adivinhar que vem aí pep talk da boa.]
Deixa-me dizer-te uma coisa: um rapaz recebeu no seu 14º aniversário um cavalo, e todos na aldeia disseram, “Que maravilhoso! O rapaz recebeu um cavalo!” E o mestre Zen disse, “Veremos.” Dois anos depois, o miúdo caiu do cavalo, partiu uma perna, e todos na aldeia disseram, “Que tristeza!” E o mestre Zen disse, “Veremos.” Pouco tempo depois, começou a guerra, todos os jovens tiveram que partir para combate excepto o rapaz por causa da perna. E todos na aldeia disseram, “Que maravilhoso!” E o mestre Zen disse... “Veremos”, sim. Qual é o teu ponto? Que com as carreiras dos artistas é a mesma coisa. Têm os seus altos, têm os seus baixos, e tudo o que temos de fazer é esperar para ver o que vem a seguir. Isso foi um pouco aleatório e um tanto forçado. Talvez. Mas já tens o teu texto. Como assim?
[João tira do bolso direito algo. É revelado que o objecto rectangular era um GRAVADOR que esteve ligado o tempo inteiro. Dá-o a Duarte e solta um sorriso amistoso. Dá meia-volta e vai-se embora por entre a equipa do À Pala, enquanto Duarte olha admirado para ele e o tema de The West Wing (Os Homens do Presidente, 1999-2006) começa.]
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