A carreira de Pedro Borges na distribuição cinematográfica confunde-se com o cinema que vemos em Portugal para lá das majors norte-americanas. Responsável pela Atalanta Filmes durante mais de 15 anos, desde 2006 que dirige a Midas Filmes, que não só produziu Sangue do Meu Sangue (2011) de João Canijo como já lançou em sala e editou em DVD filmes de autores tão fundamentais quanto Bresson, Tarkovski, Godard, Moretti, Varda, Cassavetes, Kiarostami, Leigh, Pialat ou Pedro Costa. Na entrevista que concedeu À pala de Walsh, mostrou um espírito aguerrido e frontal na defesa do cinema e não se coibiu de lançar um olhar cáustico sobre temas tão variados quanto os festivais, a televisão ou o sistema de financiamento cinematográfico.
Trabalhou durante muitos anos na Atalanta, porque saiu? Há uma ideia de dissidência na formação da Midas?
A Atalanta surge em 1989, numa altura que hoje é difícil imaginar. No essencial, a situação não era muito diferente do que é hoje, com uma predominância absoluta do cinema das majors americanas. Com uma excepção: o cinema Quarteto, um cinema com muitas limitações a nível estrutural (ecrãs pequenos, acústica má,…). Durante 15 ou 20 anos, toda a gente via ali os filmes porque era o único sítio que existia. O Quarteto já estava a desaparecer nessa altura e foi de uma situação-limite que a Atalanta surgiu. A questão é que havia um certo tipo de pessoas que queriam ver um determinado tipo de filmes, mas esses filmes não estreavam cá (ou estreavam muito episodicamente). Nessa altura, a segunda metade dos anos 80, a situação era trágica e qualquer trabalho que se começasse a fazer era bom. O problema é que a distribuição é uma actividade muito pouco apoiada a nível público. As políticas públicas sempre deram muita importância à produção e muito pouca importância aos outros sectores. Nos últimos anos surgiram alguns novos produtores e a renovação dos cineastas foi sendo feita, mas surgiram muito poucas pessoas na área da distribuição. Esse é um dos problemas que continuam. Basta ver que eu já não sou novo, o Paulo Branco [Leopardo Filmes] é velho e o Luís Apolinário [Alambique] também já não é um jovem. Surgiram pessoas para fazer festivais, para fazer festarolas. Acho que se deve ser cruel com os festivais. Os festivais devem ser a excepção e não a regra (como acontece nos outros países todos).
Porquê?
Porque um festival concentra um acontecimento num período de tempo muito curto e o que vale é o que dura 365 dias. O que vale é aquilo que cria um público, uma comunidade que partilha as mesmas visões e as discute. O que cinemas como o Monumental, o King e o Nimas fizeram, apesar de haver sempre filmes que não estreiam, foi que os filmes mais importantes estreavam sempre e criou-se um conjunto alargado de pessoas que os vêem ao mesmo tempo, que os discutem, que os avaliam, re-avaliam e contrapõem. Os festivais criam um acontecimento em que um número muito reduzido de pessoas vê muitas obras e ao fim de pouco tempo, as pessoas que viram 20 ou 30 filmes já só se lembram de 3 (e muito raramente deixam lastro). Não quer dizer que isso não tenha importância, porque deve haver festarolas de vez em quando, mas o que é importante é que no resto do ano haja uma actividade regular.
Nos anos que já leva de exibição, houve algum momento epifânico, em que visse um filme que soubesse ter de estrear, desse por onde desse?
