A Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema apresenta, ao longo de todo o mês de junho, um ciclo em torno da obra da dupla Regina Guimarães & Saguenail, no âmbito da rubrica “Realizadores Convidados”. Ao contrário de outras edições desta rubrica, em que os cineastas são desafiados a apresentar uma Carta Branca paralela à retrospetiva dos seus filmes, o casal Regina Guimarães e Saguenail resolveu entrecruzar as duas modalidades, apresentado os seus filmes sempre em diálogo com os filmes de outros cineastas, entre eles, alguns dos nomes maiores da história do cinema. O que daí resultou foi um conjunto de vinte sessões, onde se percorre uma parte significativa das suas obras (feitas individualmente e “a dois”) através de sucessivos exercícios de programação cruzada (convoca-se, entre outros, Otar Iosseliani, Helma Sanders-Brahms, Diogo Costa Amarante, Pier Paolo Pasolini, Serguei Paradjanov, António Reis, Manoel de Oliveira, Jean Renoir, Stan Brakhage, Jean Vigo, Abbas Kiarostami, Buster Keaton, Bert Haanstra ou Chantal Akerman).
Aproveitando esta que é – até hoje – a mais extensa retrospetiva da sua obra, os walshianos Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa resolveram organizar uma entrevista em formato de dicionário. Na verdade trata-se de uma espécie de contra-campo ao que se fizera há dois anos aquando de um programa semelhante em torno do trabalho do cineasta belga Boris Lehman. Este diálogo não é meramente casuístico, já que Boris Lehman e a dupla Regina Guimarães & Saguenail são amigos de longa data. Aliás, uma das entradas da entrevista-dicionário feita por Luís Mendonça a Lehman era dedicada ao casal portuense e, sobre eles, o cineasta nascido na Suíça dizia: “Não posso ser muito objectivo, é um encontro fundamental: pelo cinema, pela amizade, pela lealdade e pela inteligência. É isso… Na nossa vida, conhecemos algumas pessoas geniais, mas não muitas. Cinco ou seis são suficientes para uma vida. Tentamos não traí-las e amá-las o máximo possível.”
Assim, os dois walshianos, contando com o apoio inestimável de Inês Sapeta Dias (programadora da Cinemateca responsável pela organização do Ciclo e do catálogo que será editado nos próximos dias), organizaram uma lista com cerca de várias dezenas de palavras. Em simultâneo mas em salas separadas, Luís Mendonça sentou-se com Saguenail e Ricardo Vieira Lisboa sentou-se com Regina Guimarães. Nem todas as palavras ficaram na entrevista. Houve espaço para o improviso e também para a revisão. O que daqui resulta é um conjunto de 43 “conceitos” – palavras-chave – que permitem aceder a uma obra bicéfala que vem sendo desenvolvida há cerca de cinco décadas: um obra cinematográfica e videográfica, uma obra escrita (da poesia à crítica de cinema) e uma obra ligada à pedagogia e à dinamização cultural. Um mundo
Além de querermos reforçar o nosso agradecimento à Inês Sapeta Dias e, naturalmente, de enviar um cumprimento especial ao casal “dicionarizado”, gostaríamos ainda de saudar o apoio à transcrição das conversas prestado por Manuel Montenegro. Nada se faz – pelo menos bem – sem a melhor das companhias.

Abril
Regina Guimarães: Uma manhã cinzenta da qual tenho uma muito boa recordação.
Saguenail: Se é só “Abril”, as associações que vou fazer serão nitidamente diferentes do que se for “abril, Portugal”. Por exemplo, em francês, a minha avó gostava imenso de ditados: “En avril, ne te découvre pas d’un fil”. Quer dizer que abril é um mês incerto e, apesar de ser um prenúncio da primavera, é melhor ter algum cuidado. Se for cinema, a primeira coisa que me vem à cabeça é Iosseliani: Aprili (1961). Se for Portugal, foi o centro de muita, muita reflexão. Eu vim para Portugal por causa do 25 de Abril. Em 1974, no dia 26 de abril, estou a viver em Amesterdão, recebo um telegrama de camaradas bascos que viviam em Madrid a dizer-me: “Revolução em Portugal, vamos passar o 1.º de Maio a Lisboa. Estamos à tua espera até dia 30 de abril, às sete da tarde.” Cheguei já eram onze e tal da noite, tinham esperado até às nove e tinham ido.
De repente, por causa de Portugal, já não éramos sonhadores, era possível. Isso foi uma enorme alegria. Depois voltei para Amesterdão e, no ano seguinte, deixei Amesterdão a pé. Fui andando, demorei três meses até chegar a Madrid e esses dois amigos, o Jaime e a Ana, tinham sido “suicidados” durante o tempo da minha viagem. Também fui a Portugal para lhes prestar homenagem. Tudo a pé, no segundo dia após ter chegado ao Porto, conheci a Regina e…
Apesar de tudo, sobre abril, o meu pensamento fixou-se. O primeiro filme Mudas Mudanças (1980), em Portugal, foi escrito, provavelmente na noite de 26, a seguir ao 25 de Novembro: realmente “Abril” é possível, mas se a gente não avançar, pode desaparecer.
Amador
RG: Coisa amada.
S: Dentro das mais bonitas réplicas da história do Cinema, tenho a do Orson Welles, que, quando foi entrevistado por alguém que lhe chamou “profissional”, terá dito: “alto lá, alto lá, eu não sou ‘profissional’. Eu sou ‘amador’, porque na palavra ‘amador’, há o verbo ‘amar’ e não quero passar de amador”. E há outra extraordinária, essa aí dentro de um filme, no Limelight (Luzes da Ribalta, 1952) do Chaplin, onde, a dada altura, a sua personagem, Calvero, vai recomeçar a fazer o seu número numa espécie de espelunca e encontra um antigo produtor que lhe diz “Ah, você aqui, nesta espelunca? Um grande profissional como você”, ao que Calvero responde: “Alto lá, a vida é demasiado breve para alguma vez passarmos de amadores”. Dito pelo Chaplin é extraordinário.
Amarante
RG: Em grego quer dizer “que nunca murcha”. É também o nome da minha filha. É igualmente o nome de uma cidade onde passei longos períodos da minha infância, na casa que foi o grande antro do Teixeira de Pascoaes. Tenho muitas recordações desse sítio. Às vezes até tenho medo de lá voltar. Não se deve regressar aos lugares onde se foi feliz.
