Depois das filmagens, depois dos filmes, depois das imagens, a euforia do acto criativo desagua num magma de progressiva serenidade, sob a banda sonora de uma inaudível (mas hipersensível) radiação fóssil. O mundo revela-se/ desperta momentaneamente diante do olho (e do ouvido) do nosso cinematógrafo interior.
Em Devotional Cinema, Nathaniel Dorsky descreve o momento seminal em que, aos 9 anos de idade, descobriu o poder do cinema. Antes de invocar os filmes que o marcaram, o cineasta descreve situações em que se sentiu sob o efeito de uma “experiência pós-fílmica”. Para Dorsky, o poder do cinema manifestou-se, em primeiro lugar, através dos seus efeitos metabólicos, isto é, da maneira como a experiência fílmica se prolongou numa mundivisão psicofisiologicamente alterada. Sobre o pós-visionamento, feito mais tarde, de Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954), conta o seguinte:
“Depois do filme, os espectadores desceram juntos no elevador que dava acesso à rua e eu reparei que todos estavam estranhamente disponíveis uns para os outros. Havia pessoas com lágrimas nos olhos. Normalmente, o tempo de uma viagem de elevador é um tempo ‘nulo’. Ora nos distraímos com números dos pisos que se vão alterando ora desviamos olhar uns dos outros, procurando escapar à intimidade da situação. Esperamos simplesmente que este tempo ‘nulo’ termine para podermos continuar com as nossas vidas. Mas, neste caso, após o filme, toda a gente estava completamente acessível e vulnerável, um grupo de estranhos olhava-se entre si dentro de um perímetro íntimo.”
Nas páginas seguintes desse belo livro, Dorsky tenta argumentar que o cinema que lhe interessa (nos filmes que vê e, presumivelmente, nos que deseja fazer) é capaz de produzir um efeito “curativo”, semelhante a uma experiência religiosa. No entanto, o autor não volta a focar a especificidade da esfera íntima e fugaz em que o efeito “pós-fílmico” ocorre. O elevador, enquanto espaço-tempo de comunhão transcendental, metaforiza assim uma ante(e pós)câmara ascensional até à sala de projecção e, simultaneamente, uma forma descente de retorno à realidade – um entretanto, uma deslocação mística e material entre o céu e a terra, uma queda com a duração de um fósforo, na qual se escuta o murmúrio de uma alteração profunda, enfim, um cenário de alteridade radical.
A viagem “no elevador” após a experiência fílmica demarca o espaço de tempo em que a nossa subjectividade humana se confunde com a objectiva maquinal da câmara de filmar, confusão na qual objectos e sujeitos habitam (voltam a habitar?) em reciprocidade. Ali, após o filme, o Eu transforma-se em Nós; o diálogo devém canto mudo e o movimento vertical suspende o trânsito horizontal e o tempo cronológico do mundo. Vive-se em cumplicidade uma experiência alternativa (um intervalo) da realidade física, sem a concorrência da racionalidade ou de um código (uma conduta) exterior.
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Todos os anos, no final do semestre, numa das disciplinas que lecciono, escolho dois ou três filmes para mostrar. A ideia é que esses filmes contenham pistas de releitura do que antes foi sendo apresentado e discutido. Mas é sobretudo necessário que essa retrospectiva crítica aconteça a partir de um encontro, um embate corpo-a-corpo, com um objecto fílmico capaz de se revelar como um Outro (um Tu) na realidade do ecrã. Nesses visionamentos encenados, somos Nós os filmados: os filmes olham-nos de volta, interpelando-nos e convocando uma conversa sobre cinema (sobre a vida) que estamos, ou não, preparados para ter.
Neste último ano, não estava preparado para o que aí vinha.
Após a projecção, o silêncio final dos créditos prolongou-se no silêncio da sala. Acendi as luzes, olhei de volta a turma. Arrepiado, embora não inteiramente surpreendido, vi mais de metade dos rostos lavados em lágrimas. Melhor seria dizer: ninguém estava em si mesmo.
