1. Louis Skorecki, retomando talvez um velho sonho de Thomas Edison de um cinema que, mais do que um registo foto-químico do real (o que vai ser o Kinetoscópio), devia ambicionar ser um dispositivo de retransmissão quase em simultâneo de acontecimentos (sobretudo espectáculos, como a ópera), defendia que o cinema (a exemplo do “mudo”) apenas existira como uma espécie de “TV falhada” (“inaboutie”) (numa das suas crónicas do Libération, ele escreve mesmo que “os Lumière não tinham inventado o cinematógrafo mas a TV que esperou pacientemente pela sua hora na sombra” [Les Violons ont toujours raison, PUF, 2000 (6, 129)]) e que, depois do boom da TV nos anos 50 na América, com Hitchcock, a série Alfred Hitchcock presents (1955-1962) e depois Psycho (Psico, 1960), em 1960, ter-se-ia entrado naquilo que ele considera a fase de um pós-cinema marcadamente mais “maneirista” do que o cinema dito “clássico” (mais “funcionalista”) e isto devido à própria necessidade dele se “(de)marcar”, enquanto cinema, para se diferenciar da TV. Outro exemplo, ainda para Skorecki (Sur la Télévision), seria Howard Wawks com Rio Bravo (1959), a que eu acrescentaria Red Line 7000 (Traço Vermelho 7000, 1965) (Capricci, 2011 [9]).
Em 1955, Hitchcock teria compreendido que “era na TV que devia fazer doravante o seu cinema” (Violons [135]). Da experiência da TV, ele retirou sobretudo o modelo de um modo de produção mais leve, com uma pequena equipa capaz de filmar as situações quase em directo (na longa conversa com François Truffaut, Hitchcock caracteriza Psycho, rodado “como para a TV” e com uma equipe que vinha da sua série, como um “filme puro”, em certa medida “experimental”, em que é “a câmera que faz todo o trabalho” [F. Truffaut, Le Cinéma selon Hitchcock, Robert Laffont, 1966, cap.13]) e incorporando já técnicas que serão as das séries (nomeadamente policiais) da TV (em que se distinguirão realizadores como John Frankenheimer, Sidney Lument, Paul Wendkos, John Cassavettes e mais tarde Steven Spielberg e John Carpenter), ou mesmo do novo documentarismo social (William Friedkin, com The People vs Paul Crump [1962], ele que realizará o último episódio [“Off season”] da época de 1965 da série Alfred Hitchcock Hour, em que utiliza inclusivamente o décor de quartos do Bates Motel). Como observa, bem, Jean-François Rauger em L’Oeil domestique – Alfred Hitchcock et la télévision (Rouge Profond, 2014), a “escolha de um estrutura anónima de produção podia [já] ser em si a de uma instância discursiva” [9]: uma forma, modo, como referimos, mais “directo” (imediato) de dar e transmitir a realidade (a TV configurar-se-ia, na sua “bêtise”, como “um espelho que reflectisse demasiado” [11]), mas também a focalização num determinado tipo de objecto, banal e in-estético, o fait-divers. O carácter “impessoal” tanto dos “factos” como das “imagens” (“imagens-facto” em que residia para André Bazin a singularidade da “forma” de Rossellini) como das “imagens” que permitia que nesses episódios – e nos filmes que se seguem, Psycho mas também The Birds (Os Pássaros, 1963) ou mesmo Marnie (1964) -, fosse a “estrutura” (esse inconsciente do dispositivo do cinema) que, por assim dizer, “falasse” (filmasse?) no lugar do realizador. Nesse sentido, como observa ainda Rauger, o “olhar neutro” (apático) da TV (um “cinema superficial”, ”dispositivo celibatário” funciona como crítica da razão moderna.
O melhor exemplo disso é talvez o “olhar sem raccord” (contra-campo) frequente dos personagens dos episódios de Alfred Hitchcock presents, “olhar aberto sobre o nada” como o de Marion em Psycho: um “olhar vazio” – mas na verdade “cheio”, sobrecarregado de razões e pulsões contraditórias – que, porque sem resposta, desemboca no “nada”, no curto-circuito a-passional mas ético que é o para lá (ou cá) do “humano”. Ou, como adverte Fritz Lang, que sabia destas coisas: “não olhamos para a TV, é ela que nos observa” (apud ,Rauger [149]).
2. É deste complexo de situações/mutações que emerge, em 1960, Psycho – num ”quadro” com semelhanças, pensamos, com aquele que in-forma a recente trilogia de Ti West (X [2022], Pearl [2022], MaXXXine [2024]) onde a indústria, fábrica de sensações e corpos do “porno”, toma agora o lugar da TV nos anos 60 (a TV é contudo um elemento presente, desde o início, em X) (sobre todos estes aspectos cf. cap. 11, “Psycho est-il un film de TV?”, do referido livro de Jean-François Rauger).
Com efeito, a schize de Norman (Anthony Perkins) é também a do filme (o lettering do genérico de Saul Bass, aliás, reflecte isso, com as palavras cortadas pelo meio), um filme dividido, como os personagens, entre dois modos de fazer (produzir, realizar) cinema: a TV, mais ligada ao personagem de Marion (Janet Leigh) e o cinema (o “horror gótico”, na linha da Universal dos anos 30, embora Hitchcock recuse essa relação), sempre mais próximo de Norman Bates. Essa é também a divisão entre a referência (cultural, histórica) ao moderno (“contemporary america”) – a cidade (Phoenix), a horizontalidade do motel (arquitectura unidimensional, linear, de acordo com carácter metonímico do desejo: é esse o quadro de onde surge e em que se inscreve Marion) – e o lado mais tradicional da casa “gótica” (veja-se a tela American Gothic de Grant Wood [1930]) que, na sua verticalidade, nos remete para a “interioridade” de uma América profunda (Norman) (cf. Slavoj Zizek, “In his bold gaze my ruin is writ large”, in Zizek [ed.], Everything you always wanted to know about Lacan… but were afraid to ask Hitchcock, Verso,2002 [1992] [227,232]).
Deste ponto de vista, desde a sua sequência de abertura, confrontamo-nos com esse lado (conotação) X (rated) da obra: assim, o travelling panorâmico com uso de zoom sobre a cidade (Phoenix) vai dar à janela de um prédio com o estore entreaberto por onde, com um raccord sobre fundo negro, a câmera entra, apanhando uma mulher (Marion) deitada na cama com o soutien visível; uma voz-off masculina (Sam [John Gavin]) diz “You never did eat your lunch, did you?” sobre plano de uma tabuleiro com sandwich, copo e cinzeiro – isto é, naquele encontro casual, com hora marcada (um “extended lunch”), não houve tempo para comer, apenas sexo; noutro plano, Sam em tronco nu e Marion, já de pé com soutien (branco) e saiote sobre a roupa interior, beijam-se enquanto falam. O que me interessa tirar daqui é que, em 1960, Hitchcock não só faz da TV cinema (e vice-versa) como abre o filme no registo (semi)porno dos blue movies dos anos 50 e 60 (Joseph Stephan, o autor do script, declarou também que a presença da retrete e o acto de puxar o autoclismo na casa de banho do motel tiveram a mesma intenção de ruptura com as normas de censura [deste ponto de vista, aliás, é sintomática a resistência de Norman em entrar na casa de banho do quarto do motel]). Esta referência parece-nos essencial para o registo fragmentado, directo e cru, de tudo o que se vai seguir e desemboca, claro, no assassinato (violação) de Marion no chuveiro do motel, algo de que o cinema, como do “olho cortado” da abertura de Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz, 1929) de Buñuel/Dali, terá muita dificuldade em recuperar – ou seja, dessa associação (traumática) entre sexo (porno), horror (slasher) e cinema.