S: Se a minha filha se chama Amarante, não é por causa da cidade. É, em parte, por causa da origem da palavra, que quer dizer “que nunca murcha”, e designa um certo tipo de flores, mas na minha cabeça era “Alma errante”, “âme errante”. Depois, para meu grande desgosto, descobri que, no século XVIII, para os uniformes militares especificavam que o vermelho tinha de ser “amarante”. Que uma cor tão bonita seja utilizada para estes fins…
Americano (Cinema)
RG: Sempre político, mas deixando sempre a desejar do ponto de vista da análise política.
S: Então, por um lado, digo sempre que há uma espécie de recusa básica da minha parte de tudo o que vem da América. Eu não como batatas, não bebo coca-cola, deixei o tabaco e o cinema que prefiro não é de Hollywood, de certeza absoluta. Depois, o cinema americano, como todas as coisas, tem do melhor e do pior. Geralmente o melhor é independente ou um pouco fora do circuito. O pior, hoje em dia, domina pela televisão, pelas séries. Considero que o cinema estagnou. Quer dizer, não saímos das lamechices, quer dizer, das séries… O Fantômas (1913) já era uma série. O que se perdeu foi algum sentido de humor, que havia na altura.
Ângelo de Sousa
RG: Um imenso pintor minimalista. Ensinou-me quase tudo o que penso poeticamente, não como pintora mas como pessoa com miolos, sobre as transparências, os casamentos das camadas e a densidade do mundo que é feito de muitos véus.
Caderno
RG: É um objeto que me é muito próximo. Ando sempre a escrever em cadernos e preciso sempre de ter vários à mão: alguns inúteis, outros inacabados. Por isso mesmo, foi o nome que acabei por encontrar para nomear os meus livros e as pequenas curtas-metragens – ou às vezes menos curtas – que faço em suporte vídeo. Não são diários de bordo e têm em comum com os livros o facto de que eu não escrevo poesia, escrevo poemas. A minha grande ambição é que as pessoas leiam um poema meu de vez em quando. Abram um livro ao calhas e… Esse é o “método” de ler a minha poesia. Os cadernos [videográficos] funcionam um pouco do mesmo modo, não são bem filmes, não são diários de bordo, nem tampouco diários íntimos – nada disso – é uma coleção de emoções que consegui filmar (ora porque há outras tantas que são infilmáveis, ora porque eu não sou suficientemente talentosa para filmar as restantes). Não são exaustivos. Não são completos. É apontamento após apontamento.

Cineclube
RG: Não gosto da palavra “clube”. Remete logo para acessos restritos, para pessoas que fumam cachimbos ou charutos cubanos em poltronas. Mas o cineclube é uma estrutura que ajudou o cinema a existir como criação artística e a criar um público para essa criação. Saber se essa forma – e essa fórmula – ainda é o que que mais convém à divulgação do cinema pode gerar uma grande discussão. De qualquer modo, ainda não se inventou nada melhor. Isto porque as pessoas se reencontram – mesmo que não haja discussões, há sempre reencontros. Isso faz com que o cinema seja plenamente um espaço de reencontro de humanos e, logo, um espaço de reencontro de filmes.
S: O cineclube foi a minha formação. Para mim, é fundamental e o que define o cineclube é a conversa à volta do filme, depois do filme. Inclusive, hoje, que dou um curso de crítica [no Batalha Centro de Cinema], aviso: a crítica antes do filme não é crítica, é publicidade. Só me interessa a crítica depois do filme e essa crítica, como diz o Ducasse, deve ser feita por todos.
Crítica
RG: É uma palavra que soa como os grilos, fechados nas gaiolas. Há pouca e faz falta. Muitas vezes confunde-se com propaganda (mais ou menos, camuflada). É um exercício para quem se interessa por objetos feitos por outrem, mas cujo trabalho pressupõe que antes de nos lançarmos em grandes elucubrações, há que perceber o que temos diante dos olhos e dos miolos. Aliás, mais do que perceber, há que percecionar. Isso, muitas vezes, falta à crítica. Acontece, em muitos textos críticos, não se perceber se o crítico está a falar sobre o objeto em análise ou se aproveita esse mesmo objeto para falar doutra coisa qualquer.
S: Voltando aos cineclubes, infelizmente a maioria deles passaram a ser cinema de reprise onde se consome aquilo que foi dado a consumir nas outras salas três semanas antes. “Crítica”? Para mim, é uma atividade obrigatória. Qualquer que seja a atividade, tem que conter também a sua crítica. Eu suponho que o próprio Marx concebia que a crítica devia pertencer ao desenvolvimento de qualquer atividade. O Brecht disse-o, de certeza absoluta.
Curta-metragem
RG: É um formato de que gosto imenso. Há pouco, estava a pensar precisamente nisso, a propósito de um texto que acabei de escrever. Gosto muito da “duração”, coisa que ao que parece ficou muito na moda em tempos recentes (não sei se entretanto já saiu de moda, porque perdi o fio à meada). Gosto de filmes longos que me obrigam a estar com eles durante muito tempo. Mas a minha maneira de sentir tem muito mais que ver com a curta-metragem. Talvez isso se relacione com a forma poética, mas creio que se relaciona muito mais com o modo como as minhas mãos se ligam ao cérebro: faço os meus filmes como quem faz um trabalho manual. No vídeo sinto-me uma pequena proletária, que aprendeu a pegar numa câmara e a fazer umas coisas. Como quem aprende a tricotar meias.
