Como se sabe a vida de Rithy Panh foi desde cedo tragicamente marcada pela sanguinária ditadura de Pol Pot. Aos 11 anos foi feito prisioneiro pelos Khmer Vermelhos e só anos depois consegue escapar para França onde vive e faz a sua formação como cineasta. Assim, não é de estranhar que no cerne da sua obra esteja a questão: como pode o cinema aproximar-se do trauma pessoal e nacional de um conflito que fez quase 2 milhões de mortes? Qual será a sua função? Deve o seu aparato ser testemunha do horror? Deve reavivar a memória, reconstituindo-a? Que estratégias de reparação pode o cinema trilhar no sentido de uma redenção artística?
Se o gesto documental no cinema de Panh tem sido maioritariamente no sentido de ouvir testemunhas deste período (guardas de prisões, prisioneiros, executores), ele já deixava antever que o testemunho oral substituía uma falta fundamental: a escassez de imagens desse período que nos mostrem as atrocidades sobre grande parte da população. Ideia que se tornou clara com L’image manquante (A Imagem que Falta, 2013) e na qual o realizador cambojano supria essa falta com sugestivas figuras de terracota. Como se a resposta à posição do cinema na relação com essa ferida estivesse afinal num gesto de aproximação e preenchimento, uma tentativa de suprimento contínua. O reconhecimento de que o cinema irá sempre chegar à tragédia tarde demais, mas que não pode também senão sempre ir, perpetuamente, preenchendo o vazio, a falta.
Contudo, Rendez-vous avec Pol Pot funciona de forma astuta. Ao procurarmos a frescura por detrás da convencionalidade dramática, estamos afinal a percorrer o gesto do filme: três personagens em busca de uma saída desta visita guiada ao museu do regime.
Nesse sentido, Rendez-vous avec Pol Pot (Encontro com Pol Pot, 2024) parece acrescentar a essas anteriores tentativas de aproximação, com o uso de imagem de arquivo e das figuras de terracota, também um dispositivo ficcional. O filme adapta o livro When the War Was Over: Cambodia and the Khmer Rouge Revolution, que a jornalista norte-americana Elizabeth Becker escreveu em 1986 após uma visita a Kampuchea (nome do Estado Cambojano entre 1976-79) a convite dos Khmer Vermelhos, com uma entrevista a Pol Pot como ex-libris da expedição. Nesta transposição, Becker é a jornalista francesa Lise Delbo (Irène Jacob), que se faz acompanhar do fotojornalista Paul Thomas (Cyril Gueï) e do intelectual (e amigo de Pot dos tempos da Sorbonne) Alain Cariou (Grégoire Cólin).
Nesta viagem torna-se claro que a ficção é para Panh não apenas mais um dispositivo de combate e de evocação, mas uma forma de confrontação. As personagens querem ter o oportunidade de confrontar Pol Pot com a verdade. Essa progressiva aproximação ao líder que é construída, provavelmente, com a obscuridade e diferimento dramático de um Coronel Kurtz em Apocalypse Now (1979). O rosto por ver de Pot (a dada altura parece que Rendez-vous avec Pol Pot se iria encaminhar apenas para uma espera godotiana) é o símbolo, como o é antes o elefante artificial numa das cenas que o regime encena para entreter os convidados, desta cortina de obscuridade e de artifício que o regime de Pol Pot construiu para o exterior.
Nesta descida às trevas, que trará as suas vítimas, não deixa de ser interessante o papel desempenhado (e destino) de cada um dos visitantes. A jornalista é a que conduz as entrevistas, aquela que detém o poder da palavra e da (contra) narrativa. Mais delicado é o papel do fotojornalista, que rapidamente procura sair da “aldeia-museu” para ver o que está por detrás do décor: são com ele as cenas mais poderosas do filme, nas quais Panh monta as planos em que este aponta a sua câmara ao real, com o contracampo das imagens de arquivo que desvelam, finalmente, as torturas, os trabalhos forçados, os mortos. Finalmente, o intelectual que quer compreender, que questiona o seu amigo sobre o custo humano desta nova sociedade, ouvindo de Pot: “é preferível a ausência do homem, do que a sua imperfeição”.
À primeira vista o aparato ficcional (também as escolhas de casting) são um pouco conservadoras para o projecto de Rithy Panh. E não há como esconder isso. Contudo, Rendez-vous avec Pol Pot funciona de forma astuta. Ao procurarmos a frescura por detrás da convencionalidade dramática, estamos afinal a percorrer o gesto do filme: três personagens em busca de uma saída desta visita guiada ao museu do regime. Do lado de lá desta encenação está uma outra, compósita, heterogénea, na qual as personagens de carne e osso jantam ou dormem sob a presença opressiva das imagens de arquivo, e na qual, subitamente, a encenação da imagem real devém a encenação com as características figuras de terracota. Aqui sim estamos na mise-en-scène como território de combate. Mas, mais do que isso, eis um gesto que propõe a definição da memória do trauma, memória na qual o horror e a ficção, a tragédia e o apaziguamento não estão em campos inseparáveis.
★★★☆☆