Na sequência seguinte passamos do sexo para o escritório, isto é, para o registo do fait-divers das séries televisivas – a presença de Pat Hitchcock (habitual dos episódios de Afred Hitchcock presents) está lá mesmo para nos recordar isso: à trivialidade do escritório (como depois em Marnie) segue-se o roubo do dinheiro que, como se sabe (e nos mostrou Bresson em Pickpocket [O Carteirista, 1959]), pouco tem de “transcendente” (depois, nos planos de Marion já em casa, ela usa premonitoriamente lingerie negra e por diversas vezes reflecte-se no espelho, como depois sucederá no motel); na posse do dinheiro, ela viaja de carro e é de manhã assediada por um polícia de estrada (em grande-plano, com óculos escuros [como já se vira num dos episódios da temporada de 1956 de Alfred Hitchcock presents, “One more mile to go”) mas acaba, numa noite de tempestade, por chegar ao motel. Em todo o segmento da “viagem” de carro de Marion – sempre sob a cadência rítmica da música de Bernard Herrmann (“black & white music”, como ele dizia, para condizer com a fotografia) – o uso frontal das transparências de Marion ao volante sobre fundos de estrada sublinha a “dissociação” entre o que ela faz e o que se passa (as vozes) na sua mente, marcando-se assim a sua já “exterioridade” em relação ao real e aos acontecimentos.
Como referimos, não só desde o início Marion se olha ao espelho, testa aí a(s) sua(s) imagem(ns) – na cena do registo no motel, ela desdobra-se no espelho (sobressaindo o jornal e o envelope com o dinheiro, na mala, na imagem) -, como se estabelece uma relação especular entre ela e Norman, bem patente na conversa sobre “erros” e “culpa” que têm na saleta (“parlor”) (Chabrol e Rhomer referem-se à “solidariedade no pecado” , ou “culpa”, que por vezes liga os personagens do autor [vd. The Rope (A Corda, 1948)] [Hitchcock, Ramsay, Poche, (1957) 2006 (116)]). Pode-se mesmo dizer que Marion fica presa nessa relação especular de que se apropria Norman comparando-a com os pássaros (“You eat like a bird”, diz-lhe) que embalsama (o apelido de Marion, “crane”, é aliás o nome de um pássaro: grou ou garça [poder-se-á mesmo ver em Psycho um ensaio do que será The Birds?]). Zizek sublinha que essa relação ”especular” entre Marion e Norman está selada como numa espécie de banda de Moebius (Lacan) em que “if we progress far enough on one surface [Marion], all of a sudden we find ourselves on its reverse “ (negativo: Norman”) (op.cit. [227]).
Dessa dupla schize, a do “feminino” para Norman e a dele próprio, solta-se o “fantasma” (da mãe), presente desde a chegada de Marion ao motel, primeiro como “sombra” (vulto) na janela do piso superior (é essa a primeira imagem que ela tem da casa) e depois como “voz” (a discussão entre Norman e a “mãe” que ela ouve quando este regressa a casa para lhe preparar a refeição).
Como Michel Chion (“The impossible embodiement”) observa, este é um filme sobre a voz – melhor, sobre o “fantasma” (carácter fantasmático) de uma “voz” (a da “mãe” [aqui, mais constantemente Virgina Greff]): “the impossibility of attaching a voice to a body [the impossibility of embodiement]” produziria a passagem ao plano do “imaginário”, ao “fantasma”, levando à construção do que Chion, jogando com a noção de “acousmêtre” (uma voz sem suporte físico no plano), designa por acousmère [195/6]. Essa divisão mantém-se ao longo do filme (quando Marion chega ao motel, depois da sua morte e quando Norman leva a mãe para a cave) devido à “impossibilidade” (monstruosa) de “acoplar” voz” (mãe) e “corpo” (o seu) em Norman – em certa medida cada vítima de Norman constitui uma tentativa (frustrada) de selar essa “união” -, e isto até ao fim em que a voz (a “persona” por detrás dela) se apodera do corpo (de Norman).
De facto, existe aqui uma situação de “ventriloquia” em que Norman é o “corpo” (marioneta) da “mãe”. Erik Bullot (L’attrait des ventriloques) chama a atenção para o facto dessa “dissociação” entre “vozes” (sons) e “figuras” (imagens) ser constitutiva da própria experiência do cinema em que se tem “vozes” desligadas das imagens flutuando (disponíveis) no espaço da sala à espera que os espectadores as “identifiquem” e liguem a corpos no ecrã (essa foi mesmo uma das dificuldades da passagem ao sonoro nos anos 20/30 do século passado) (Yellow Now, 2012 [20, 52]). Algo bem patente nos filmes com “bonecos falantes”, de The Great Gabbo (1925) de James Cruze (com Erich Von Stronheim), ainda no mudo, ao sketch The Ventriloquist’s Dummy de Alberto Calvacanti em Dead of Night (A Dança da Morte, 1945) ou mesmo Dead Silence (Silêncio Mortal, 2007) de James Wan. É essa situação de “descorporização” da voz, que des-vela o logro do carácter natural da relação entre som e imagem, que encontramos ainda a estruturar filmes como Shirin (2008) de Abbas Kiarostami ou mais recentemente Dahomey (2024) de Mati Diop .
Mas este é também um filme sobre (de) um rosto – melhor, dois rostos, o de Marion, (sempre distanciado, quase apático) e o de Norman (hiper-sensível) -, um pouco como sucede com o de Ingrid Bergman em Notorious (Difamação, 1946) (vd. Chabrol/Rohmer [104]).
E quem diz “rosto” diz olhar(es), em particular os olhares-câmera (frontais) de Marion (na primeira parte do filme) e de Norman (no final) que remetem para um ”fora de campo” que tanto pode ser o do “inconsciente” dos personagens (e espectadores) como o da câmera, dispositivo do cinema. Na verdade, não há “contra-campo” possível para nenhum dos personagens (ainda que com diferenças, claro) já que ambos possuem “olhares barrados” que não têm com que se articular. Se Marion é um personagem dado numa relação de “espelho” (especular) em aberto – uma ferida” (narcísica) em derrame que progressivamente a leva ao limite e a esvazia -, a sua morte abrupta (a cena hieróglifo, trauma, que corta toda a “identificação” do espectador com o personagem e o filme) não deixa de ser lógica e necessária (“never has identification been broken off so brutally […] we are left shocked, with no thing to cling to, the apparent center of the film entirely dissolved”, comenta Robin Wood [Hitchcock’s films, Zwemmer/Barnes, 1965 (118)]).