Ensino (do Cinema)
RG: O ensino do cinema devia ser muito alargado, porque o cinema convoca e põe em jogo muitas matérias. A primeira questão é “o que é que se ensina?”, mas também “o que é que se aprende?” e “como se aprende?”. Quando as pessoas se tornam adultas rapidamente esquecem-se de como aprenderam as coisas que se propõem ensinar, e isso é necessário a qualquer pessoa que se queira tornar professora. Acho que sempre fui uma professora medíocre, embora gostasse muito dos meus alunos. Sei, pelo contrário, que há pessoas que têm um enorme espírito de transmissão. De qualquer forma, o mais difícil é saber o que se deve ensinar. Porém, há que não ter a presunção que se pode ensinar alguém a ser artista, no máximo dá-se-lhe ferramentas. Existem, ainda assim, muitos tipos de ferramentas: há aquelas que têm que ver com o domínio da técnica, outras com o domínio do pensamento (sobre o cinema), outras com o domínio da história (do cinema), outras com o domínio da própria gramática (que o cinema foi construindo e desconstruindo ao longos dos tempos)…
S: Sinceramente, acho que só se ensina pela prática. E acho que o cinema devia ser uma ferramenta. A minha tese de doutoramento é sobre a utilização do cinema. Ele pode ser utilizado para qualquer matéria escolar, basicamente. E, se assim fosse, deixaria de haver um hiato entre a maioria dos espectadores e os filmes, porque eles saberiam como é que se fazem os filmes. Penso ainda que só alguns é que, depois, realmente irão querer continuar a criar pelo cinema. Por isso, sou absolutamente a favor do cinema como ferramenta. Agora, ensinar o cinema em si…. Eu fiz parte do projeto número 11 do Conselho da Europa, relativo à introdução do cinema como matéria de ensino. E faço parte dos que, digamos, “perderam”. O Toubiana fez parte dos que ganharam. Ele tinha atrás dele o mercado: os editores que já tinham preparado histórias do cinema com excertos de filmes, etc. Quando o que eu defendia era exatamente o contrário.
Errar
RG: Se o Cristóvão Colombo não tivesse errado não tinha chegado à América… Descobrir é aceitar o erro como ponto de partida. Nem de propósito, isso é algo fundamental para o ensino. A pedagogia mais eficiente é a pedagogia do erro. Disso não haja dúvidas. Desde que, claro, o erro não seja fustigado, isto é, desde que o erro seja considerado um caminho.
S: Errar é normal. Quem pensa que não erra é paranoico. Além disso, se a gente analisar um bocado a evolução das ideias, nomeadamente da ciência, é sempre graças a erros que se conseguiu avançar. Por isso, defendi, num texto que escrevi, que se devia praticar “erros sistemáticos”.
Escrita
S: A escrita é complicada para mim. Durante anos, podia escrever artigos, mas “a escrita criativa”, entre aspas, ainda para mais vivendo com uma poetisa como a Regina…, era quase uma impossibilidade. Os meus primeiros livros são compostos por uma dúzia de textos, de meia página cada um, e custaram-me um ano de trabalho cada, a escrever, a reescrever, a reescrever mais… Depois, aconteceu uma coisa. Depois da minha tentativa de suicídio, quando acordei do coma – foram 3 semanas de coma profundo –, não faço a menor ideia do porquê, mas tive vontade de escrever. Pedi, quando mal me aguentava nas pernas, uma caneta e um papel. E isso foi no final de 2004. De 2004 a 2019, escrevi e publiquei mais de cinquenta livros. Um desses meus livros chama-se Incontinência Verbal.

Espelho
RG: Tenho um bocado de medo de me ver ao espelho, sempre tive. Ao mesmo tempo, fascinam-me os fenómenos especulares, nomeadamente as montras das lojas. Gosto dos espelhos quando eles nos devolvem sombras, quando nos devolvem presenças fantasmáticas – que é o que nós somos e nas montras se expressa perfeitamente.
S: Não me diz grande coisa. Não tapo os espelhos, mas não passo muito tempo em frente a um espelho. Não me interrogo nem sobre mim, nem sobre a minha aparência. E o espelho é um dos motivos objetivos que faz com que não possa acreditar na “mestria”, entre aspas, e ainda menos na genialidade de um gajo como o Lynch, porque no The Elephant Man (O Homem Elefante, 1980), onde a premissa é que não pode haver espelhos porque o homem não pode saber com o que se parece, há um cenário onde, só por motivos estéticos, se filma com um espelho para se poder ver uma duplicação da imagem. Isso não se faz, isso é tomar o espectador por parvo.
Formalismo
RG: É uma atitude perante a expressão artística que produziu obras extraordinárias, e outras nem tanto. Uma coisa é certa, não existem conteúdos sem formas. Isso é muito óbvio em situações políticas desafiantes. Aí revela-se a maior ou menor dificuldade que cada um tem em dar forma a conteúdos que achamos candentes, insurgentes, eminentemente importantes. Nesses momentos compreende-se que a pesquisa formalista é muito importante, é quase um exercício prévio à expressão artística. Um homem como o Ângelo de Sousa era um formalista e não pode haver coisa mais lírica do que a obra dele.
Godard (Jean-Luc)
RG: Um dia o Saguenail disse que o Godard era o maior pintor do século XX e o Pedro Ludgero disse-lhe que ele deveria escrever um texto sobre isso. É porventura um modo particularmente interessante de olhar para a obra dele. O trabalho que ele desenvolveu em torno da cor e dos volumes é extraordinário – em particular no Adieu au langage (Adeus à Linguagem, 2014), com aquele 3D muito tosco. Ele faz do 3D uma coisa maravilhosa: as personagens estão a conversar mas não estão todas no mesmo plano. Essa solução foi das coisas mais bonitas que já vi sobre os problemas da incomunicação, nomeadamente os problemas da incomunicação amorosa. É um imenso artista, não vale a pena estar a repeti-lo. Mas há uma coisa que me enerva solenemente: o gosto pela citação levado ao mais extremo excesso, que se reveste de uma quase arrogância de classe. Ele é – a dada altura – muito revolucionário, mas nunca se dá ao trabalho de explicar o que está a dizer. Isso, por vezes, afasta-me um bocadinho dele.
S: Godard não é a minha única referência, mas é uma referência obrigatória. Não gosto de todos os seus filmes, especialmente quando o Godard faz de Godard, mas acho que é dos que nunca aplicam propriamente uma receita, e isso, para mim, é fundamental. Quando o encontrei, no meu período louco cinéfilo em Paris, eu tinha 14 anos, ele passou-me uma cópia de Le petit soldat (O Soldado das Sombras, 1963). Teve confiança num gajo do liceu! Deu a cópia de um filme que era proibido na altura [por causa das referências à Guerra da Argélia], para que o pudéssemos passar no cineclube do liceu. Na altura não havia redes sociais. O meu liceu era num subúrbio do norte de Paris e veio gente de todo o subúrbio parisiense. Tivemos de fazer cinco sessões nessa noite. Essa noite permitiu-nos angariar tanto dinheiro que, no final do ano, o cineclube tinha dado lucro e, com esse lucro, fiz o meu primeiro filme.
