(…) nearly all of us have lost or relinquished
or else forgotten the paradise of a child’s perception,
when the world is so new and generous in its astonishments,
let alone the sweet, fruitful paradise of first love,
when the body itself becomes the garden.
Olivia Laing, The Garden Against Time
Some berries occur in sun,
but they are smaller.
It’s as I always told you:
the best ones grow in shadow.
Margaret Atwood, Blackberries
The best ones grow in shadow. A metáfora é clara e dispensa esclarecimentos. As amoras são as últimas a amadurecer, e por isso as últimas a ser colhidas dos seus ramos. Não são as mais vistosas nem as mais doces, e têm tendência a ser excluídas quando na presença de outras. São, de todas as bagas, as que deixam transparecer um quê de mansidão, a mansidão que, pela tonalidade mais escura e notas mais ácidas acompanha o simbolismo do luto interior e infindável com a dor, e a morte a quem dá a mão. São também as que estão vinculadas a superstições folclóricas, ou seja de alguma forma relacionadas com a crença no fado, numa forma de organização alimentada pela cultura popular, e no qual nunca nos é fornecido poder de decisão: a tradição, mesmo quando tocada pela modernidade.

Etero Gelbakhiani (Eka Chavleishvili), uma mulher de 48 anos, solteira, isolada e visivelmente deslocada do seu próprio corpo, é a mais autêntica representação do fruto. Se desconstruída, seria possível encontrar na aparente indiferença de que é feita a sua (necessária) muralha um portento de sofrimento e vulnerabilidade com a energia suficiente para engolir a total população da vila remota na Geórgia onde sempre viveu, e das expectativas tacanhas destas pessoas que a rodeiam, as que apenas conhecem os elementos circunstanciais da sua existência. Ninguém conhece Etero realmente, nem ela mesma. A rebeldia que dela sobressai numa muito desajeitada linguagem corporal, deixada ao abandono durante demasiado tempo, e a forma como se nega a explorar os maneirismos típicos de um lugar tão familiar e insular, terno mas frio, é a única coisa que a permite manter-se à superfície. Isso e o tempo passado como proprietária de uma loja de produtos domésticos e de beleza, o único espaço que funciona como extensão de si mesma, constantemente aberto ao melhoramento; à mudança. Aquela grua que precisa de uma grua, e onde a história de Etero entra finalmente em contacto com o corpo de um outro ser humano depois de esta se deparar com a visão da sua possível morte enquanto apanha umas amoras para fazer o tão habitual bolo e ver um melro que parece, através do seu voo, desencadear a queda de Etero de uma ravina. “Fiquei sem fôlego. Ele acordou-me. Fez-me sentir viva”, dirá à amiga Neno. O mesmo poderia dizer mais tarde do homem casado por quem se apaixona. E assim começa uma era de fome de desejo e de existencialismo.
Tal como a sua personagem principal, é obstinado e subversivo sem nunca deixar de ter os pés bem assentes na terra. (…) E salienta a juventude (ou seja, a esperança correctiva) de Elene Naveriani e a sua insistência em perscrutar os dentros e foras do crescer de uma mulher em terreno infértil. O filme é, na sua essência, sobre como este terreno consegue ser fertilizado mesmo quando as condições não são favoráveis.
É imediato o mergulho na confiante terceira longa-metragem de Elene Naveriani, adequadamente intitulada Shashvi shashvi maq’vali (Blackbird Blackbird Blackberry, 2023), que se estreou na secção Director’s Fortnight do Festival de Cannes em 2023 e continua o trabalho venoso de tão feminista de Naveriani, que depois de Me Mzis Skivi Var Dedamicaze (Um Raio de Sol na Terra, 2017) e Wet Sand (2021) tem vindo a contribuir, e cada vez de forma mais acentuada, para a mais recente onda arthouse do cinema georgiano. Transcendente de tão inventivo, seja através das vibrações turbulentas e estilísticas de Dea Kulumbegashvili, ou nas deambulações apaixonadas de Alexandre Koberidze, ou no lirismo jornalístico de Salomé Jashi – todos filmam com muita harmonia e maturidade, como se o cinema fosse a única forma existente para o contar das suas histórias -, Naveriani distingue-se nesta adaptação do romance de 2020 com o mesmo nome da escritora e activista georgiana Tamta Melashvili ao focar-se nas delícias romanescas do cinema-arquitectura por onde a sua heroína passa durante um desenrolar sinuoso desencadeado por dois momentos-chave que acendem o seu prazer em estar viva, potenciando a dor relacionada com esse acordar.

