“Filmar é o choque da concretização. Podemos saber muitas coisas, mas, no dia em que pegamos numa câmara e temos de filmar, mil outras coisas aparecem” (José Manuel Costa). Foi por causa de alguns professores que passei a filmar com a consciência de que, filmando, estava de certo modo a iniciar uma conversa. Antes disso, não sabia que tinha algo para dizer. Esses professores, melhor seria chamar-lhes passadores, fizeram mais do que propor um exercício nas disciplinas que leccionaram, pois que filmar não era um exercício de avaliação pré-estipulado ou obrigatório. O que eles fizeram foi endereçar um convite para experimentarmos ser cineastas do filme (por filmar) da nossa vida.
Nesses casos, nunca se tratou de fazer um filme, mas antes perceber o que tínhamos para dizer através do gesto de filmar. O convite para filmarmos abriu-nos um mundo de conversas sem fim (à vista), um mundo de possibilidades desconhecidas dentro (e diante) de nós.
De algum modo, filmar é para muitos de nós o primeiro passo para sentir que pertencemos verdadeiramente ao filme da nossa vida; é a prática do ver que se prolonga como uma latência na nossa percepção. Depois de filmarmos (tal como depois de vermos certos filmes ou ficarmos emocionados com certas imagens em movimento), o nosso cinematógrafo interior começa a bombear, tal e qual um pulmão transplantado. Simultaneamente, ganhamos consciência de que estamos na vida sozinhos e acompanhados pelos que também filmam ou pelos que nunca souberam (ou ainda não sabem) que podem filmar.
Aquém de qualquer aparelho técnico necessário ou oriundo do “mundo dos filmes”, filmar significa que os nossos próprios olhos (e ouvidos) são um instrumento insuficiente de constatação de que estamos sozinhos na vida. Este é o princípio do diálogo interior que o cinema inicia em nós.
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Eis porque todos devíamos, pelo menos por uma vez, experimentar filmar: para possibilitar um novo horizonte de expectativas.
Se cada tomada de vista contém a promessa de algo por vir para além do encontro – uma conversa, uma amizade, um namoro –, é porque em cada plano tirado existe um novo filme em potência. Filmar é fazer planos (sem filmes); é tornar o futuro (o desconhecido) uma possibilidade filmável. Não se trata, então e ainda, da necessidade de estudar ou pensar em conjunto esse horizonte desconhecido. Filmar é um pouco como ligar a câmara para enquadrar um espaço vazio sem propósito pré-definido: esperar que algo aconteça, que algo ou alguém apareça.
De certo modo, responder ao desafio de simplesmente filmar é como responder aos conhecidos que nos convidam a estar presentes no seu casamento. Basta aparecer para testemunharmos uma ideia de futuro por concretizar. O cinema, ainda antes dos filmes, é a possibilidade de erguer um teatro de testemunhas em torno de “mil coisas que aparecem” face ao “choque da concretização”, ou seja, é criar condições para uma outra ideia de mundo. Nesse teatro, instala-se um espaço que pode ser impressionado pelo mundo em toda a sua potência oculta. A película da realidade revela uma camada de formas que a câmara (interior) das testemunhas impressiona através da sua visão – tal e qual como a abertura de uma fenda, uma porta entreaberta para uma divisão secreta, onde, diante de nós, se revela breve e fugazmente um Tu que aparece milagrosamente.
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Nas salas de cinema como na vida, receber um convite para estarmos presentes é um apelo à nossa própria exposição. Se aceitar estar presente é a condição do testemunho, é porque o mundo filmável para o qual fomos convidados precisa de nós (os filmadores) para se poder concretizar.
Os momentos em que melhor sabemos que estamos na vida são quando recebemos um convite para estar presentes. Percebemos se temos lugar na vida – na vida dos outros que também é a nossa – quando somos convidados a testemunhar (a projectar) uma mundivisão compartilhada.
(Há poucas coisas mais desvitalizantes do que verificarmos que estamos num mundo – um texto, um filme, um museu, uma festa, uma escola – para o qual não fomos ou não nos sentimos realmente convidados.)
Se o primeiro gesto do cinema (das filmagens às projecções) é um desvelamento, um convite à aproximação das imagens, é porque sabemos também que, inevitavelmente, voltará a haver um encobrimento do momento da relação (leia-se, do puro presente de que o cinema dá conta momentaneamente).
Para além do confuso jogo de reflexos no momento do encontro, só o diálogo (o falado e o mudo) nos permite pôr em cena os pedaços de vida que tirámos à própria vida no momento do testemunho. Através do olhar conjunto e diferido sobre essas imagens da vida, activa-se um tipo de momento religioso (uma re-ligação). Por sua vez, as imagens devêm palavras e com elas surge a possibilidade contemplativa de outro jogo reflexivo.