Gomes (Miguel)
S: Quando o conheci fazia curtas-metragens, parecia não se tomar a sério. Mais tarde, acho que passou a utilizar a ironia como um escudo para dizer disparates. “Não faz mal porque é irónico” e então, à pala da ironia, deixa entender que realmente esses gajos do “pimba” da província acreditam nas letras que cantam, são mesmo parolos. Acho que isso é de uma tal arrogância… Mas uma arrogância não óbvia. Depois das As Mil e uma Noites (2015), nem quero ver mais. Redemption (2013) é uma coisa miserável [põe a mão na testa].
Hélastre
RG: É uma palavra inventada pelo Saguenail e que contém duas partes “Hélas” – “infelizmente” ou, simplesmente, “ai” em português – e “astre” de “astro”. Foi uma coisa que ele escreveu no primeiro dia em nos conhecemos. Acabou por ser a palavra que adotámos para nomear o trabalho que fazemos, um, o outro, ou em conjunto. Quando fomos levados, pela necessidade, a fundar uma produtora, escolhemos obviamente a palavra Hélastre (porque já existia antes de existir).

Home Movie
S: Acho tão válido descobrir o mundo filmando-o como filmar só o espaço doméstico. A Chantal [Akerman] fez muitos home movies. O Boris [Lehman] não pára de viajar, mas praticamente só faz home movies também. A minha maneira de filmar a cidade do Porto é, também, de alguma forma, dentro do espírito do home movie. Expliquei ontem [na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema] que, para o Mourir Beaucoup (2004), não hesitei em tirar a janela do meu quarto para, através da mesma janela, reconhecível, poder filmar a Torre dos Clérigos, a ribeira, as Antas.
Ilusão (Grande)
RG: Fizemos uma revista chamada A Grande Ilusão, a partir do título do filme do Renoir. Tínhamos o pressentimento de que fazer uma revista de cinema, naquela altura [1984-1996], era já uma grandessíssima ilusão e que ficaria sempre muito aquém das esperanças que púnhamos no projeto. Exprime essa dupla noção de que precisamos de sonhar grande – não no sentido de grandioso, mas no sentido de nobre – e, ao mesmo tempo, ter a consciência de que tudo isso é insuficiente. Primeiro, porque são termos que remetem para a aparência. Segundo, porque não seremos capazes de chegar tão longe quando julgávamos, para não corrermos o risco de acharmos que já lá chegámos, quando ainda estamos muito longe de lá chegar. Mas a ilusão é das coisas que convém abraçar, como quando se abraça uma pessoa que se ama sabendo pouco quem ela é.
Imagem
RG: No sentido estrito ou no sentido lato? É que quando queremos falar da imagem em sentido lato, ao poucos percebemos a força do sentido estrito – isto, por exemplo, no plano do erótico. Para mim é muito difícil falar de imagem sem dizer coisas parvas. Sei que vivemos num mundo de imagens e que as pessoas estão pouco treinadas para as ler. Mas, ao mesmo tempo, muitas das imagens que se apresentam pedem para não ser lidas. Portanto, essa ideia da necessidade de alfabetizar as pessoas para as imagens talvez não seja assim tão pertinente como se imagina.
S: A imagem é a única coisa que podemos apreender, porque a realidade não fazemos a menor ideia do que é. Apenas esbarramos de vez em quando nela e não dá para a conhecer. Por isso, vivemos necessariamente na imagem, e o verdadeiro problema é ter consciência de que não passa de uma imagem e entender como funcionam as imagens. Para mim, o drama, hoje em dia, é que as pessoas vivem na imagem mas acham que a imagem é a realidade e é o mundo. Mas a imagem, em relação à realidade, tem um pequeno “mais”, porque a imagem tem sentido, coisa que quanto à realidade não fazemos a menor ideia.
Infância
RG: É um poço sem fim de infelicidade e felicidade. O que isso quer dizer é que o que de lá se traz é absolutamente determinante para a vida. Tenho a sensação de ter sido imensamente amada em criança, e isso torna-me multirresistente. De qualquer forma, a infância tem uma propriedade extraordinária: é que a gente reinventa-a a toda a hora. Ela é uma realidade constantemente reinventada, e reivindicada. Só que, ao contrário de tudo o resto que quando se reinventa perde intimidade, a infância reinventada nunca perde intimidade.
S: Disso não gosto muito de falar. Por um lado, acho que é a única idade séria. Acho que tornar-se adulto é aprender a fingir. Ao mesmo tempo, acho que não é uma idade feliz. Bom, talvez também por causa da minha própria infância. Quando o meu irmão nasceu, dois anos mais tarde do que eu, era “Jean qui rit et Serge qui pleure” ou “Jean qui rit et Serge qui boude”. Não sei se acredito nessa felicidade da infância.
Depois, quando fui professor primário, especializei-me em situações de fracasso escolar e só tive sucesso, mas fui saneado da educação nacional por causa do sucesso, pois o trabalho de um professor primário é reproduzir as desigualdades, não é apagá-las. De qualquer modo, isso deu-me a entender que, realmente, as pessoas, e sobretudo as crianças, são muito mais ricas e têm muitas mais possibilidades do que dão a ver à primeira vista.

Lehman (Boris)
RG: É um amigo muito antigo. Ia dizer que os amigos querem-se antigos, mas é uma parvoíce. Querem-se de todas as formas. Só que os amigos antigos têm uma coisa particular, é que seja na zanga ou na alegria, seja na proximidade ou na distância, há um fio que permanece, muito forte. Quando a amizade resiste às adversidades torna-se algo que nos ajuda a viver. Saber que o Boris está lá em Bruxelas, com o seu saco de plástico ou na Sibéria a fazer não sei o quê dá-me coragem.
S: Encontrámo-nos no Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz. Era um festival relativamente excecional. Houve outros assim, mas os que sobrevivem hoje já perderam essa componente. Na Figueira o pessoal podia continuar a discutir – e discutir acerrimamente – toda a noite. E o Padre Vieira Marques era um bocado louco, queria programar tudo e mais alguma coisa, e só sabíamos do programa na véspera, às vezes no próprio dia. Nesse ano, que foi em 80, ele tinha tantos, tantos filmes que tomou a iniciativa de programar dois de manhã. Ora, na Figueira, de manhã, não se viam filmes. Às 10h, passou o Magnum Begynasium Bruxellense (1978) do Boris Lehman. Estavam três espectadores. No segundo dia, passou o meu filme, Mudas Mudanças. Éramos os mesmo três espectadores. O Boris apresentou-se: “Sou o realizador do filme de ontem” e eu apresentei-me: “Sou o realizador do filme de hoje”. E nasceu uma amizade que ainda dura, quer dizer, acabei, em dezembro passado, de montar o mais recente filme do Boris.