Com efeito, toda a cerimónia (ritual) sacrificial da morte de Marion é conduzida (ordenada) do ponto de vista de Norman (e do espectador) exasperando o seu voyeurismo.
Assim, quando Marion se despede dele para regressar ao quarto (N.º 1) do motel, Norman, na saleta, ouve ruídos no quarto ao lado e espreita por um orifício na parede coberto por uma pequena tela com uma variação do motivo de Susana e os Velhos (reconhecível no trailer do filme, assim como noutras versões, mas não aqui) observando Marion que se despe (vêmo-la de novo com a lingerie negra que ainda não tirou) – ou seja, como na “cena primitiva”, segundo Freud, são os sons que levam à construção da cena imaginária (fantasma) do “desejo” (da “mulher” aqui encarada como objecto à partida perdido já que, como Norman afirma, “um filho não é grande substituto para um amante”); Marion, então, entra finalmente no chuveiro e corre a cortina translúcida, seguindo-se a conhecida sequência de planos (chuveiro, água a correr, partes do corpo visíveis) até que um vulto se aproxima, por detrás da cortina, e a esfaqueia (a “montagem” [to cut ] coincide aqui com a própria técnica do slasher) – tudo isto sob a música estridente (e lancinante) de Bernard Herrmann; perpetrado o acto, o vulto (sempre na bruma) sai de campo e depois de vários planos de Marion a escorregar pela parede e a arrastar consigo a cortina, sem corte a câmera segue o sangue que escorre para o ralo da banheira e foca-se no vórtice da água que é puxada para dentro dele: por afinidade morfológica (de figuras: a elipse do olho e o círculo do ralo) tem-se um grande-plano do olho (morto) com a íris (fixa) de Marion (o seu “glaze non-look”, segundo Janet Leigh) do qual a câmera se afasta até se fixar na imagem do rosto espalmado de Marion no chão da banheira. Segue-se uma nova imagem do chuveiro com a água a cair e um travelling lateral que capta o jornal com o dinheiro embrulhado sobre a mesa de cabeceira e continua o seu movimento até à janela que dá para a casa com as janelas iluminadas no 1.º andar, enquanto se ouve a voz de Norman a recriminar a “mãe” pelo que ela teria feito; Norman sai de casa a correr, entra no motel e procede à sua limpeza sem ligar ao dinheiro.
Robin Wood refere-se à sensação de “vertigem” (vertigo) produzida pelo “astonishing cut from the close-up of the water and blood spiralling down the drain, to the close-up of the eye of the dead girl, with the camera spiralling outwards from it” [121] (sublinhamos), enquanto Zizek observa que, através dessa sugestão (sensação) de “vórtice” (espiral) das formas – reforçada, à maneira de Eisenstein (na sequência da escadaria de Odessa de Bronenosets Potyomkin (O Couraçado Potemkine, 1926],) pelo contraste (choque) da torção imposta ao espectador pelo movimento contraditório da entrada no ralo e da saída do olho -, atravessar-se-ia “the zero point of an eclipse of time” (anulação e estagnação do tempo, diríamos nós): esse “abyss beyond identification” [226] que Zizek compara com a “noite do mundo” de Hegel [228] (sublinhamos).
Estaríamos aqui perante aquilo que Zizek, cotejando Lacan, caracteriza como imagens-síntoma (ou melhor, “sinthoma”) que congregam “uma constelação de significantes [<uma “fórmula”] que, por seu turno, fixam um determinado núcleo de <gozo>” – como sucede, afinal, com os ‘maneirismos’ na pintura, detalhes característicos que persistem e se repetem [de acordo com uma ”compulsão à repetição”] sem se revestir, contudo, de um significado comum” [126].
Na verdade, neste “laço de Moebius” temos uma espécie de revolução (ou convulsão) cósmica (com efeito de deformação, anamorfose, do rosto de Marion [lembremo-nos da enigmática forma ovóide que se pode ver, em baixo, na tela Os Embaixadores [1533] de Hans Holbein, que Lacan tão bem analisou em Les Quatre concepts fondamentaux de la Psychanalyse [Seuil,1973]): um big-bang que faz chocar pequeno (o ralo) e grande (o espaço) ∞ e nos lembra o final de The Incredible Shrinking Man (Os Sentenciados, 1957) de Jack Arnold. Essa ”figura” (sintoma) regressa pouco depois através do raccord (mental) entre, por um lado, o redemoinho da água (estagnada) da pequena lagoa pantanosa em que Norman mergulha o carro de Marion (com o seu corpo lá dentro) e, por outro, o do ralo da banheira – “big-bang” agora não “explosivo” (cósmico) mas “implosivo” que nos arrasta para a corrente e fundo estagnado das coisas.
Chegamos assim à segunda (grande) cena do olhar(-câmera) do filme, o de Norman no final.
No hospital, depois da fala do psiquiatra que confirma a “possessão” de Norman pela “mãe” (é “ela” [“Norman no longer exists”, comenta o médico] que lhe conta a história de como as coisas se passaram, incriminando o filho), temos um plano de Norman na cela, já envolvido no cobertor: o plano é de início tirado de longe mas progressivamente a câmera aproxima-se enquanto ouvimos a voz-off da “mãe” que assume um posição de total passividade já que apenas pode, como diz, “ to sit there and stare like one of his stuffed birds”. Dá-se então um corte para o plano de uma mosca na sua mão (imagem que lembra o plano da mão com formigas de Un Chien Andalou de Buñuel/ Dali): “I’m not even gonna swat that fly (…) They’ll see and they’ll know and they’ll say <Why, she wouldn’t even harm a fly”, comenta a voz. Temos então uma imagem frontal (para a câmera) do rosto de Norman em que se vem sobrepor a imagem da caveira mumificada da mãe, que se vira antes na cena da cave com Lila (Vera Miles): Robin Wood comenta que é como se o “tempo” (o seu “desenvolvimento”) tivesse deixado de existir [114]. No entanto, sobre essa “imagem composta” (dissociada como a voz na sua relação com Norman) sobressai – como uma espécie de efeito 3D do “imaginário” (fantasma) – um novo raccord impossível agora entre o trejeito (sorriso?) de Norman e a dentadura branca (a rir-se?) da caveira (o significante metonímico – mas talvez fosse melhor falar em catacrese – que dá o nó, por condensação, às significações errantes das imagens). Há assim um elemento de irrisão (paródia) que reintroduz o motivo do “olhar”, de Norman (nesses planos o seu olhar anima-se) mas também da caveira, “the ‘mocking eyes’ of a long dead corpse” que Wood considera, bem, “the true eyes of Norman”[121]: órbitas descarnadas, escuras, em que incidem os lampejos e sombras da lâmpada da cave que lhe comunicam uma intermitência de “animação” – ou seja, produzem uma espécie de efeito de cinema , como se fossemos introduzidos (era esse o efeito de surpresa provocado pelos Lumière na projecção dos seus primeiros filmes) no salão de espera da nossa cabeça.
