A 15 de Julho de 2012, o À pala de Walsh iniciava a actividade com um primeiro texto, escrito a oito mãos, pelos quatro fundadores do site. Entretanto passou uma década. Ao longo desses anos muitos foram os que escreveram connosco e publicámos mais de 2700 artigos, críticas, ensaios, textos coletivos, entrevistas, vídeos, conversas, ensaios visuais, crónicas e outras brincadeiras cinéfilas.
Depois de em Julho de 2022 termos apresentado o ciclo “10 anos à Pala” na Cinemateca Portuguesa, com 5 sessões seguidas de uma conversa sobre os filmes, apresentamos agora perto do final do ano uma outra iniciativa: o dossier “10 anos, 10 filmes”. Este dossier parte de um convite a um conjunto de realizadores portugueses cuja obra prezamos para nos ajudar a reflectir sobre o que foi esse cinema que por nós passou nos últimos 10 anos, através da escolha de um filme – que os tivesse surpreendido de alguma forma – e estreado durante esse período, acompanhado de uma pequena reflexão sobre essa escolha.
Hoje apresentamos a escolha de Miguel Gomes, realizador de Aquele Querido Mês de Agosto (2008), Tabu (2012), As Mil e Uma Noites (2015), e Diários de Otsoga (2021), entre outros.
Quando nasceu o À pala de Walsh, em 2012, andava desconfiado de que ver cinema já não
me interessava. Gostava de muito poucos filmes. Hollywood parecia-me definitivamente
moribunda; o cinema popular uma assombração perdida no novo século. Quanto ao “cinema de
autor”, ronronava ao colo dos decisores das comissões de financiamento que lhe haviam
imposto um pesado caderno de encargos de onde estavam excluídas a perturbação, a vertigem
e a aventura. Os produtores tinham convertido-se em especialistas de calendários de
concursos e os realizadores em especialistas de pitching. Passaram dez anos e não creio que
as coisas tenham melhorado.
Desanimado, há uns quatro ou cinco anos decidi por a minha cinefilia à prova. Regressei em
força à cinemateca. Voltei a ler sobre cinema. O fecho das salas durante a pandemia fez-me
compreender, pela primeira vez, que ficaria muito triste se me dissessem que nunca mais
voltaria a realizar um filme, mas ainda mais triste ficava se me dissessem que não voltaria a
entrar numa sala de cinema. Para ver filmes mudos, filmes dos anos 30, dos anos 50, dos anos
70… Ou cinema contemporâneo, apesar de tudo. Tudo quer dizer isto: a convicção de que o
lugar do espectador na esmagadora maioria dos filmes feitos hoje é um espaço mais estanque,
mais pré-determinado, atravessado por menos tensões e ambiguidades e consequentemente
mais seguro, bastante mais controlador e sobretudo muito mais conformista e irrelevante do
que o lugar do espectador na esmagadora maioria de filmes de décadas anteriores.
Quando nasceu o À Pala de Walsh, ainda não tinha visto nada de Hong Sang-soo. Foi a
Maureen quem me mostrou os seus filmes. O equilíbrio entre uma ostensiva geometria formal e
narrativa (com repetições, variações, rimas) e aquilo que poderemos chamar de aleatório, não
tem equivalente com nada (que eu conheça) no cinema. Nem com Rohmer, nem com Ozu.
Talvez Renoir seja quem mais se aproxima, por ser o patrono dos caprichosos…
Ser espectador do cinema de Sang-soo é quase sempre aventuroso, vertiginoso e perturbante.
Apesar de haver quem diga que os seus filmes são sempre a mesma coisa, o lugar que o
espectador ocupa dentro deles é sempre diferente. Um dos últimos, Inteurodeoksyeon (Apresentação, 2021) aparenta ser um dos mais modestos. Mas lanço o desafio: que alguém me diga se conhece em toda a História do cinema elipses mais abissais do que aquelas. Tão abissais que lá dentro cabem muitos outros filmes ou possibilidades de filmes; e quando aos não ditos se somam os não vistos, as emoções das personagens acumulam a força catártica da nossa imaginação. Em suma, uma brutalidade. Como antídoto ao cinema de autor(idade) contemporâneo, Sang-soo devolve o cinema ao espectador. Pela minha parte, agradeço-lhe muito.
E aproveito a ocasião para desejar mais dez anos de vida a À pala de Walsh.
Miguel Gomes