Ao seguir os passos orgânicos do que aconteceria se uma mulher inconformista mas adormecida, como Etero, tivesse enganado a morte, Naveriani dá o espaço e abertura necessários à sua personagem para falar sobre o que significa realmente ser uma mulher: da perda da virgindade, esse início de uma relação com a sexualidade do corpo, a vivência do primeiro amor e do empurrar de duas camas de solteiro num hotel, e a desolada rejeição dela quando esta força a perda de independência em direcção ao “final feliz”. Mas também a ameaça da menopausa (tendo em conta a sua meia-idade) ou, pior ainda, de um possível cancro nos ovários que a persegue (do qual a sua mãe faleceu, meses depois de a ter). Fazendo uso livre do brilho que faz o filme levitar sobre o tipo de solidão que vem a exemplificar, que nasce da opressão primeiro e depois se torna preferência, e sem precisar de se empenhar estilisticamente (basta a perceptiva e quase infantil performance de Chavleishvili), Naveriani segue uma lista de espaços abundantes, escuros e cobertos por sombras, fluorescentes de noite ou encadeados pelo sol-pêssego do dia, na representação fílmica do complexo mundo interior de Etero. Quando a deixa, certifica-se que esta fica num espaço onde todos os lugares podem (e devem) ser livremente ocupados.
Marcado por tons ameixa e lilás, diversos verdes, castanhos e terracotas das casas espaçosas mas enclausuradas pelos cortinados que tapam a luz natural que neles bate, e comparando-os à ravina onde Etero se refugia, é um filme de uma enorme gentileza e contemplação, que compreende tão bem o ritmo projectado durante o acordar sexual de uma mulher que, mesmo não abrindo mão dos seus desejos, já tinha aceite passar o resto dos seus dias sozinha. Tal como a sua personagem principal, é obstinado e subversivo sem nunca deixar de ter os pés bem assentes na terra. Entre o doce e o acre, Chavleishvili relembra mais do que uma vez, ao longo do filme, uma versão de Gelsomina com os seus olhos mergulhados por lágrimas que não caem, mas num contexto em que o próprio existir deste retrato de personagem se segue numa direcção que, independentemente do tom que poderia vir a adoptar, seria sempre frutífera e generativa. Por mais que se encha de símbolos, esses não precisam necessariamente de ser decifrados para o seu contar poder avançar. São mais momentos reflexivos, de uma certa beleza interpretativa (não é por acaso que Etero gosta de comer um mil folhas e acompanhá-lo com um galão), de um conforto ou desconforto que salienta a juventude (ou seja, a esperança correctiva) de Elene Naveriani e a sua insistência em perscrutar os dentros e foras do crescer de uma mulher em terreno infértil. O filme é, na sua essência, sobre como este terreno consegue ser fertilizado mesmo quando as condições não são favoráveis, e sobre a percepção que vamos tendo desse processo num corpo redescoberto, enquanto este se alinha ou treme em direcção a um inteirar.

Sobre isto, dizia Naveriani ao jornalista da Mubi no podcast gravado durante o festival de Cannes, “Penso que será mais sobre desaprender do que sobre aprender. Demoramos mais tempo a desaprender.” O filme segue esse desejo de Etero, mas mantém-no em segredo. O espectador vai tendo apenas acesso a uma constante ambiguidade entre o que permanece misterioso e o que é evidente, este instinto natural que Etero tem de ir contra a corrente sem sair de onde se encontra. Também nunca temos acesso aos seus pensamentos mais profundos, apenas ao que é descrito pela mesma quando fala com os seus botões ou através do que não diz a outras pessoas.
Entrelaçado num humor engraçado mas deadpan, a temperatura do filme mantém-se tão morna quanto é real, com ênfase no naturalismo que espelha as muitas camadas da personagem que segue sem alguma vez tropeçar no sentimentalismo. Será tão impossível saber o que Etero fará como que tipo de arco narrativo o filme adoptará. Ela é pragmática, mas deixa-se maravilhar, sem se perder nesse êxtase. A sua autonomia é incansável, a sua tristeza uma forçosa obrigação (tendo em conta o passado na companhia de um abusivo pai e irmão), e a sua relação com a natureza duradoura. Este poderá ser o Outono da sua vida, mas ainda há espaço para tornar o corpo num jardim, onde na mais bela das reviravoltas, e em toda essa sensualidade e suculência, Etero nunca mais estará sozinha. Talvez seja verdade, o espectador ouve-se pensar. Talvez haja tempo para tudo, até para começar uma segunda vida.

Blackbird Blackbird Blackberry é precisamente o que se procura numa sala de cinema; a pérola que emana honestidade e vive dessa partilha, no cair do nosso olhar na vivência da sua protagonista. Não é então de admirar que tanto furor tenha causado pelo circuito dos festivais de cinema, acabando por estrear comercialmente por toda a Europa (em Portugal, vai directamente para a Mubi). A travessia que seria, no caso de outro filme qualquer, anunciada, começa quando este nos abandona. Feitas as contas, do reino físico e temeroso das ravinas íngremes, ao reino ensolarado do erotismo que escapa às palavras, the best ones grow in shadow. E de repente chove a potes. A cada minuto que passa, ela luta contra o seu destino.
Shashvi shashvi maq’vali (Blackbird Blackbird Blackberry, 2023) de Elene Naveriani, pode ser visto na plataforma Mubi.