Esse efeito de (dupla) sobre-impressão leva, assim, à construção de uma imagem palimpsesto com dois estratos (não há bem “fusão” – “condensação” só imaginária – mas de novo, à maneira de Eisenstein, “colisão” de imagens): num primeiro momento (antes do aparecimento da caveira), isso lança-nos, como observa Zizek, no “impersonal abyss” de um (não)sujeito (Norman) “not yet caught in the web of language” (subjectivação: simbolização) que co-incide com a emergência da própria coisa (“unapproachable thing”/ “absolute otherness” [245]) mas uma “coisa” (má-mãe, caveira ou morte) vazia que, por seu turno, coincide com o carácter nu, descarnado (sim, louco), do “olhar” de Norman (e do espectador normal, ordinário, do cinema [Schefer]): um “olhar” (“gaze”) sem profundidade ou entidade, “an illusory effect of the surface-mirroring” que constitui “[the] topological reverse of the Thing” [257/8], ou seja, do dispositivo de cinema.
Mas há um segundo momento nessa dinâmica ([i]lógica) de aprofundamento, escavação da “imagem-palimpsesto” pelo qual – como no Diorama (de Daguerre) em que as luzes que incidem sobre a parte frontal da tela se apagam para deixar ver a imagem (agora iluminada) que se encontra no seu verso – Hitchcock recupera o plano anterior da vegetação da lagoa de onde, agora, o carro de Marion (o seu sarcófago) é retirado. A segunda parte do filme, assim, faz raccord com o fim da primeira e mergulha nessas águas pantanosas, movediças, que são as de um mau ∞. O olho, percebemo-lo, fecha-se.
3. Do filme de Hitchcock para os três seguintes, passa-se também do preto-e-branco mais abstracto e gráfico, no seu expressionismo contido mas tenso (barroco frio?) atravessado por descargas de tensão/ energia (ou de surpresa de que a “forma” possa conter tanto horror), para o uso da cor, de certo modo sempre mais “realista”.
Para lá da declaração de Hitchcock de não ter querido a cor devido ao seu lado gore (podendo assim contornar melhor a censura na visualização do sexo e da violência), a opção do preto-e-branco tem a ver sobretudo com uma opção estética. André Bazin (Le Cinéma de la Cruauté) refere que, em Hitchcock, a “forma” constitui “a própria substância da narrativa” (“ela não é apenas a maneira de contar a história mas uma espécie de visão a priori do universo, uma predisposição do mundo para [adoptar] certas relações dramáticas” [188]) e que ela vivia de uma “tensão no interior do plano”, “uma instabilidade essencial da imagem” (“cada plano é, nele, como uma ameaça, pelo menos uma espera inquieta”, precisa), constituindo a mise en scène a capacidade de conter “a qualidade admiravelmente determinada desse desequilíbrio” (Flammarion, 1975 [171/2]). Tudo isto faria de Hitchcock, agora para Chabrol e Rohmer, um prodigioso “inventor de formas” (op.cit. [154]).
Psycho II (Psico II, 1983), do realizador australiano Richard Franklin, começa com imagens da cena do chuveiro do primeiro Psico e é sobre elas que entra o nome de Anthony Perkins, ainda a preto-e-branco, logo seguido do título do filme já a vermelho e com as letras cortadas ao meio; progressivamente passa-se do negro para a cor, um dourado avermelhado onde se imprime o nome dos outros actores (Vera Miles, Robert Loggia, Meg Tilly, etc).
O filme preocupa-se, desde o início, em estabelecer laços com a obra de Hitchcock, a sua “cave” (casa) e “mãe”, por assim dizer. Retoma uma das actrizes, Vera Miles (Lila, a irmã de Marion) e segue um sub plot do primeiro filme: aqui, Lila é viúva de Sam Samuels, de quem tem uma filha, Mary (Meg Tilly), e procura montar com ela uma maquinação para convencer Norman do regresso da “mãe”, perturbá-lo e assim fazer com que ele, recentemente libertado (o filme começa no tribunal), seja de novo “institucionalizado”.
Mas há também “reprises” e citações formais que procuram manter o cordão umbilical com o filme de Hitchcock: 1) é o caso da cena do chuveiro de Mary, agora na “velha casa”, que segue o découpage do primeiro Psico, inclusive com a referência ao orifício, situado no centro da corola de uma das flores do papel de parede, por onde alguém espreita (por um efeito de mira) Mary (noutras ocasiões, ela apercebe-se de que o orifício dá para o quarto da mãe de Norman e vê-se mesmo a ser observada, não se sabe por quem, do outro lado); 2) outra citação formal tem a ver com os overhead shots (bird’s eye views)(i.e. vistas quase perpendiculares, tiradas de cima): esse tipo de planos surge por diversas vezes: quando, do exterior da casa, Norman apanha dois adolescentes a entrar pela portinhola que dá para a cave, quando Lila, sozinha, se dirige para a casa e, já no fim, o plano de Miss Spool estendida no chão da cozinha (depois de Norman a ter morto com uma pá) ou depois quando ele sobe as escadas com ela ao colo para a levar para o quarto. No entanto, estes pontos de vista do alto não parecem ser tanto da “casa”, ou de qualquer “entidade” que dela se apodere (Robin Wood observa que os travellings para diante de exploração da casa, no primeiro Psico, eram uma verdadeira descida no “inconsciente” do filme e do espectador [119, 121]) mas sim exteriores a ela, o que ajuda a construir a hipótese, por esse efeito de descentração da perspectiva (da narrativa), de uma armadilha feita a Norman.
De qualquer modo, ao fim de algum tempo, percebe-se que a linha do sub plot da vingança (familiar) de Lila não é suficiente – mesmo apoiada pela presença do psiquiatra Bill (Robert Loggia), talvez vindo das sequelas de Halloween (Halloween – O Regresso do Mal, 1978) (os 2.º e 3.º filmes são de 1981/2). Sintomático dessa “gripagem” da acção no filme é o inesperado aparecimento, à frente do plano, durante uma discussão entre Lila e Mary, de uma empregada com um aspirador que perturba a legibilidade, e não só sonora, da cena: memória de uma situação semelhante em Marnie, durante o roubo do cofre? Lembramo-nos ainda de outro aspirador, em L’argent [O Dinheiro, 1983] de Robert Bresson, que motivou um conhecido texto de Serge Daney (“O órgão e o aspirador”, em O Cinema que faz escrever – Textos críticos, Angelus Novus, 2015). Compreende-se assim que o filme opte por seguir outra via pelo que os últimos 20 minutos (os mais interessantes) são cheios de peripécias e volte-faces (deixa-se a verosimilhança aristotélica e entra-se na cascada de peripécias do cinema de atracções).