Ao mesmo tempo, não seria capaz de fazer as coisas que ele fez… Já escrevi sobre os seus filmes, sobre as suas fotografias. Nem sei o que foi publicado ou não. Normalmente mando-lhe porque ele trata da sua própria promoção e isso é-me totalmente estranho. Mas é o meu amigo mais antigo.
Lisboa
RG: Foi uma cidade que só conheci verdadeiramente através de um portuense, o Paulo Rocha. Ele tinha uma imensa paixão por Lisboa e conhecia cantos, recantos, fontes e luzes e sombras no chão. Foi ele que me ensinou Lisboa, que me ensinou a ver os modos como a cidade se mostra, esconde e expressa.
S: Lisboa é, para mim, a cidade imperial. Portugal é o único país mais centralizado do que a França. Eu sou de Paris e até chegar a Portugal estava convencido que era impossível, porque em França tudo aparentemente se passa em Paris. Mas não, até porque, afinal, há coisas a acontecer em Lyon, em Montpellier, em Nantes, etc. Em Portugal, as coisas vão evoluindo, mas quando cheguei ao Porto praticamente não se fazia cinema. A última longa-metragem feita no Porto, quando eu faço o Mudas Mudanças, tinha sido A Costureirinha da Sé (1959). Até ao final do século passado, praticamente metade dos técnicos e realizadores portuenses foram alunos meus ou estagiários nos meus filmes. Criei o programa da primeira escola de cinema no Porto, que hoje se chama ESAP, mas na altura chamava-se Árvore. Fui eu que fiz o programa dos estudos de cinema, mas praticamente todos os alunos tiveram de ir para Lisboa para poderem trabalhar. Quer dizer que, para um jovem operador de câmara, por exemplo, poder trabalhar no Porto sem passar por Lisboa era quase impossível.
Não sou de Lisboa, não sou do circuito. Lisboa é um circuito fechado.
Maio
RG: É o nome do meu neto e o nome do mês em que a Primavera já está quase no Verão – e o Verão é a minha estação favorita. É um momento bom. E é também o mês em que se celebra a luta dos trabalhadores. Isso é, para mim, sentimentalmente muito forte. E lembro-me daquele primeiro 1.º de Maio, depois do 25 de Abril, o que me faz lembrar do dia 25 de Abril e da consciência de que estava a viver um momento irrepetível e incomparável.
S: Enquanto mês, nasci em maio, mas maio é, pelo menos na Europa, o segundo mês com mais nascimentos. Nove meses depois do pico do Verão, pronto, os casais ficam com calores [risos]. Maio, o provérbio. Falei do ditado em relação a abril e, em francês, é: “En mai, fais ce qu’il te plaît”. Então, maio é supostamente o mês agradável da estação, da disponibilidade. Depois, maio para mim está, obviamente, ligado a 68. Bom, o Maio de 68 é uma rutura na minha vida, mas tinha 13 anos, não entendi nada.
No dia dos meus anos o meu primo, que era estudante em Medicina, desafiou-me: “Ah, a minha prenda para o Saguenail é levá-lo para Paris”. Pronto, lá fomos a Paris e adorei: dormi na Sorbonne, havia a rádio pirata, a gente dormia nos corredores. Durante dois dias ajudei a construir barricadas, achei fantástico. No terceiro dia fui preso e, como era menor, a minha mãe teve de me ir buscar. Até aí, eu era ótimo aluno em todas as disciplinas. A partir daí, já não conseguia estar na escola, dificilmente conseguia estar em casa dos meus pais. Foram ainda dois anos, mas estava a rutura consumada. Por sorte, por grande sorte, em setembro de 68 descobri o cinema e isso orientou-me. Mas foi também graças a esse corte que foi o Maio de 68.

Mão
RG: Não é por acaso que as pessoas se interessam pelas linhas da mão. Gosto da ideia de pensar com as mãos, abertas, de olhar com as mãos, abertas. A mão é um elemento fundamental do corpo, está articulado com o cérebro, e pode-se ajudar a produzir coisas com alguma perícia. Falando mais uma vez de ensino: acho que a importância da mão tem perdido presença na maneira como as crianças são convidadas a crescer e a aprender. Confesso que tenho alguma dificuldade em não estar, permanentemente, a fazer alguma coisa com as mãos.
S: Quer dizer muitas coisas. É uma palavra com um espectro muito largo. “Mão” normalmente também tem uma conotação de “dar a mão”. Mas, nos anos 90, era o início da Internet e eu criei, não foi bem uma rede…, algo que se chamava “Externet”, cujo lema era “os amigos têm de se poder tocar”. Tem de haver exterioridade, tem de haver matéria. Sim, sou materialista, indubitavelmente, mesmo que não tenha nada contra o digital.
Montagem
RG: É a coisa mais bonita do cinema. É o cinema a pensar sobre si mesmo. Foi por causa da montagem que me imaginei pela primeira vez como alguém que também poderia experimentar o cinema. A montagem é uma coisa prazerosa, cujo desenvolvimento e devir depende da nossa aplicação, da nossa atenção e do nosso conhecimento da matéria.
S: É o que me interessa no cinema. A filmagem em si é uma prova, a coisa mais violenta que conheço. Estamos sempre a correr, o tempo passa três vezes mais depressa. Agora, na minha prática do cinema, a montagem já está feita quando estou a filmar. Inclusive, a Amarante [Abramovici] já notou isso, uma vez, num filme onde era assistente e onde ela viu que eu tinha feito no guião uma pré-minutagem. No fim do filme, quando ela viu o filme projetado, pediu para ver isso em pormenor e foi ter comigo a dizer: “não acredito, a margem de erro que deixaste é de 10 segundos!”.
