Observo as pessoas. Divirto-me ou comovo-me. As ideias são secundárias: as teorias vêm depois. Orouët é um desses filmes. Um filme sobre as férias, que é também um filme sobre o trabalho.
Jacques Rozier
Setembro, c’est la rentrée: uma interminável e deprimente segunda-feira que promete prolongar-se durante dez ou onze meses, com algumas abertas pontuais no céu cinzento do quotidiano, se tivermos sorte. Assim que retomamos a rotina do métro-boulot-dodo (“metro-trabalho-sono”), já só pensamos na próxima evasão estival. Contamos os dias, horas e minutos que faltam até voltarmos a esse tempo do dolce far niente em que nos autorizamos a enfim deixar de os contar; tentamos enganar o tédio com recordações de férias passadas e projetos para as futuras; invejamos aqueles que decidem ir de férias precisamente quando todos os outros regressam ao trabalho. Para muitos de nós, setembro traz de volta a morna lengalenga das responsabilidades da vida adulta, ao passo que férias rima com o entusiasmo da infância e a insouciance da adolescência. O filme sobre o qual trata este texto é para todos aqueles e aquelas que dizem que “setembro pode esperar” e que de alguma forma desejam prolongar o verão, nem que seja por intermédio do grande (ou pequeno) ecrã.

Três amigas parisienses – Joëlle (Danièle Croisy), Caroline (Caroline Cartier) e Kareen (Françoise Guégan) – decidem ir passar parte do mês de setembro na casa desocupada da avó de uma delas, perto de Orouët, uma zona balnear na região da Vendeia, também chamada Côte de Lumière (“Costa de Luz”), no oeste da França. Sem quaisquer outros planos além de uma dieta rapidamente abandonada, deixam-se viver ao sabor das ondas, do vento e da chuva; tanto a meteorologia hors saison como os humores femininos se revelam caprichosos e inconstantes. Ao trio explosivo de “pequenas margaridas” (numa versão mais terra-a-terra das heroínas de Věra Chytilová) virá juntar-se – incrustar-se! – o patrão de uma delas, Gilbert (interpretado por Bernard Ménez, naquele que é o seu primeiro papel cómico de relevo), que, por amor não confessado, se sujeita à função de faz-tudo e de “bobo da corte”; bem como, mais pontualmente, um playboy (Patrick Verde) e o seu veleiro instigador de ciúmes e de intrigas entre a restante “tripulação”. Se o cenário natural exterior e o esboço de narrativa nos soam rohmerianos, combinando todos os elementos de um ligeiro e refrescante Conto de verão (Conte d’été, 1996), já os jogos improvisados pela tríade de personagens-atrizes no interior doméstico nos parecem rivettianos, “navegando” entre casa de férias transformada em antro de ficção e deambulações em busca de novas aventuras em que possam “embarcar”, quais Céline et Julie vont en bateau (1974). Ora, quem realiza este surpreendente filme estival Du côté d’Orouët (1973) não é Éric Rohmer nem Jacques Rivette, mas um tal Jacques Rozier.
Não estamos aqui perante um slow cinema em que nada ocorre, mas de um cinema onde a vida acontece no que ela tem de mais trivial, e em que a pura existência das personagens tem primazia sobre a narração dos acontecimentos.
Trata-se, com efeito, da segunda longa metragem do realizador de Adieu Philippine (1962), esse diamante bruto da Nouvelle Vague filmado nas ruas da capital e sob o sol da Córsega, com a guerra da Argélia em pano de fundo, e que, ainda hoje, é o único filme ao qual o nome de Jacques Rozier é automaticamente associado. Formado no IDHEC, em 1947, o cineasta evolui na margem da Nouvelle Vague, trabalhando sobretudo para a televisão e realizando apenas cinco longas metragens entre o final da década de 50 [Adieu Philippine sucede a duas curtas, entre as quais Blue Jeans (1958), vivamente aclamado pela crítica, nomeadamente por um certo Jean-Luc Godard, então redator dos Cahiers du cinéma] e 1986 (ano de Maine Océan, sendo que o seu último filme, Fifi Martingale, concluído em 2001, não chegou sequer a estrear em sala). A prática cinematográfica de Rozier inscreve-se na senda do cinéma vérité de Jean Rouch e do documentário social de Jean Vigo, combinando os constrangimentos da “pequena economia” (meios técnicos ligeiros, equipas reduzidas, rodagens em exterior e som síncrono), com o exercício de uma verdadeira liberdade criativa assente no trabalho de improvisação com os atores e na captação direta do real, sem maneirismo formais ou artifícios narrativos.