A questão, com a passagem do preto-e-branco ao maior “naturalismo” da cor, é procurar sair do “fantasma” da mãe do primeiro filme e encontrar uma 2.ª mãe para Norman – não “fantasmática” mas, se possível, orgânica (biológica) – e, com ela, uma nova “forma” (ou estética) É o que se propõe, com toda a lógica (do melodrama e folhetim populares), o filme de Franklin.
Assim, assistimos a uma cadeia de peripécias: primeiro revela-se que o regresso do “fantasma” (da voz mas também do corpo) não passa de uma maquinação de Lila e da filha, Mary; depois esta aparentemente vira-se contra a mãe, para defender a “inocência” de Norman, acabando por se “transvestir” de Norma para o desenganar quanto ao carácter ressurreicional da “mãe”, acabando por matar o médico, Bill (embora diga enigmaticamente a Norman, para se justificar, “I thought it was you”) e apunhalar por diversas vezes Norman quando este procura aproximar-se dela.
Em boa verdade, todos parecem querer assumir o papel (quando não a “vestimenta”) da “mãe” – Bill (a quem Norman chega a chamar “mãe”), Lila e Mary (sobretudo esta) – mas, como referimos, esgotada a via da “vingança familiar”, por assim dizer ainda “intra-diegética” em relação ao primeiro filme, a saída só pode ser para fora: do preto-e-branco para a cor mas também do “fantasma” para o “biológico”.
É assim que aparece a “verdadeira mãe” de Norman, Miss Emma Spool (Claudia Bryar), empregada como Mary no diner em que este é de início colocado pelo médico e irmã da Srª Bates a quem ela, por não poder tomar conta de Norman (nomeadamente por ter sido internada por problemas mentais: “She didn’t want you to know that you had a mother that wasn’t quite right”, diz-lhe), o entrega: é ela que, por detrás das Samuels, vai limpando a cena (mortes de Toomey [Dennis Franz], o gerente do motel, do adolescente invasor e de Lila) para proteger o filho.
Quando finalmente se dirige à velha casa para falar com Norman, surpreende-se com o facto da mesa estar posta para ela: “I was expecting someone, I just wasn’t sure when”, comenta Norman. Ela é o 3.º convidado (Maeterlinck) de todas as cerimónias que não só introduz a profundidade na superfície como faz desta uma linha de horizonte barrada e unidimensional, sem fim nem princípio, ou saída. Maurice Maeterlinck, no Prefácio à edição de 1901 do seu Teatro, refere-se um “3.º personagem, enigmático e invisível mas presente em todo o lado”- uma instância que ele relaciona com o “desconhecido”(esse “fundo profundo, nuvem dos cumes”) – e observa: “guardemos-lhe o seu lugar. Aceitemos, se for necessário, que nada venha ocupar [esse lugar] o tempo que ele necessitar para se desprender das trevas (…). A sua espera, assim como o seu assento vazio, têm em si mesmos um significado maior do que tudo o que pudéssemos sentar nesse trono que a nossa paciência lhe construiu e reservou” (edição de Serres chaudes /Quinze chansons / La Princesse Maleigne da colecção Poésie da Gallimard [1983 (301)]). É esse o lugar, ele próprio suporte do “fantasma”, que, filme a filme, todas as versões do primeiro Psico procuram (com sorte diferente) reocupar.
Morta a “mãe” real (?) por Norman, quando ele a transporta ao colo para a depositar na cama onde a vala do seu corpo é ainda perceptível (uma espécie de “anti-relevo”, no sentido de Tatlin, ou um “sudário”, como a imagem foto[cinemato]gráfica o era para Bazin), e perdidas todas as ilusões quanto à possibilidade do “real” poder substituir o “fantasma”, tudo pode (assim como talvez o cinema) (re)começar e Norman falar de novo com sua verdadeira “mãe”: a imaginária que sempre esteve lá.
Psycho IV: The Beginning (Psico 4 – O começo, 1990), telefilme realizado por Mike Garris (responsável depois pelas séries antológicas Masters of Horror [2005/ 7] e Tales from the Crypt [1994]) corta com o registo dos filmes anteriores.
Assim, na abertura, o primeiro nome a surgir é o de Perkins, seguido do título (a vermelho, com as letras cortadas), sendo os créditos com os outros nomes (Joseph Stefano de novo no script) intercalados com imagens, vindas não se sabe de onde, organizadas de acordo com três linhas: vê-se uma faca de cozinha em acção, planos de um programa de rádio (Talk of the Town) “on the air” e um bolo de aniversário a ser confecionado. Corta-se então para o grande-plano de uma boca a falar (na rádio) que lê um texto em que diz ter morto a mãe; segue-se uma conversa entre a locutora (Fran [CCH Pounder]), um psiquiatra, o avô do assassino e este, Raymond Linette, libertado depois de ter cumprido uma pena de 4 anos por matricídio. O psiquiatra, então, evoca um caso de há trinta anos, o de Norman: um ouvinte liga, não diz o nome e a câmera corta para ele de costas, na cozinha, até que finalmente se volta (é Norman) e diz que matou a mãe e vai voltar a matar.
Trinta anos depois, o filme de Garris corta com a tradição do primeiro Psico: passagem da proximidade (da 1.ª pessoa: Norman) para o diferimento/mediação (3.ª pessoa: o psiquiatra) mas também do “visual” para a “palavra” (fala), isto é, da “história” (“récit”) para o “discours” (“parole”), se quisermos usar a terminologia de Émile Benveniste. É a partir daqui que “Ed” (o nome utilizado por Norman) toma conta da narração em flashbacks: logo no primeiro vê-se como o regime das imagens mudou: no mesmo plano tem-se a “velha casa” ( sem o design gótico anterior, mais “limpa”) e o escritório (recepção) do motel, também num registo flat (geométrico, colorido e iluminado) de imagens (o edifício do motel parece não ter profundidade e ser apenas uma superfície plana, bidimensional (o que de facto é, puro décor, já que Garris não pôde utilizar as construções originais de Psico).
Esta nova estrutura dialogal (se não dialógica) substitui a existente entre Norman e a “mãe” (aqui temos antes o desdobramento de Norman, por vezes duplamente presente no plano, como jovem e adulto) mas é pouco aproveitada por Garris, ainda que sirva de base em que se vêm inscrever os “flashbacks” (que não seguem uma ordem cronológica) de Norman.
Como o título o indica, os “flashbacks” incidem sobre o “jovem Norman” (Henry Thomas) – os seus primeiros crimes (o de uma adolescente sexy e o de uma mulher adulta lúbrica), cenas eróticas com a mãe (Olivia Hussey), o velório do pai e o envenenamento da mãe e do amante – desembocando no estado actual de Norman, casado com Connie (Donna Mitchell), a psicóloga que o tratou durante o seu internamento e que engravidou, quebrando a promessa que lhe fizera de que isso não sucederia, razão pela qual ele agora a pretende matar para que a sua bad seed não se perpetue (há aqui um toque da problemática de A Queda da casa de Usher de Edgar Allan Poe).