Morte
S: Não me mete medo. Acho que o valor da vida é ligado ao facto de não ser ilimitada. Sou totalmente anti-Pascal. A mortalidade não é uma coisa de fugir. Ainda bem. Agora, já a tentei antecipar, porque não vejo o porquê de deixar à natureza essa iniciativa. O importante é, nesse tempo limitado, o que vamos transmitir. O importante é saber que vem outro depois de nós, e, por isso, morrer é deixar um lugar. Aliás, o Mourir Beaucoup, que foi o filme que fiz para tentar dizer aos meus próximos que me ia suicidar, foi dez meses antes de passar ao acto. O filme acaba com a gravidez da Amarante, que é exatamente essa transmissão.
Nudez
RG: A pele é um item mais difícil de pensar do que a nudez. Nunca ninguém me há-de conseguir explicar por que razão a nudez é proibida. É e será um grande mistério. Mas a pele carrega o peso do contacto. Ela é o nosso interface com o mundo e tem um poder de reação que não é – ou pelo menos assim me parece – racional: quando há repúdio, quando há medo, quando há extremo prazer físico (ou extremo prazer estético). A pele é o que está fora, mas é muito mais íntima que qualquer forma de nudez.
S: Não acho nada de especial, acho que, basicamente, se não andamos nus, é sempre por proibições geralmente de carácter religioso, e a religião faz parte das autoridades de dominação. Mas também a nudez só é valorizada por contraste com a obrigação de vestir. Quando filmei Acentuado Arrefecimento Nocturno (2013), onde as personagens de Adão, Eva, Abel e Caim tinham de estar nuas, rodámos em três dias, mas preparei durante semanas, meses até. Uma das coisas que quis foi criar o hábito de todos ensaiarmos nus. E isso incluía os atores. Não houve o menor atrito.
Oliveira (Manoel de)
RG: Quando ele morreu pensei numa coisa que era costume dizer-se quando fazíamos a revista A Grande Ilusão: não conseguíamos fazer números tão depressa como ele fazia filmes e, ao mesmo tempo, pensávamos “O que vai ser de nós quando ele deixar de fazer filmes?”. O cinema do Oliveira – principalmente depois do 25 de Abril, embora haja filmes anteriores, como Acto da Primavera (1963) e A Caça (1964), que eu muito aprecio – esteve na orla da minha vida, foi-me encorajando a interessar-me por um pensamento radicalmente diferente do meu, mas que se exprimiu livremente. Embora a palavra “livremente” seja traiçoeira, porque acho que o Manoel de Oliveira não era propriamente um cineasta que estivesse livre dos preconceitos da sociedade em que se inscrevia. Mas, ao mesmo tempo, dentro desse contexto, ele trabalhou livremente. Como os escritores que foram capazes de produzir obras verdadeiramente livres dentro da prisão. Não é por acaso que há tantas prisões na obra do Oliveira.
S: Tínhamos, acho eu, um imenso respeito um pelo outro. Acho, sem a menor dúvida, que foi o maior cineasta português. O Oliveira sabia tudo sobre cinema, mesmo. Vi isso durante a filmagem do Inquietude (1998). Acho que deve ser no segundo episódio. Ele filmou no Teatro S. João e, a dada altura, o Renato Berta [diretor de fotografia] disse: “Eu tenho umas lâmpadas um bocado fortes, era preciso ter lâmpadas menos potentes senão estragam a imagem”. Essas lâmpadas estavam ao pé do friso debaixo dos camarotes e o produtor imediatamente mandou dez assistentes para os supermercados e centros comercias das redondezas para as arranjar. Mas era um domingo. Passaram dez minutos e o Manoel de Oliveira disse: “não, não, eu quero filmar esse plano agora”. Ele conseguiu arranjar uma caneta de feltro, foi sozinho às lâmpadas, subiu para cima da balaustrada do camarote para chegar às lâmpadas e riscou-as com a caneta de feltro – uma, duas, três – e perguntou ao Renato: “Assim está bem?”. E o Renato: “Impecável!”
A primeira vez que encontro o Manoel de Oliveira, em setembro de 1975, graças a amigos do Cineclube, ele diz-me… A conversa foi sobre o Benilde (1975), e ele explicou-me exatamente o porquê da escolha do papel de parede, que tinha um significado, e, depois, falou-me do seu próximo filme, em 75, que seria o ‘Non’, ou A Vã Glória de Mandar (1990) que se materializou mais de uma década depois. A cada filme meu, em película, eu organizava na casa dos meus sogros uma projeção onde pedia emprestado um projetor de 16mm ao Instituto Francês. Punha na varanda e, através do vidro, projetava dentro da sala. O Manoel nunca, nunca perdeu uma destas sessões. Eu não era ninguém. Ele gostava de falar dos filmes, tinha essa formação de cineclube.

Paradjanov (Serguei)
RG: Quando for grande quero ser o Paradjanov [risos]. Há aqueles grandes murros no estômago que nos transformam. Em termos de cinema o Paradjanov teve esse efeito. O Sayat Nova (A Côr da Romã, 1969) é um filme que reúne uma data de qualidades que eu (da primeira vez que o vi) não estava à espera que o cinema fosse capaz de produzir: uma fraternidade transversal, um amor pelo detalhe, o fabrico das coisas em cima dos corpos… É um filme muito especial.
S: Quer dizer, eu gosto do Paradjanov, mas é o realizador que mais marcou a Regina por causa de uma postura completa e assumidamente poética. Nós fizemos-lhe a sua última entrevista, antes de ele morrer, porque veio ao Fantasporto como convidado. E o Dorminsky nem lhe dedicou a menor atenção, dele, por isso, fomos nós a levá-lo a passear pelo Porto. Lembro-me que a Regina lhe ofereceu uma diaba de barro e ele ofereceu-me umas meias. A mim que não uso meias. Umas meias de lã que ainda tenho guardadas preciosamente. Depois, o Paradjanov foi para Paris e aí acabou hospitalizado, tendo vindo a morrer. De qualquer modo, sinto mais admiração e mais proximidade com Tarkovski do que com Paradjanov.