E, nas conversas que se prolongam para lá do momento em que as imagens aparecem, mais uma vez, não interessa se aparece realmente alguém; interessa a possibilidade dessa aparição.
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As cortinas do cinema (as das salas de projecção e as dos filmes) lembram-nos sempre que um ecrã é um ecrã, uma passagem concebida para um novo lugar, em que a vida, tal como a música, se começa a extinguir mal começa. O cinema faz um buraco nos muros que circunscrevem a nossa vida. Projectar, já o dissemos, é um buraco nas paredes, através do qual ventila o novo ar que somos convidados a respirar. O ecrã (do cinema) é o buraco através do qual podemos renascer do outro lado da vida ou desaparecer na escuridão.
Quando nos metemos num buraco fundo (leia-se, numa sala de cinema ou num local de filmagens), não sabemos qual será o fim, pois viver juntos é a única maneira de encarar a eventualidade de não encontrarmos a saída. De um ponto de vista moral, aceitar/ fazer um convite para ir ao cinema implica um desejo de caminhar em conjunto, até final do processo de exposição recíproca (a nossa e a das imagens que nascem diante de nós e nos olham de volta). Como tal, é preciso filmar (marcar presença diante de) cada imagem como se tivéssemos sido implicados, porque de facto o fomos, num novo horizonte.
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É certo que “não existe outra forma de arte mais próxima da vida do que o cinema” (Manoel de Oliveira, outro passador), mas quantas coisas cabem num enquadramento, numa cena, num filme? Quantas coisas cabem na vida?
Eis onde o cinema se parece finalmente com uma arte: se a vida se parece assim tanto com o cinema, é porque na vida tudo é possível, mas nem tudo cabe (nem tudo pode ser filmado) numa só vida. Se, filmando, desvelamos um mundo como quem abre uma cortina, a montagem é o momento em que esse desvelamento se revela consubstancial ao momento do seu fecho, pois, entre esses dois gestos, as coisas, as formas ganham um outro valor. Saber abrir-fechar a cortina revela a montagem (inerente a algumas filmagens, é certo) como potencialidade artística do cinema.
Portanto, filmar não é (não deve ser) senão a antevisão eufórica que antecede a linguagem, uma escuta sensível que precede a legibilidade e serenidade de outro espaço de reflexão, uma outra tipologia de câmara reflexiva necessariamente da ordem da significação. Montar, como tal, implica escolher conscientemente o que se deixa para trás, para ponderar (pesar, apreciar com madureza, estudar detidamente) o que está à frente. Implica saber porquê, como, quando e para quem montamos, isto é, implica saber, por nossa vez, quem queremos convidar para dentro de campo, e compreender a vida tal como a passámos a ver.
O cinema (a montagem) ajuda-nos a estudar a nossa vida, pois permite-nos perceber quem ficou para trás e quem está connosco no buraco onde entrámos em direcção ao desconhecido, sem fim (à vista).
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Na vida como no cinema, é preciso saber o que (ou quem) fica dentro ou de fora. O que fica de fora é o que não podemos (porque não sabemos ou não soubemos mais) filmar.
E, no entanto, só os finais são verdadeiramente infilmáveis. É por isso que, cada vez que revemos filmes que já vimos mil vezes, é como se não conhecêssemos o desfecho. Seria contraintuitivo se o fizéssemos: o fim é expressão da morte (a outra vida que não a nossa) que excede qualquer imaginação – a montagem, como nos ensinou Bresson, deve, por isso mesmo, culminar numa abertura à vida e não numa “morte”. Tal como nas últimas conversas (que não podíamos saber que eram as últimas) que tivemos com aqueles que um dia amámos, que connosco constituíram um Nós temporário, também o infilmável representa o que, entretanto ou desde sempre, ficou fora de campo na nossa vida sem o termos conseguido prever.
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Sempre que me convidaram a filmar (como quando me convidaram a ler, escrever, escutar, falar), enquadraram-me generosamente num ‘plano’, puseram-me em cena num filme falado, que não era o meu, mas que passou a ser.
A palavra é justamente a continuação do acto de fazer imagem por outros meios e vice-versa. Um convite para filmar aquilo que temos para dizer, ou para conversar sobre aquilo que os filmes nos dizem, é assim das mais benignas formas de reconhecimento da co-existência – é a definição ontológica de um plano de conjunto.
Face ao infilmável, àquilo que não podemos ou nunca seremos capazes de filmar, cada convite engendra um novo início, uma nova realidade feita de “mil coisas desconhecidas”, de mil e uma conversas sem fim (à vista).
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(aos que aceitaram o convite para filmar na Trafaria, aos que lá foram e aos que ainda lá irão assistir a uma projecção; e, por último, ao Luís, ao Ricardo, ao Carlos e ao João, por me terem convidado para esta conversa)