Qualquer reflexão sobre Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960) teria sempre de passar pelo retumbante fracasso do filme, retirado das salas de cinema após apenas cinco dias de exibição. O que se revela particularmente desconcertante nesse insucesso é o facto de não haver no filme nada de novo, já que tudo o que Michael Powell lá põe pré-existia nos seus filmes anteriores.

Moira Shearer dança até à sua morte, às mãos de um homem consumido pela sua obsessão. Mas, como não recordar que, em The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos, 1948), também ela dançou em direcção à morte, vítima da obsessão de Anton Walbrook? Não tinha já Powell colado filme e vida, vida e filme, em A Matter of Life and Dead (Caso de Vida ou Morte, 1946), com a vida congelada num freeze frame, para colher uma lágrima numa rosa technicolor, prova do amor de uma mulher? E não havia ele já mostrado em Black Narcissus (Quando os Sinos Dobram, 1947), dispensando truques de body horror, como extrair do corpo da irmã Ruth e pelo meio da sua obsessão febril, uma outra mulher, num simples passar de batom vermelho?
Parece, pois, pena demasiado pesada a condenação da crítica aquando da estreia, removendo o filme dos olhos do público durante vários anos e colocando um ponto final na carreira de Michel Powell. Soa a castigo por se ser honesto. Ao mesmo tempo, Psycho (Psico,1960), um filme com que Peeping Tom é tantas vezes “emparelhado”, enchia salas e colhia louvores, apesar de andar por territórios tão próximos, mas num preto e branco nos antípodas dos tons pululantes de Peeping Tom, e trocando o pai abusador pela mãe abusadora.
Quem é o pai abusador de Mark Philips (Karlheinz Böhm), o protagonista do filme? A resposta a esta questão encontra-se num breve filme que Mark oferece a Helen (Anna Massey) como prenda de aniversário, no qual se revela a raiz de todos os medos. O pai de Mark, um cientista, é nesse filme interpretado pelo próprio Michael Powell, o que elimina qualquer dúvida quanto à natureza do filme: trata-se, afinal, de uma reflexão sobre o acto de fazer cinema. A perversidade do momento é ainda mais acentuada pelo facto de o filho ser interpretado pelo próprio filho de Powell, uma escolha que agrava a dimensão da transgressão psicológica e moral do filme. O facto de o realizador ter ulteriormente confessado o medo que o filho sentiu na filmagem da cena em que é acordado por um lagarto apenas contribui para aumentar o desconforto do espectador.

A presença de Michael Powell no pequeno filme dentro do filme é inquietante, pois o realizador assume, de forma explícita, o papel de criminoso e torturador da criatura que, simbolicamente, é manipulada, trabalhada e utilizada para a criação da sua obra. A inserção desta dimensão na narrativa não reflecte apenas a natureza obsessiva da sua arte, mas também expõe o próprio processo de criação cinematográfica como algo de perturbador e violento. A reflexão que Powell nos propõe é uma introspecção rara e corajosa, uma que questiona as fronteiras entre a criação artística e a exploração daquela que é a sua matéria-prima. Que outros realizadores seriam capazes de realizar tal exposição de si mesmos e do seu trabalho, sem temor da condenação? A ousadia de Powell reside na sua capacidade de confrontar o espectador com as sombras do próprio processo criativo, revelando a fragilidade da arte perante a manipulação e o controlo que permitem a sua concretização.
A ousadia de Powell reside na sua capacidade de confrontar o espectador com as sombras do próprio processo criativo, revelando a fragilidade da arte perante a manipulação e o controlo que permitem a sua concretização.
Peeping Tom é simultaneamente um filme que explora a psicose de um assassino em série e uma reflexão mais profunda sobre o processo de fazer cinema, da mesma forma que o recente The Brutalist (O Brutalista, 2024), embora centrado na arquitectura, também se debruça sobre as implicações e os silêncios do acto criativo. Ambos os filmes vão além das suas premissas aparentes, oferecendo uma visão crítica sobre o métier cinematográfico, evidenciando as dimensões ocultas desse processo. Em Peeping Tom, a obsessão do protagonista e a sua relação com a câmara tornam-se metáforas para a exploração da construção e desconstrução da imagem no cinema, enquanto The Brutalist aborda as estruturas que, embora imponentes e visíveis, escondem camadas de significados não ditos e não representados.
O acto criador de cinema está naquilo que não é dito ou mostrado directamente – os aspectos não gravados, não marcados, que ficam à margem da narrativa e da obra final, mas que definem, no entanto, o processo de criação e a percepção do espectador (daí o epílogo assumida e necessariamente disjunto do filme de Brady Corbet). Ambos os filmes expõem o cinema como uma arte de ausências, onde o que é filmado e mostrado encerra dimensões ocultas que, quando o cinema é mesmo arte, lhe emprestam uma aura de mistério e desconforto que nos interpela.
É, desde logo, o apartamento de Mark a conceder a cada espaço – o cinema e tudo o que o extravasa – o seu devido valor. A entrada no apartamento faz-se por uma primeira divisão esquálida, que faz as vezes de quarto, sala e cozinha, tão singela que provoca a incredulidade de Helen, perante a revelação de que Mark é o seu senhorio e dono do prédio. Para além da cortina, existe, todavia, uma outra divisão, ampla, recheada de equipamento dispendioso, com a sumptuosidade de uma sala de cinema privada. Os dois espaços partilham apenas uma característica comum essencial – a absoluta solidão do seu ocupante.