Película
S: Tenho, obviamente, nostalgia. Sempre disse que quando tu te habituas a montar, a tua mão é mais certeira do que o teu olho. Agora, continuar a trabalhar com película hoje em dia, quando o uso da película trazia montes de problemas, acho que é fetichismo – fetichismo mal colocado, já que a película não garante (de longe) qualquer superioridade da imagem. Agora, a passagem da película para o digital é um problema, porque cada vez mais os aparelhos digitais são automatizados e, por exemplo, aumentam automaticamente o contraste, o que faz com que tudo fique mais escuro, porque os pretos ganham preponderância. O pior que vi a esse respeito, e foi o Acácio [de Almeida] que supervisionou, foi o Trás-os-Montes (1976) do António Reis, em que quase que não se vê o comboio. Eu chorei, chorei mesmo. Estava a ver o filme com o Rui Poças. Saímos os dois… até tivemos de nos agarrar um ao outro.
Pintura
S: É um trabalho sobre a imagem. Pode servir de referência, mas acho que não tem nada que ver com o cinema. Quer dizer, a pintura é uma coisa onde se tem de trabalhar separadamente cada cor, e trabalha-se o gesto da pincelada, coisa que no cinema não é verdade. Mesmo que faças movimentos de câmara não é a mesma coisa. Por isso, os meus maiores amigos são pintores. Estimo muito a pintura, mas é uma coisa externa. De vez em quando dou comigo a praticar a pintura, mas é como tirar férias.
Poesia
RG: Tenho alguma dificuldade em falar de poesia, de literatura e doutras palavras muito abrangentes. Eu escrevo poemas. É certo que eles depois são publicados nos tais cadernos, mas isso foi só uma forma que eu arranjei de publicar livros sem mentir demasiado. É que se eu chamasse àquilo livros seria uma espécie de embuste, uma impostura. Demoro muito tempo a escrever os meu poemas na cabeça, mas quando me sento para os pôr em palavras nunca tenho a tal angústia da página branca – nunca tive. Os meus filhos brincavam comigo e diziam “deixa-a lavar a louça, porque enquanto ela lava louça está a escrever poemas épicos” [risos]. Preciso de trabalhos pouco exigentes, como lavar a louça ou regar plantas, para ativar esse processo de articular pensamentos. Doutra forma teria muita dificuldade em sacar esses pensamentos das profundezas e em transformá-los em matéria verbal.
S: O pai do meu padrasto, isto é, o segundo marido da minha mãe, era um “poeta menor”, entre aspas, do movimento surrealista, mas fez-me conhecer a poesia dos maiores. Conhecer e apreciar. E depois encontrei a Regina. Por isso, a poesia é, diretamente ou indiretamente, a nossa única, verdadeira, safa, inclusive porque há outra safa mais acessível, que é o humor, e a poesia não é nada incompatível com o humor.
Porto
RG: Nasci na Cedofeita e moro no Bonfim, porventura bons presságios. Mas a cidade está muito modificada e – com os meus problemas de mobilidade – acontece-me regressar ao centro da cidade e não reconhecer nada. Há um lado fake na baixa. Não é só a questão da oferta de espaços da cidade ao turismo… Aliás, esse é um processo que já vem de longe, mas as pessoas só começaram a falar disso quando os filhos da burguesia começaram a ser afetados e deixaram de conseguir viver no centro. Quando os proletários foram expulsos e passaram a viver em bairros sociais e na periferia, ninguém se importou minimamente. Nessa altura, os problemas da habitação não estavam na boca dos que “lutam pelo bem comum”. Mas enquanto presença, não são os turistas que mais me afligem. O que me perturba são os espaços novos que procuram fazer-se passar por antigos e em que tudo condiz. O ton sur ton é a coisa que mais me põe os cabelos em pé. A cidade está a perder as suas rugosidades, as suas irregularidades. E isso era algo característico do Porto, daí o Barroco ter entrado com tanta força. Dá-me alguma tristeza, mas há quem goste de uma cidade que se parece com o corredor de um aeroporto. Muita gente estava muito entusiasmada com a possibilidade de ser turista dentro da sua própria cidade, de comprar sardinhas ao preço do caviar – pessoalmente chateia-me.
S: Já disse tantas coisas sobre o Porto nos meus filmes. Mas o Porto é uma cidade que, neste momento, está a mudar a uma tal velocidade… Está a mudar no pior sentido, porque, enquanto que a maior ameaça no resto do mundo, a dada altura, foi a “gentrificação” e a expulsão dos pobres, entretanto o povo apostou forte e feio numa coisa, que se chama turismo. Já fiz uma proposta, numa Assembleia Municipal, para se dar um subsídio aos habitantes do Porto enquanto figurantes, com prémio para aqueles que aceitassem vestir roupa típica.
Programar (Cinema)
RG: Pensar o que se vai mostrar às outras pessoas é uma coisa imensamente nobre. No caso do Saguenail, se há coisa que me comove na postura dele, é o empenho com que ele mostra o cinema dos outros – e dele também, dentro do possível. Esse é um dever de quem ama, verdadeiramente, o cinema. O problema é que hoje se instalaram palavras como “programação”, “curadoria”, “comissariado” e outras tantas expressões da polícia dos costumes. Esses intermediários – porque alegadamente mediam as obras e os artistas com os fruidores dessas obras –, essas personagens parece que têm mais importância e mais saber sobre as obras do que quem as fez. O problema está no facto de que os artistas sabem perfeitamente que não sabem nada do que andam a fazer. Os artistas têm perfeita noção de que noutro tempo e noutro lugar outras pessoas saberão mais do que eles andam a fazer, do que eles próprios quando cometem as suas obras. É por isso que fazem arte. Mas não precisam de professores… Transformar esse ato nobre do mostrar numa espécie de tecnocracia das artes – e depois chama-se cultura a tudo isto, o que é um disparate, porque a cultura prende-se com a herança, não com o trabalho no presente – é lamentável. E é uma atitude que está a ganhar cada vez mais terreno. A subserviência ao poder e à política do gosto passa muito pela subserviência a esses intermediários.
S: Fiz muita programação, continuo a fazer, continuo a animar aquilo que eu chamo de comunidades de espectadores, mas o importante é conversar depois dos visionamentos. Quer dizer que tanto vale programar um filme que quase toda a gente pensa já conhecer como programar um filme totalmente desconhecido. Debater é tão importante numa caso como no outro. Estabeleço linhas de programação. Mas normalmente as minhas programações estão abertas a sugestões de outros e gosto particularmente de descobrir filmes que não conheço.