Em Du côté d’Orouët, o “naturalismo” da mise en scène de Rozier contribui para instalar uma sensação de familiaridade entre os espectadores e as atrizes-personagens, sensação essa que é acentuada não só pela energia naïve e lúdica que emana dos seus corpos radicais-livres e do modo como estes se movem e interagem no espaço doméstico, como pelo tempo longo que nos é dado para as ver a simplesmente existir – como se estivéssemos a assistir a um rol de parvoíces filmadas por amigos de longa data durante umas férias passadas em grupo na casa de família de um deles. Não estamos aqui perante um slow cinema em que nada ocorre, mas de um cinema onde a vida acontece no que ela tem de mais trivial, e em que a pura existência das personagens tem primazia sobre a narração dos acontecimentos, de resto também eles insignificantes. E naturalmente, são precisas duas horas e meia para que o espectador possa sentir toda a vitalidade latente desse “tempo suspenso”, líquido, que destila e se escoa em férias.
Apesar do título remotamente proustiano, Du côté d’Orouët é um filme que se conjuga no presente, sem qualquer espaço-tempo para reminiscências introspetivas reveladoras da profundidade do ser – à exceção de uma breve cena no início, quando, recém-chegada ao quarto que em tempos fora o seu, Kareen fala diretamente para a câmara sobre a sua infância, num gesto-olhar que quebra a quarta parede da casa em que temporariamente (um mês de verão, 2h30 de projeção) se aloja o cinema (quase) direto de Jacques Rozier. Em contrapartida, a temporalidade difusa em que o filme decorre, ou escorre, é a de um “presente imperfeito”, superficial e inconstante. Não há nenhum perfume ou migalha de madeleine capaz de transportar as personagens para o passado, mas uma mistura de sabores, odores e texturas que as mantém presentes, deleitando-se, entre banhos de mar e de sol, de vento e de chuva, com gaufres, churros, éclairs au chocolat e choux à la crème (na ausência de bolacha-americana e de bolas de Berlim, diríamos nós, os da costa oeste), e também com peixe fresco, ostras rugosas e enguias escorregadias, tudo regado a cidra desde o pequeno almoço e garrafas de vinho branco sem fim.


Se me alongo com esta enumeração aparentemente insignificante de iguarias culinárias, é precisamente porque estas constituem os verdadeiros ingredientes com que é cozinhada a temporalidade singular do filme de Rozier, e porque é no terreno da gastronomia que se jogam todos desejos, frustrações, caprichos e arrependimentos das personagens. O trio de protagonistas faz-nos lembrar aquelas pessoas que ainda estão à mesa e já estão a planear a próxima refeição: as primeiras conversas entre elas giram em torno da dieta restrita que contam fazer durante as férias, planos esses em breve derrotados pelos desvarios gulosos que vão pautar a sua estadia, facilitados pelo facto de o frigorífico estar sempre vazio e de a casa se situar convenientemente no piso superior de uma creperia sazonal de que são praticamente as únicas clientes; sem surpresa, a decisão de regressar a Paris será antecipada pelo encerramento desta. Sem esquecer as duas cenas mais hilariantes do filme, a primeira protagonizada por um alguidar de enguias vivas à solta pelo chão, a segunda em torno da preparação por Gilbert de uma requintada refeição de peixe fresco, tão demorada que, quando finalmente fica pronta, já ninguém tem energia para a saborear.
Du côté d’Orouët é um exemplo emblemático dos obstáculos encontrados por Rozier na produção dos seus projetos, bem como da relativa invisibilidade de que padece a sua restante filmografia até aos dias de hoje. Produzido pelo canal de televisão France 3 com um orçamento de telefilme, as rodagens ocorrem em 1969, mas o filme só estreia quatro anos tarde em algumas salas, no formato 16 mm no qual fora filmado (e ao qual se deve a sublime fotografia, qualificada de “atmosfera líquida” pelo cineasta); e será preciso esperar por 1996 para que Du côté d’Orouët seja expandido para 35 mm e beneficie de uma distribuição mais vasta no circuito comercial (contando então com a concorrência do já mencionado Conto de verão, nem de propósito estreado poucos meses antes). Com uma génese e um destino semelhantes, o projeto seguinte de Rozier confirma o seu estatuto de “pirata” da Nouvelle Vague: Les Naufragés de l’île de la Tortue (1976) conta com um casting de cómicos de luxo encabeçado por Pierre Richard, mas as oito semanas de rodagens improvisadas – sem guião – nas ilhas da Guadalupe e da Domínica transformam-se em dois intermináveis anos de montagem… e o filme solda-se por um verdadeiro “naufrágio” comercial que o condena ao esquecimento, até há relativamente pouco tempo.

No fim de contas, se Rozier é um cineasta-pirata, é-o não só pela mistura de ingredientes exóticos que fazem da sua obra um arquipélago de ilhas do tesouro, onde, tantas vezes, tudo começa com um desejo de evasão, a decisão de apanhar um barco para longe e vir acostar numa ilha deserta ou numa casa abandonada; é-o também, e sobretudo, pelo espírito livre e aventureiro que pauta a carreira do realizador, tanto quanto este se mostrou sempre determinado a levar a cabo os seus projetos à revelia da grande indústria cinematográfica e da crítica internacional. Sejamos, então, também nós espectadores-piratas, e roubemos duas horas e meia do nosso horário de trabalho nesta rentrée para viver o “tempo suspenso” do lado de Oroüet.