A 15 de Julho de 2012, o À pala de Walsh iniciava a actividade com um primeiro texto, escrito a oito mãos, pelos quatro fundadores do site. Entretanto passou uma década. Ao longo desses anos muitos foram os que escreveram connosco e publicámos mais de 2700 artigos, críticas, ensaios, textos coletivos, entrevistas, vídeos, conversas, ensaios visuais, crónicas e outras brincadeiras cinéfilas.
Depois de em Julho de 2022 termos apresentado o ciclo “10 anos à Pala” na Cinemateca Portuguesa, com 5 sessões seguidas de uma conversa sobre os filmes, apresentamos agora perto do final do ano uma outra iniciativa: o dossier “10 anos, 10 filmes”. Este dossier parte de um convite a um conjunto de realizadores portugueses cuja obra prezamos para nos ajudar a reflectir sobre o que foi esse cinema que por nós passou nos últimos 10 anos, através da escolha de um filme – que os tivesse surpreendido de alguma forma – e estreado durante esse período, acompanhado de uma pequena reflexão sobre essa escolha.
Hoje apresentamos a escolha de Rita Azevedo Gomes, realizadora de O Som da Terra a Tremer (1990), Frágil Como o Mundo (2001), A Vingança de Uma Mulher (2012), Correspondências (2016), A Portuguesa (2018), e O Trio em Mi Bemol (2022), entre outros.
I
Filme circular, e sempre vítreo. Nasce na superfície das águas do porto, finda sobre as águas rosadas rentes ao amanhecer da cidade.
Ele veio da Síria para Helsínquia – Khaled, seu nome – na esperança de abrigo e de salvação. Ergue-se do fundo do carvão, do fundo da guerra, do pó negro da clandestinidade, enterrado no porão do navio que o traria de viagem. Perdera-se Europa dentro, saltou muitas fronteiras; na sombra percorreu países e países à procura da única irmã que sobrevivera aos bombardeamentos.
O outro é negociante, Waldemar Wikström; o homem das camisas. A mulher bebe. Pousa a chave e a aliança no tampo da mesa, vira costas à mulher, sai sem uma palavra.
Em O outro lado da esperança, todos apostam tudo! – tanto no jogo, como na vida. I play / or I die, diz a canção.
E Kaurismaki joga tudo no prodígio das imagens que transmutam a realidade para a luz cinematográfica, para a cor. Rostos humanos tangentes à vida, e tangentes à representação da vida. Olhares glaucos, suspensos, sem linha de drama; profundos de tragédia. E humor!
Um homem deixa a mulher e parte para outra vida. Outro homem, exausto, sujo-negro-de-carvão, desembarca na cidade. O destino marcou-lhes encontro nessa mesma noite – só eles o não sabem – nessa mesma cidade, Helsínquia, onde se anseia por terras longínquas – Mexico City para beber saké e dançar a Hula-hula – (Kati Outinen!!!), enquanto se negoceiam remessas e remessas de camisas; a luz nos colarinhos (Timo Salminen!!!) como se coleiras fossem.
Nos últimos anos, os vencedores de festivais são muitas vezes galardoados mais por questões de temática política do que, propriamente, por mérito estético. O realismo transfigurado de Aki Kaurismaki surpreendeu-me em ambos os aspectos. Tenho essa memória.
II
Corredores da polícia. O paradoxo dos inquéritos. Na cela dos serviços de acolhimento: não há janelas – Da Síria? Eu venho do Iraque.
O cigarro trocado, como quem respira. A aliança estabelece-se para além da separação. Para além da noite, do sono sem saber o que esperar, quanto esperar?
Enquanto o homem das camisas vende o negócio, numa sala verde; um peixe opaco pintado num quadro ao fundo. O jogo clandestino – joga-se tudo ou nada! – álcool, fumo prateado de charutos. Nunca uma mesa de jogo fora assim filmada, por dentro dos jogadores. O combate final, o dia irrompe. I play, or I die / don´t wonder why / If I’m lucky / This business works! Abre logo novo negócio, um restaurante comprado com o dinheiro do jogo.
Pode dizer-se muita coisa. Evocar Paula Rego (que talvez Kaurismäki nem saiba quem é), falar de Ozu, Fassbinder, e mesmo Lubitsch, digo eu, ou Renoir ou até Bergman. De facto nada diz nada enquanto não se puder olhar de frente, como nos olham os seres da criação de Aki Kaurismäki.
Eu quero mudar o mundo. “O que quero mostrar às três pessoas que forem ver este filme é que hoje são outros, mas amanhã podem ser eles”.
III
O homem que deixou a mulher sem uma palavra, mete-se no carro; atulhado de camisas. O tipo coberto de pó de carvão da cabeça aos pés, sai-lhe à frente do carro num viaduto; não se vê ninguém. Confrontam-se, perscrutam-se, um momento. Depois cada um segue caminho. Não há uma uma palavra dita nos cerca de oito minutos de filme decorridos até aqui, a primeira voz que se ouve chega numa canção:
Oh Mother, mother / Turn up the lamplight / I’ll soon be dead / Leave this gang behind / Please buy me a fine white suite too wear / For soon I’ll be sleeping / In the cold, dead ground.
Filme circular, de Aliança, de despedida; saudade? Os momentos mais difíceis, dolorosos, são sempre, como na vida, momentos de perfeição. A aliança de ouro que a mulher no início fez cair entre as beatas do cinzeiro, reaparece no final, como ela, como por milagre, pendurada ao peito. E fecha-se o círculo deste filme tão circular feito de águas, distância, incerteza e de aliança humana. E tinha razão Aki Kaurismäki em 2017, os outros somos nós.
Na despedida do seu muito amigo, Peter von Bagh, assim nos falou Aki Kaurismäki da aliança da saudade. E o cão repudiado volta para nos acariciar na morte.
Rita Azevedo Gomes