Rascunho
RG: Viva o rascunho! No cinema não há direito ao rascunho, o que é uma grande injustiça. Tinha a esperança de que a arte digital viesse alterar isso, porque o digital é muito mais barato do que o cinema em película. Antes o direito ao erro pagava-se muito caro. O trabalho do rascunho é algo que deveria ser incentivado, logo ao nível do ensino do cinema. Não vejo por que razão se pede a um aluno de primeiro de ano de um curso de cinema que faça um filme com princípio, meio e fim – e nem sequer é como com o Jean-Luc Godard, em que o “princípio”, o “meio” e o “fim” não têm de estar, necessariamente, por essa ordem. Há, na escola, uma tentativa de perpetuação de estruturas ditas clássicas. Mas o que é clássico no cinema?
Regina
S: Não sei como definir. A natureza da relação evoluiu, mas… como é que eu hei-de dizer? Não penso em nada em que a Regina, presencialmente ou não, não participe. Até pode participar somente na minha cabeça. Dou um curso de crítica, ela não gosta de aulas e não participa no curso no Batalha, mas eu penso nela quando estou a falar com os alunos. Como é que hei-de dizer? Ela é, de alguma forma, aquilo que não consigo atingir. E o meu maior drama… Não é drama, o meu maior falhanço é: acho que não consegui trazer-lhe uma felicidade que me permita ser dispensado, que possa durar além de mim.
Rocha (Paulo)
RG: Era tudo menos uma rocha. Admirava muito os humanos que eram ao contrário dele. Ele era frágil e tinha uma paixão absoluta pela força heroica e mítica dos pescadores do Furadouro. Tenho saudades dessa forma de amor – nunca totalmente expressa – que pairava em tudo o que ele queria fazer. Tenho saudades dele. Era um excelente conversador e um mostrador de coisas: de demónios e deuses.
S: Enquanto que, com o Oliveira, tive conversas e visionamentos, com o Paulo não foi assim. O Paulo foi mesmo um amigo. Eu e a Regina temos uma retrospetiva agora [na Cinemateca], mas a retrospetiva anterior em Lisboa foi o Rui Simões que a organizou, no Chapitô. Foi muito menor, não tínhamos feito tantos filmes na altura, mas foi um flop completo. Na sessão com mais espectadores, tivemos 6 ao todo. E tivemos várias sessões só com 2 espectadores, mas esses espectadores vieram a todas as sessões. Um chamava-se Alberto Seixas Santos, o outro Paulo Rocha. O Paulo nunca deixou passar qualquer filme que fizéssemos. A dada altura, depois de O Rio do Ouro (1998), o Paulo disse: “O meu sonho é que o Saguenail produza o meu próximo filme” e eu respondi assim: “Mas eu sei como é que o Paulo trabalha e o Paulo não se adaptaria aos meus métodos de produção”. “Tem a certeza?”, ficou assim… Ele não se dava conta do que implicaria a minha maneira de organizar a produção.

Sabor
RG: O sabor e o cheiro transportam-nos muito rapidamente nas memórias. Por isso são muito preciosos. Mas, ao mesmo tempo, são sentidos muito desprezados. O sabor bruto das coisas e o cheiro bruto das coisas é repudiado e repelido. As pessoas preferem cheiro a fábrica do que cheiro a merda. É um exemplo estúpido, mas que para mim diz tudo.
S: Sabor, para mim, obviamente, vai estar ligado ao rio, porque a dada altura, uma amiga que trabalhava na Escola Agrária de Bragança tinha decido participar num congresso com as escolas agrárias de toda a Europa. Havia um pequeno financiamento para fazerem uma publicação ou de textos ou de fotografias. E ela, que nos conhece há muito tempo, disse-nos: “acho que deve dar para, talvez, uma semana ou duas de filmagem documental. Com uma equipa reduzida eu arranjo-vos alojamento e comida”. Eu disse: “qual é o tema?” e ela respondeu: “o tema seriam os recursos hidráulicos da terra fria”. Basicamente o rio Sabor. E eu disse: “sim, interessa-me a proposta, mas não me interessa o tema porque os recursos hidráulicos devem ser exatamente iguais por esse mundo fora, desde que a geografia seja parecida”. Fiz uma contraproposta: “tu tens um ano e picos para apresentar a coisa. Vamos organizar um circuito. Vamos filmar a evolução da terra, das lides, das festas, etc., ao longo do ano. Eu trato de montar para, na altura certa, teres o filme”. E o filme chamou-se Sabores (1999). Foi, na altura, um dos nossos filmes que mais circularam, porque a rede das escolas agrárias na Europa é considerável e o filme foi visto nesse circuito.
Saguenail
RG: Quer dizer “desajeitado” num dialecto do sudoeste francês, mas na verdade, nestes quase cinquenta anos de relação amorosa, a desairosa e desastrada sou eu. Como salientava o poeta preclaro, penso desde o início que para tão longo amor curta será a vida. Tão curta a vida e tão frouxa a arte de a viver…. Mas a presença indefectivelmente exigente do meu companheiro, do meu leitor em sua inquieta errância, e o sentimento de urgência que empurra para a acção têm-me ajudado a escutar o mundo de todas as maneiras, seja deixando-me ferir pelas palavras, seja participando nas estranhas festas dos sentidos – em todos os sentidos.
Underground
RG: Como “marginal”, underground é uma etiqueta. E é muito triste quando se colam certas etiquetas a uma pessoa – etiquetas que elas não escolheram. Os marginais têm de andar à procura de uma terceira margem, para que não fiquem atolados na marginalidade geral em que foram metidos. Quanto ao underground, há um processo de endeusamento e muitos artistas rotulam-se assim para tentarem justificar um trabalho que, muitas vezes, já foi feito antes e de formas muito mais violentas. Desconfio um bocadinho dessas classificações.
Vídeo
RG: É em vídeo que faço os meus cadernos. Não sei se estás à espera que faça algum comentário sobre a oposição entre vídeo e película… Claro que a luz é diferente num suporte ou noutro. Mas também já quase ninguém pinta em óleo e já ninguém faz frescos e caso a pintura venha a morrer não será por isso.
Zen
RG: Preocupa-me muito a massiva adesão ao pensamento Zen, porque é algo que coloca as pessoas inteiramente viradas para si, a achar que se estiverem bem consigo tudo o resto pouco ou nada importa. O mundo pode estar um caos de guerra e destruição e nada disso afeta as pessoas que “estão bem consigo”. Nada importa perante a sua boa consciência. É uma teoria muito boa para os guerreiros, e muito má para os viventes.