A actividade de distribuição é uma actividade de divulgação de obras artísticas mas sobretudo uma actividade comercial. Um filme produzido com apoios públicos pode ser extraordinário e ter apenas 3 mil espectadores, mas está financiado a cem por cento, enquanto que na distribuição, para todos os efeitos, os filmes têm de ter uma relação com o dinheiro. Não basta dizer que se quer absolutamente estrear um filme, se me pedirem 50 mil euros não posso estreá-lo. Se quero que a empresa continue de porta aberta, se quero pagar ordenados, rendas e impostos, tem de haver um equilíbrio entre o que quero e a realidade. O que não quer dizer que não se estreie o Béla Tarr [A torinói ló (O Cavalo de Turim, 2011)] ou o Godard [Film socialisme (Filme Socialismo, 2010)] – filmes que sabemos que irão ter uma exploração comercial negativa. Tem que haver outros que paguem essas exibições. Há casos em que percebemos que o filme vai perder dinheiro, mas temos capacidade para encaixar essa perda e há filmes que têm absolutamente de estrear. Por exemplo, a Midas comprou o Film socialisme do Godard antes de ele estar pronto, porque sabíamos que o filme tinha de estrear de certeza absoluta. O lado mais pessoal de envolvimento existe, mas tem de ser compensado. Também é importante estrear alguns filmes, mesmo que não estejamos apaixonados por eles, porque mais ninguém os quer estrear. Outro exemplo, o último filme da Marjane Satrapi [Poulet aux prunes (Galinha com Ameixas, 2011)] não está ao nível do anterior, mas ela tem talento e vamos estrear o filme mesmo sabendo que é bastante mais limitado do que o Persépolis (2007). Talvez o terceiro seja melhor, mas há que respeitar o trabalho de realizadores com talento.
Há dois filmes que a Midas comprou cuja exibição parece ser constantemente adiada: Autoreiji (Outrage, 2010) de Takeshi Kitano e Jiabiangou (The Ditch, 2010) de Wang Bing. Qual o motivo deste atraso? Face a casos como estes admite que os espectadores vejam os filmes de forma ilegal?
Isso é incontrolável. Agora, faz parte da vida de todos os dias adequar os nossos desejos à realidade. O atraso no filme do Wang Bing é menos significativo do que parece visto de fora. O facto de o filme ter sido mostrado em Veneza há dois anos não quer dizer que pudesse ter sido estreado há dois anos – os cineastas chineses trabalham em condições muito específicas, às vezes os filmes podem ser estreados em festivais e não noutros países. Aliás, em França, país co-produtor, o filme só estreou há menos de seis meses. Portanto em Portugal não está tão fora de tempo assim. O Outrage… quando um distribuidor não tem uma ligação própria e directa a salas… temos um bom entendimento com as salas com que trabalhamos, mas não podemos dizer “Queremos estrear um filme daqui a três semanas, está bem?”. Há muitas condicionantes. Podia ser pior, podíamos já ter fechado a porta… Isto parece tudo arte e cultura mas não é: é só comércio. Não se pagam com cinefilia e boa vontade os ordenados, os impostos, a promoção dos filmes, pagam-se com euros.
Compreendo, mas visto de fora parece que a exibição cinematográfica portuguesa está em roda livre: estreiam às vezes oito filmes por semana mas continua a haver falhas e atrasos.
No quadro de estreias actual, 50% ou mais são da mesma empresa, que tem em Portugal mais de metade do mercado. Parte significativa dessas estreias acontece porque as delegações das majors nacionais não decidem o que mostram, podem discuti-lo, mas a decisão final não é deles.
Tendo em conta essas limitações, houve filmes que tenha tentado estrear e não tenha conseguido?
Se calhar gostava de distribuir o último Resnais [Vous n”avez encore rien vu (You Ain”t Seen Nothin” Yet, 2012)], que foi parar a outro distribuidor. Ou o último do Loznitsa [V tumane (In the Fog, 2012)], um filme que é para perder dinheiro e que não fará muitos espectadores, que foi para a Alambique. Isso é comum, não me faz impressão nenhuma. Agora, é pior se tivermos uma relação pessoal com o realizador. Ter-me-ia custado perder o Habemus Papam (Habemus Papam – Temos Papa, 2011) do Moretti, um senhor que conheço há muitos anos. E aí tem a ver com a questão pessoal. São coisas que têm pouco interesse público, mas um distribuidor pode estar todos os dias a perder filmes.
Regressando à pergunta inicial: face aos atrasos (ou simples esquecimento) da distribuição, porque motivo não pode o espectador aceder aos filmes por outra via?