Experimentei na pele a tese de todos os grandes filmes que dão atenção exclusiva ao rosto e percebi, finalmente, que o efeito Kuleshov, mais que uma curiosa experiência de montagem, é afinal a mais potente teoria do espectador (uma hipótese “pós-fílmica”). Foram cineastas soviéticos quem primeiro vislumbrou o potencial de transformação social que só a absorção do Eu no (pelo) cinema possibilita. Procurando entender a longevidade conceptual deste termo, Richard Rushton chamou a atenção para a distinção deleuziana entre absorção e imersão: se a imersão “é uma certa recusa de sair de si mesmo, uma recusa do êxtase, uma negação da possibilidade de se tornar outro”, então, “uma das possibilidades da absorção é a de ser outro ser”, uma maneira de “se tornar diferente do que se é, de ser alguém (ou alguma coisa) outra”. Rushton remata: “Deleuze lança um desafio extraordinário e arriscado: perdermos o controlo sobre nós próprios, desfazermo-nos, esquecermo-nos de nós mesmos diante do ecrã”.
O que testemunhei no final daquela aula, depois dessa projecção, foi a revelação à superfície de uma nova série de cineastas – um conjunto de rostos fora-de-série, isto é, deslocados de qualquer linha de montagem institucional. Após o filme, todos naquela sala estavam a ver (a filmar interiormente) a sua avó (o filme era sobre a relação entre uma cineasta e a sua avó) pela primeira vez, um ente familiar que, afinal, se (nos) revela em toda a sua alteridade e estranheza – um radical e absoluto Tu.
Primeira tese: mostrar um filme, mostrar verdadeiramente um filme, desejar que seja amado, é criar possibilidades para a experimentação de um momento de percepção, não aprisionada às leis ou condições biológicas e culturais que nos precedem. Depois da projecção, há que esperar uma breve não-conformação à realidade, tal como esta se apresenta e está condicionada aos nossos sentidos; há que admitir a possibilidade de libertação espiritual do “acorrentamento biológico” pré-determinado pelo nosso corpo (Levinas).
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Na semana passada, ao longo de três dias, presenciei de perto a realização colectiva de um pequeno filme (ou melhor, o vislumbre de um filme). O mote principal era pôr em prática uma ideia de cinema (um género) e lidar institucionalmente com as suas vicissitudes. O objectivo secreto era o de testar uma utopia através do acto de filmar em conjunto.
Não soube preparar o que aí vinha.
Ao terceiro dia, sem me dar conta, vi-me a ser absorvido por um outro e inesperado “filme”. Na sala de montagem, fui testemunhando uma possibilidade: criar (filmar, montar, projectar) em conjunto é (deve ser) permitir que a intenção singular se dissolva numa intuição colectiva. À medida que um Tu (um conjunto de imagens) se compunha, um Nós (um conjunto de figuras) ocupava afectivamente um espaço que ia servindo de caixa de ressonância para a beleza do acto de criação – “A beleza é a harmonia entre o acaso e o bem” (Weil). Pouco importa a qualidade do juízo ou a eficácia das soluções; quando se cria em conjunto, apenas têm valor os gestos de uma bem-intencionada intuição.
Ainda que ninguém soubesse o destino do filme, todos conheciam melhor, minuto a minuto, a natureza das imagens que tacteavam. Como no quadro As Mulheres Peneirando Trigo (1854-1855), de Gustave Courbet (à luz da leitura Michael Fried), a minha visão e audição foi sendo absorvida por uma nova realidade fílmica em directo, através dos gestos que a criavam. No final do dia, ao ver o resultado, senti-nos a ser projectados no auditório. Mais do que um exercício bem-sucedido ou por completar, um “vislumbre” fílmico revelou-nos um outro corpo que, frame a frame, se separava agora do nosso mundo (e vice-versa). Entre Nós e um Tu que nascia no ecrã, o êxtase da criação ia dando lugar ao lento reingresso no mundo de onde nos tínhamos escapulido nas últimas 72 horas.