No filme, de um modo geral, nota-se a tendência para a trivialização do horror (ou drama) das versões anteriores (Perkins, que sugerira para realizador do filme Noel Black, que o dirigira em Pretty Poison [O Despertar Amargo, 1968], foi sempre muito crítico em relação a Garris durante a rodagem do filme): assim, se no filme original o processo de “mutação” de Norman na mãe era apagado de modo a manter a incerteza quanto à sua verdadeira natureza (assim como para tornar mais “chocantes” as suas aparições), aqui a lógica é a da sua visualização (no primeiro crime, o da jovem atrevida, vemos um Norman facilmente reconhecível com a cabeleira e vestido da mãe), assim como a da desmistificação do “fantasma” (assistimos, por exemplo, ao percurso da cabeleira, falsa, tirada do caixão da mãe por Norman): encontramo-nos não no registo do “espectral” (menos ainda do “fantasmático”) mas do “patológico”.
Essa vontade de “redução” do pathos (o filme é de 1990 e adopta já a posição distanciada, de 2º grau – ou mesmo cínica -, do “horror” desses anos [John Landis, aliás, surge como um dos radialistas]) está bem patente na nova versão da cena clou do chuveiro: aqui, o vulto nu que Norman vê pelo orifício, por detrás da cortina, é não Janet Leigh mas Chet (Tom Schuster), o amante da mãe, que é depois seguido, através do óculo de um efeito de íris (o que redobra parodicamente a situação de “voyeurismo”), até à cama onde o aguarda Norma.
Com efeito, não só o sexo é grosseiro (vd. as cenas “eróticas” entre Norma e Norman, aparentemente provocadas pela mãe) como os crimes banais (porque já muito vistos), acabando por se tornar longos e descritivos, o que pode ter a ver com o pedido de “realismo” do uso da cor e da época.
Se o “voyeurismo” (a especificidade do prazer visual: escópico) se esgotou, sucede-lhe o que poderíamos (re)nomear de auralismo (de “aural”, ligado ao som), ou seja, uma compulsão a ouvir (o suporte conversacional do programa radiofónico – uma espécie de sessão de análise ao vivo e em público – está lá para isso) e sobretudo a “ouvir” as explicações sobre o caso de Norman, em boa verdade mais interessantes do que o próprio caso.
É aqui também que entra a “torsão” temática do filme: recusando o plot incestuoso do primeiro filme (a “tragédia do incesto”, como Norman diz ao psiquiatra), Norman explica o seu comportamento por uma (pre)disposição genética, a bad seed da mãe (reconhecível nos seus momentos de entrega à luxúria, com ele ou com o amante). Seria mesmo por isso que ele, depois do assassinato de Marion, quis ser executado e agora pretende matar Connie, a sua mulher, para que o seu “mal” (como com Roderick Usher em relação à sua irmã) não se perpetue (ao fim e ao cabo, tem-se aqui Norman como um “bom monstro”, socialmente preocupado, ao contrário da “coisa” [the thing] de Frankenstein que pede a Victor que lhe faça uma companheira para continuar – é esse o “fantasma” do médico – a espécie).
A deriva genética de Psico 4 culmina afinal a orientação “biológica” de Psico 2: ao “fantasma” (a dimensão plástica, criadora, do imaginário) substitui-se algo de “flesh and blood”, mais viral, que resolve (ultrapassa ou contorna) o problema da impossível encarnação (porque “barrada”), entre um corpo e um fantasma, do primeiro filme. Assim, no final, quando Norman traz Connie à velha casa para aí a matar, ele é “salvo” por uma nova torção (peripécia) que consiste numa re-orientação (“redressement”) especular da sua imagem, agora num sentido positivo: assim, ao ver o seu reflexo (duplo) deformado no espelho que lhe oferece a lâmina da faca com que cometeu os crimes (a sua “má imagem”: uma anamorfose ovoide e alongada), comparando-a consigo (a sua imagem “normal”, em que se cumpre a promessa do seu nome), ele acaba por renunciar aos seus propósitos.
Incendiada a “velha casa” (uma sequência que lembra muito o final de The Fall of the House of Usher (A Queda da Casa Usher, 1960) de Roger Corman [obra de 1960, ano de Psico]), a última imagem do filme, de novo na cave (e logo noutro tempo), é a da cadeira da mãe a balouçar: a câmera recua, a porta fecha-se e ouve-se de novo a sua voz a dizer “Let me out of here, Norman”. Sobre o negro que se segue a esse plano irrompe então o som de um bébé a chorar (eco de It’s alive! [O Monstro Está Vivo, 1974] de Larry Cohen?) – talvez o prenúncio de uma sempre possível continuação da “má semente” de Norman.
4. Chegamos assim a Psycho III (Psico III, 1986), filme realizado por Anthony Perkins (ele dirigiu apenas mais um filme, segundo parece uma “comédia canibal”, Lucky Stiff, em 1988, também com pouco sucesso de bilheteira).
Logo a abrir, sobre fundo negro, ouve-se uma mulher a gritar “THERE IS NO GOD!” Como o entender? Não há modelos a seguir, nomeadamente o de Hitchock? Desde início, com efeito, nota-se uma vontade de afirmação e mudança por parte de Perkins, o que se confirma logo a seguir com a escolha de alguns colaboradores: Charles Edward Pogue no argumento (são dele também os scripts de The Fly [A Mosca, 1986] de David Cronenberg e de D.O.A [Morto à chegada, 1998] de Rocky Morton e Annabel Jankel), Carter Burwell (habitual colaborador dos Cohen desde Blood Simple [Sangue por Sangue, 1984], filme que Perkins admirava) para a banda-sonora (sobretudo electrónica) e, talvez a mais significativa, a escolha de Diana Scarwid, com um aspecto físico distante das stars, para o papel de Maureen Coyle, a “dupla”, aqui, de Marion (Janet Leigh) (ela, aliás, tem parecenças com Anne Heche, a Marion do “remake” de Gus Van Sant em 1998).
Com efeito, o pré-genérico afasta-nos do “gótico” do filme de Hitchcock.
Depois dessa blasfémia gritada no negro, vemos que ela foi proferida por uma freira que, desesperada, tenta lançar-se do alto do edifício; quando outras freiras a procuram impedir, com um gesto brusco ela faz cair uma delas, sendo-lhe dito que, por isso, “arderá no inferno”. A abertura do filme situa-se assim num terreno inesperado, algures entre o “romance da infância” de Freddy Kruger (Nightmare in Elm Street [Pesadelo em Elm Street, 1984] de Wes Craven) e o campanário de onde se lança Madeleine em Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958) de Alfred Hitchcock. Ou seja, passamos do “gótico” (tradicional: da Universal e Grant Wood) para o neo noir de cores saturadas (veja-se a atmosfera de infra-vermelhos, câmera de revelação de pulsões, do filme – o seu lado mais “porno”, pulp (Perkins entrara em Crimes of Passion [As Noites de China Blue, 1984] de Ken Russell) – um “noir” (vd certos traços de reconhecimento formal do género como os rostos listrados pela sombra dos estores do café na cena de Norman com a jornalista) de qualquer modo atravessado por flashes de “grotesco” (seja num registo “burlesco” – quando o xerife mete na boca, sem se aperceber, cubos de gelo manchados de sangue – seja noutro mais “nocturno” – quando Norman cai no pântano com o carro que contém Duke e outros corpos e procura libertar-se através da vegetação do fundo [planos sub-aquáticos que evocam as imagens de Shelley Winters submersa em The Night of the Hunter (A Noite do caçador, 1955) de Charles Laughton]). Ensaia-se aqui, afinal, o registo híbrido do noir + porno + slasher que constituirá a fórmula do “novo horror” dos anos 90 que Ti West reciclará (criticamente) em MaXXXine.