Todos os rendimentos de Mark estarão ao serviço desse seu vício, o de filmar aquilo que existe de mais assustador, matéria para os seus visionamentos privados. O que está em causa não é apenas filmar o crime, filmar o rosto da vítima tomada pelo medo. Mark é meticuloso e paciente, a forma como ele organiza o seu material filmado passa por uma atenção ao pormenor e por contar uma história, fazer uma reportagem. A história que começa na relação da vítima com a câmara e termina na revelação do corpo já defunto. Mark socorre-se da câmara em cada um destes momentos como alguém que vem à tona para respirar, havendo uma sofreguidão no acto de filmar que não deixa qualquer dúvida quanto à essencialidade dessa acção como necessidade vital.
Daí que nunca seja possível olhar para Mark de forma hostil, apesar de se tratar de um homicida, num trocar de papéis e de culpas (mais uma vénia a Hitchcock), em que a vítima (Mark, torturado pelo pai) se torna perpetrador, em que a criança filmada se torna o homem que filma, em que a câmara é membro biónico e é arma, e em que quem mais vê é cego (a argúcia da mãe de Helen, que “lê” correctamente os passos nervosos de Mark no andar de cima).
Quando Mark sai com Helen para jantar, é ela quem lhe lembra que talvez pudesse deixar para trás a câmara de filmar. Ele sente-se despojado, hesita, falta-lhe aquele membro que se tornou parte dele próprio. Há nele um tique nervoso de pegar na câmara e filmar, porque a sua visão depende do olho da câmara. Nenhuma cena é tão capaz de mostrar a dependência de Mark do acto de filmar quanto a sua imagem de costas, colado à tela, como um cristo, a mãe de Helen que o afaga a ele e à tela maternalmente, e ele agarrando-se à tela com desespero – a tela que lhe deu tudo e que deixou fugir aquilo que ele mais desejava.


E, contudo, esse Mark que não vê é o Mark impoluto. O Mark sem câmara é um homem que se livra das suas obsessões e compulsões criminosas e voyeuristas, é um homem “normal”. É ele mesmo a afirmar “se não te vir, não te farei mal”, porque o rosto atrai a câmara, e o rosto tomado pelo medo torna-se irresistível. E é aí que a câmara se torna arma, como o desembainhar de uma espada. Se em Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) James Stewart disparava com a câmara fotográfica, cegando a vítima antes do decesso, aqui a câmara vai mais longe, tendo nela acoplada a arma que provoca a morte.
E, na verdade, o que é a normalidade? O pai de Mark era um homem das ciências extremamente conceituado, um académico ilustre. E, simultaneamente, era um torturador, um pai que era capaz de aproveitar-se do seu filho e traumatizá-lo de forma permanente de modo a servir o seu trabalho e os seus estudos (que terão ajudado muitas outras crianças, certamente, mas em desfavor do seu próprio filho). Difícil será resistir a tentação de especular se o facto do pai de Karlheinz Böhm ser uma personalidade de renome no mundo das artes, o grande maestro Karl Böhm, não adicionará camadas à construção da personagem de Mark Philips.
Mark é um homicida, mas consegue suscitar a simpatia do espectador devido à sua condição de vítima (o lado mais sombrio do austríaco Karlheinz Böhm, uma certa tendência sádica ou perversa, seria descoberto anos mais tarde por Rainer Werner Fassbinder). A obsessão de Mark, que transparece em cada gesto, é a sua verdadeira força motriz, tornando-o tanto trágico quanto enigmático. Conforme referíamos mais acima, esta obsessão encontra paralelismo noutras figuras do universo fílmico de Michael Powell, nomeadamente na personagem interpretada em The Red Shoes por Anton Walbrook, também ele austríaco, nascido Adolf Wohlbrück (e tendo abandonado o nome Adolf por motivos fáceis de descortinar).
O cinema britânico da década de setenta teve também os seus retratos de assassinos em série, em filmes como 10 Rillington Place (Violador de Rillington, 1971), de Richard Fleischer, ou The Offence (O Delito, 1973), de Sidney Lumet, ainda que em tons bem mais sombrios, numa austeridade que não deixava qualquer lugar a empatias ou comiseração. Peeping Tom situa-se bem longe destes terrenos, num technicolor muito powelliano, mas também algo nauseante – bem mais próximo de Frenzy (1972), de Alfred Hitschcock, onde Anna Massey, que aqui vemos como Helen, acabava num saco de batatas em avançado estado de rigidez cadavérica. Uma paleta de cores vulgar, que poderia ser de um filme de comédia da série Carry On, mas que aqui se torna apenas sórdida.

Esta vulgaridade manifesta-se de forma subtil no breve episódio em que um cliente, nervoso, pede para comprar um jornal, seguido de outro, com o intuito de dissimular o seu verdadeiro propósito: adquirir um conjunto de fotografias “picantes” que ali são também comercializadas, acabando por deixar os jornais esquecidos em cima do balcão. Nesta vulgaridade da cor, mais uma vez é possível encontrar a rima hitchcockiana, desta vez com Marnie (1964), filme frequentemente criticado pelos seus cenários flagrantemente artificiais (claramente passando ao lado do verdadeiro artifício que é a própria Marnie). Marnie é outra protagonista levada ao crime no decurso de um trauma de infância, outra candidata a uma leitura fácil à luz da psicanálise – “You Freud, me Jane?”.
No final, é a morte que prevalece, mas a vida de Mark parece, ainda assim, mais autêntica do que outras existências, porque é composta de um conjunto de objectos, de coisas palpáveis, de latas de filme guardadas num armário. Trata-se de uma vida que pode ser reconstituída em película, desde a infância até à morte. Talvez o mais relevante seja, todavia, aquilo que escapa a esse registo, o que não ficou imortalizado pela câmara, mas que, ainda assim, continua a ressoar. Como nos nossos ouvidos ressoa a confissão melancólica de Mark: “Whatever I photograph, I always lose.”
Peeping Tom pode ser visto na plataforma Filmin.