Segunda tese: filmar em conjunto, é criar a possibilidade de dois novos conjuntos/ organismos virem ao mundo: um Nós e um Tu que desse Nós se separa. Aquém e além de qualquer programa estético ou pedagógico, a espiritualidade de uma produção de guerrilha (uma “escola perdida”, para citar a Carolina) concretiza-se num paradoxal e necessariamente efémero sentimento de religação-separação.
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Na Trafaria, ao longo dos próximos dois meses, iremos dar início a uma série de sessões daquilo que, descobrimos nós no entretanto, jamais será (porque jamais poderia ser) um filme. Projecção a projecção, partiremos (de) um conjunto (com múltiplas combinações possíveis) de dez “blocos de sensações” (Deleuze), cada qual correspondente a uma diferente zona (leia-se, uma experiência cartográfica subjectiva) do território.
Não sabemos (não podemos) preparar-nos para o que aí vem.
A ideia é criar um efeito de intermitência, que se assemelhe à experiência da própria vida. Também nós tentaremos, como afirmou Dorsky, mostrar que “é tudo mais intermitente do que muitas vezes queremos admitir. De certa forma, para que os filmes sejam verdadeiros, eles têm de confiar nesta intermitência”. Por outras palavras, trata-se de chamar os habitantes à laia de uma responsabilidade face ao fílmico “fill in the blanks”. Por outras palavras ainda, trata-se de convidar os corpos a pensar sobre o lugar em que vivem, adentrando nos buracos que, a partir das fissuras já existentes, nele escavámos (filmando) fundo.
“É uma felicidade não podermos saber nada de antemão” (Schopenhauer). Se o método é a verdade de cada um, então, o nosso método pressupõe um voluntário efeito de despedaçamento do objecto fílmico. Instalar uma metodologia cine-cartográfica naquele lugar foi a condição necessária para, no momento da projecção, poder partir no duplo sentido da palavra (fugir e despedaçar) as imagens, negando qualquer noção de totalidade. Doravante, serão o improviso e o acaso a estilhaçar o nosso estudo, a nossa escavação. A nossa verdade colectiva – o nosso Nós – não foi senão o pretexto para um posterior (mais um) mergulho na escuridão sideral.
Última tese: filmar (montar, projectar) é criar condições para pensar em conjunto. Uma estratégia para reunir, diante do ecrã (“O ecrã é o cérebro”, disse Deleuze), as pessoas que ainda não conhecemos, mas que poderão querer aventurar-se connosco na escuridão do mar nocturno.
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Toda a experiência fílmica é indissociável de uma atitude ética. E filmar, enquanto acto criativo, é a intensificação dessa condição, pois evidencia um choque moral com a realidade. Talvez desejar filmar, para além de todas as outras razões, tenha só que ver com a vontade de voltar a experimentar o momento originário e vertiginoso em que o mundo se nos revelou como um Tu.
Mas filmar, na verdade, pouco importa. Filmar (como montar, projectar, enfim, aprender a ver) é apenas uma forma de investigação moral sobre o nosso dever criativo no mundo – não um mundo potencialmente melhor, mas um mundo constituído de seres potencialmente melhores. Investigar significa escavar em profundidade essa possibilidade: descobrir um Nós no Eu, porque só em conjunto nos podemos tornar na melhor versão de nós próprios.
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Se, por um lado, estas crónicas têm sido uma maneira de tentar perceber como é que, através da prática de filmar, podemos elaborar um programa de reflexão sobre o cinema, por outro, têm sido uma maneira de tentar ultrapassar as imagens (e o momento do seu fabrico) em busca de um lugar pós-fílmico, um pequeno espaço-tempo de cumplicidade harmoniosa, espécie de recreio infantil, onde a vida se volta a fazer sentir como um puro aqui e agora, e o mundo (e a linguagem) se revela momentaneamente como algo por inventar.
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(aos participantes do 72 hour film project)