Tem-se assim estabelecida, desde o início, uma situação de representação segunda, de 2.º grau, dada interiormente ao dispositivo enquadrante (do ponto de vista formal e temático) do primeiro filme de Hitchcock: para lá de outros aspectos que têm mais a ver com a matéria traumática do(s) filme(s), são marcas dessa relação “en-formante” tanto a reprise de cenas a preto-e-brando (caso da morte de Marion no chuveiro mas também, logo no começo, a sequência da morte de Emma Spool em Psico 2, agora a preto-e-branco) ou a cena no diner (o mesmo do filme anterior) que começa com um plano de paisagem que inicialmente parece “natural” e depois se descobre ser uma pintura. Mais significativa ainda, pensamos, é a referência à TV: quando Duke (Jeff Fahey) e a rapariga que ele recolheu no bar chegam ao motel, esta, ao ouvir as vozes de Norman e da “mãe”, diz: “Sure they like the TV uploaded”. Se Hitchcock vai do cinema para a TV para fazer o novo cinema de Psico, aqui reconhece-se essa forma invasora do cinema que é a TV (a televisão está sempre aberta e permite raccords de um espaço para outro): na verdade, quer o filme do “passado” de Norman (constantemente reescrito em função das mudanças no personagem da mãe), quer as falas entre ele e Norma (nomes próprios quase homónimos que apenas n do primeiro, enquanto partícula de (de)negação da mãe, distingue), constituem esse 2.º ecrã na cabeça de Norman (e na nossa, claro) a emitir em directo-diferido (um pouco, lembremo-nos, como no modelo inicial de cinema de Edison que Hitchcock com Psico, ou Coppola com a sua ideia de um “cinema ao vivo”, reciclam).
Daí, também, o modo como é aqui reelaborada a problemática do duplo.
Sintomaticamente, Norman encontra a fórmula justa para referir o curto-circuito, bloqueio, da sua personalidade (tanto o seu carácter claustrofóbico, fechado sobre si, como a sua rigidez, incapacidade de mudar): assim, a Duke, que lhe pergunta quem vive na velha casa, ele responde (não tautologicamente): Me and myself alone.
Ao “bloqueio” de Norman contrapõe-se o “ponto de fuga”, ferido e em aberto, da figura da “mãe”. Aqui, Psico 3 retoma a situação de Psico 2 (como referimos é citado, agora a preto-e-branco, o final desse filme), colocando-se a questão de quem é a (verdadeira) “mãe”: Norma (a do “fantasma”) ou Emma (a “biológica”)? Aparentemente, pelo seu volume e cabeleira, o corpo que nos é mostrado sentado na cadeira do quarto parece ser o de Emma mas só perto do fim essa dúvida é levantada, quando Norman vai ter com Duke à cabine 12 do motel para onde este a levou com a intenção de o chantagear. Se a hipótese da “mãe biológica” de Psico 2 já era rebuscada aqui dá-se uma “segunda volta no parafuso” e, através da investigação da jornalista Tracy Venable (Roberta Maxwell) fica-se a saber (?) que Emma Spool afinal era “tia” de Norman e que fora ela a matar (por ciúmes) o pai dele, raptando Norman que considerava “seu” filho. Ficando mais uma vez em aberto o lugar da mãe, Maureen, no seu delírio (sacrificial), propõe-se também como uma possível “mãe” (santa e salvadora) identificando-se com a Virgem Maria.
Neste quadro também a con-figuração do objecto de desejo (de Norman) se vê alterado.
Mais do que com Mary (Psico 2), ou depois com Corinne (Psico 4), Maureen aqui coloca-se (em termos semelhantes à relação entre Judy e Madeleine em Vertigo) como uma 2.ª Marion (Norman, aliás, a certa altura troca-lhes os nomes). Numa das conversas com a “mãe”, esta diz-lhe que “os mortos não podem voltar” ao que Norman responde “You did”, pelo que os “objectos do desejo” também podem e tendem mesmo a regressar.
Assim, quando Maureen aparece no diner em que, em Psico 2, Norman trabalhara como empregado de cozinha, ele vê-a, pela janela, a sair do camião que lhe dera boleia, enquanto conversa com a jornalista; quando ela entra no café com uma mala (Marnie?) com as iniciais MC (como Marion Crane) inscritas, Norman tem flashes (a preto-e-branco) da morte de Marion no chuveiro; depois, quando ela inclina a cabeça sobre o balcão (e só por esta sequência vale a pena ver o filme), Norman (re)vê planos do rosto de Marion esmagado no chão, virando a imagem progressivamente do preto-e-branco para a cor quando Maureen soergue a cabeça – ou seja, um novo ser (entidade, corpo) levanta-se, a cores, como um fantasma vivo, (re)encarnado, dos restos (dépouille) de um outro.
Esta sequência de “aparição” e “reconhecimento” continua(-se) pouco depois noutra, agora no quarto (n.º 1) do motel onde Maureen, a convite de Norman, se recolhe para descansar. Esta nova sequência (esperada, a da sua “morte”) segue no geral a continuidade do filme de Hitchcock: Norman afasta o pequeno quadro que tapa o orifício na parede (uma reprodução do motivo, também ele “voyeurista”, de Suzana e os Velhos – agora bem visível) e espreita por ele (plano com o olho e o orifício iluminados como em Psico): através dele, por um efeito de íris (reforço, com denotação, da situação escópica), vê Maureen a despir-se, com roupa interior branca; ela aproxima-se, retira o soutien mas sai do campo, vendo-se depois uma mão e a seguir as pernas, por onde faz deslisar o slip; novo plano, agora com ela de lado, com o torso e o peito visíveis mas na sombra; de costas, nua, Maureen dirige-se para a casa de banho, deixando cair o slip da mão (na banda sonora música coral religiosa: Miserere mei). Temos então corte para plano da lâmina brilhante de uma faca, depois um plano de pés (os sapatos são de homem) e vestido longo (escuro) de mulher; novo corte (transição) para plano de Maureen deitada na banheira (passa-se da vertical do corpo de Marion no chuveiro para a horizontal, mais de acordo com o estado de ânimo de Maureen), vendo-se a sua cabeça através do duplo filtro (com efeito de esbatimento da imagem) da cortina e do vapor do banho; quando Norman (como “mãe”) entra nesse espaço empunhando a faca, tem-se um plano de água ensanguentada, vê-se uma lâmina no bordo da banheira enquanto Maureen lhe mostra os pulsos cortados – então, tudo muda e, como se o curto-circuito (bloqueamento) do 2 (duplo) desse um salto, produz-se o 3.º alucinado de uma visão e passamos para o ponto de vista de Maureen que, através de um processo de morphing, trans-figura o vulto de Norman no da Virgem (Maria) vendo na faca um crucifixo. Depois, no hospital, à pergunta “Sabe quem a salvou?”, ela responde “Mary” (tudo quase homofonias, permuta e choque de letras [significantes] que ligam, numa mesma sarabanda, os nomes-próprios femininos: Mary, Marion, Maureen).
Trans-figuração que se faz de Norman=Mary (a Virgem), também faz de Maureen=Marion.
A sequência da “casa de banho” do motel continua e completa-se naquela em que Maureen, para cumprir a sua missão (“salvar” Norman como ela a salvou a ela) entra na “velha casa”: “Norman, it’s me. I come back” (diz), “I shouldn’t never go away” (acrescenta). Referindo-se a ela ou a Marion? Quando Norman aparece, no cimo das escadas, as mãos de ambos momentaneamente dão-se mas o chamamento off ”Norman!”, fá-lo largar Maureen que se desequilibra e cai de costas pelas escadas (como Alpergast no primeiro Psico), batendo com a cabeça na seta de metal de um cupido negro.
No final – morta (e posta em câmara ardente) Maureen, revelada a “verdade” sobre Emma Spool pela jornalista – a questão que se coloca a Norman é a de matar o fantasma da mãe. O que faz (“So, I don’t have the guts, hum?”) decapitando o cadáver de Emma, como um Perseu que tivesse vencido o complexo de Medusa (a saber, a castração [Freud]). Nessa sequência, por uma espécie de efeito de morphing do som, a voz da “mãe” passa do feminino ao masculino e muda gradualmente na de Norman, manifestando o controlo que este aparentemente ganhou sobre si: “Me and myself alone”, de novo?
Mas não é bem assim já que no fim, quando Norman é levado no carro pelos polícias, apercebemo-nos de que ele tira do casaco uma mão ressequida que acaricia (fetichismo, necrofilia, que já viera ao de cimo quando beija o cadáver de uma das suas vítimas antes de a meter na bagageira do carro): por fim, num último plano, a câmera ergue-se um pouco de modo a apanhar de frente o rosto de Norman que ostenta o (sor)riso (rictus?) do final do primeiro Psico.
Escreviamos, no início, que o primeiro Psico era um filme tanto sobre a voz (os fantasmas de uma voz ou vozes – as das mães mas também a de Norman) como sobre rostos – de início o de Marion (Janet Leigh) e Norman (Perkins) e depois apenas os de Norman. Entre o primeiro Psico (1960) e o último (1990) passaram 30 anos e o processo por que passou o rosto de Norman=Perkins é o de uma cada vez maior “fossilização” (enrugamento) até à sua expressão se tornar quase inexistente, reduzindo-se a um conjunto (fechado) de poses fixas enquanto a pele cada vez mais coincide com o osso.
Regressão, fossilização formal (Perkins era muito crítico em relação aos aggiornamentos do segundo e sobretudo do quarto Psico) a que, contudo, Perkins aqui procura reagir transfigurando o modelo de Hitchcock.
5. Lembro-me, quando o filme de Gus Van Sant estreou em 1998, do modo como ele foi em muitos lados despachado como puro “formalismo” mais ou menos pós-moderno ou, no melhor dos casos, como um híbrido entre a instalação fílmica e o ready made duchampiano, talvez decorado por um Jeff Koons disfuncional (na sequência de abertura, por exemplo, Anne Heche usa lingerie rosa, e fico-me por aqui). O remake, sabe-se, segue de um modo geral o découpage do filme de Hitchcock, reivindicando-se o autor apenas de uns 5% de contributo pessoal.
Para não nos dispersarmos muito (escrevi na altura um texto sobre o filme, depois recolhido no volume Imagens roubadas [Enfermaria 6, 2017 (63-67)]), escolherei como exemplo dessa démarche formal (estética), irónica mas não menos fundadora, os “arranjos”, bouquets de naturezas mortas de pássaros empalhados que Van Sant expõe dentro de vitrines que os põem em cena e exibem (puro efeito de “mostração” mais do que” narrativo”, nos termos de André Gaudreault). Vê-se um desses assemblages, por duas vezes, no lado esquerdo do plano em que Norman (um excelente Vince Vaughn) entra no quarto para levar a mãe para a cave e depois quando a câmera se eleva, sem corte, para o deixar passar. Uma segunda ocorrência é a da volière (aquário) da cave em que esvoaçam pássaros, agora vivos, que o corpo mumificado de Norma cegamente fita: ao fim e ao cabo, o seu cinema (e aqui há que referir a importância das atmosferas sonoras acrescentadas por Van Sant à partitura de Herrmann – seja o zumbir em crescendo da mosca, seja o pipilar dos pássaros nesta cena).
Se uma reprodução de Le Verrou de Fragonard substitui na saleta do escritório do motel o motivo mais clássico (melhor, barroco) de Susana e os Velhos, o que Van Sant faz aqui é des-aferrolhar algumas das portas deixadas fechadas, ou apenas entreabertas, por Hichcock (assim, na cena em que Norman espia Marion no motel, ele agora masturba-se, ainda que fora de campo).
Deste modo, aos pássaros embalsamados do escritório de Norman (e vimos como por eles se dava uma versão fetichista, devidamente narcotizada e manietada, do “feminino”) contrapõem-se aqui esses planos com arranjos de pássaros fazendo a ostentação de uma dimensão formal (estética) e exibindo-se como algo gratuito e meramente decorativo (lembramo-nos, claro, dos poemas-postal e das dedicatórias de prendas compostos por Stéphane Mallarmé ao longo da sua vida).
Estes planos de aves têm uma função semelhante à dos flashes de imagens que cortam e transfiguram alguns dos momentos mais icónicos do primeiro Psico (o seu efeito, dir-se-ia, de cortina poliédrica que dá uma dimensão de “relevo”, rude, ao filme [um efeito, aliás, que Van Sant repete na cena de chuveiro de Alex em Paranoid Park em 2007]): refiro-me às imagens de céus na cena da morte de Marion no chuveiro ou os planos de uma mulher nua com máscara e de ovelhas na do assassinato de Alpergast.
Elas constituem esses 5% de originalidade que Van Sant reivindica para si próprio, e que não são pouco, longe disso, já que transmutam por completo o filme ligando-o não só ao mundo à sua volta como à sua “forma” de então (caso das cenas narcolépticas e de fuga de Drugstore Cowboy [No Trilho da Droga, 1989] e de My Own Private Idaho [A Caminho de Idaho, 1991]). Na sua fugacidade e exemplaridade icónica (há nelas sempre um mais de ornamento, forma, em que se distila a representação), elas captam (e encapsulam), um pouco como com o ornamento de massa de Siegfried Kracauer, as congregações de imagens (e significações) do nosso tempo.