O problema dos downloads ilegais é que os filmes têm uma vida económica própria e a pirataria esquece isso, ficando destroçada toda a actividade económica que gira em torno do cinema. A pirataria está a pôr em causa a actividade económica que produz esse filme. Se, por exemplo, você pode comprar o Sangue do Meu Sangue por 4,99 euros, se o piratear deve ser-lhe tirado o acesso à Internet, não tenho dúvida nenhuma. Quanto aos outros filmes, pode sempre encomendar na Amazon. Hoje há mil maneiras de ver os filmes legalmente.
Mudando de assunto, saiu recentemente a notícia que o director da RTP2, Jorge Wemans, está de saída. Acha que vai mudar alguma coisa?
Acho que ele cumpriu a sua missão, que foi destruir a RTP2. Disso não tenho dúvidas nenhumas. Acho que a RTP2 não tem que ir à medição de audiências, mas foi reduzida à absoluta irrelevância a nível cultural. A RTP2 hoje pode acabar que ninguém se levanta para a defender. O que acho grave é que se até para o Dr. Jorge Wemans o que aí vem é mau, então o que aí vem é uma coisa absolutamente indescritível. Tudo isto começou a ser destruído há 15 anos. Durante o governo-relâmpago de Durão Barroso (e os seis meses de macacada de Santana Lopes), o Morais Sarmento – que hoje toda a gente elogia – criou aquela coisa ridícula que era a 2. E o Manuel Falcão, que é muito boa pessoa, o que fez foi começar a destruir aquilo tudo com a história de pôr os bombeiros a fazer programas de televisão e essa tralha toda da “sociedade civil”. Quando o Dr. Wemans tomou conta daquela porcaria em 2006, só faz a coisa continuar a descer. De repente, o cinema desapareceu e agora só temos National Geographic e tudo o que é criticado nas televisões públicas: a programação vertical; um programa por hora, igual todos os dias menos aos fins-de-semana, com merdas que têm de durar 4 horas sem parar. Foi esta lógica instituída há 5 anos que deu cabo daquilo. Ser o Jorge Wemans ou a Paula Moura Pinheiro é indiferente.
Não há, então, nenhuma fulanização no assunto?
O Wemans é capaz de gastar 120 mil euros numa série americana que passa nas Foxes e nessas merdas todas e depois oferece 5 mil euros por um documentário. Enfim, não quero falar muito disso.
Qual é, na sua opinião, a relação entre a crítica e as distribuidoras? Há inimizades e alianças, ou cada um faz o seu trabalho?
Em todas as actividades, como o país é pequeno e a cidade de Lisboa é pequena, é fatal que as pessoas se conheçam. Agora, a avaliação do carácter das pessoas deve ser feita por quem está do outro lado. Não me interessa se o crítico A, B ou C é honesto, parto do principio que quem lhes dá trabalho e quem os lê também é suficientemente honesto para o perceber. Acho que há um ou outro caso mais complicado hoje em dia, mas são coisas que se resolvem dentro do meio. Hoje em dia, conheço muito poucas pessoas novas na crítica, porque me afastei, conheço o João Lopes, que é da minha idade, o Eurico de Barros, que é um pouco mais novo ou o Vasco Câmara, que começou a escrever há 20 anos, e não acho que as opiniões deles sobre os filmes que eu distribuo ou produzo tenham a ver comigo.
Mas acredita que quando alguém escreve uma crítica a um filme, positiva ou negativa, é por uma questão de opinião? Ou pode haver interesses económicos que desvirtuem esse processo?
Há pessoas que gostam de ter mais contactos com as majors americanas porque gostam de ir a junkets em Paris ou em Madrid. E acho que há uma sobreposição grande, em Portugal, acerca do que é jornalismo, do que é crítica e do que é publicidade. Eu trato o Vasco Câmara por tu e, se ele escrever qualquer coisa que me desagrada, posso mandar-lhe 30 emails a insultá-lo. Ainda esta semana insultei o Jorge Mourinha, que conheço há não sei quantos anos. E vou-lhe dizer uma coisa. O que pode acontecer é estrearmos um filme que passou num festival e o crítico A, B ou C gostou muito e acreditamos que por isso o filme possa ter maior destaque. Agora, a importância que a crítica tem no sucesso de um filme é muito reduzida. Posso dizer-lhe que o Ípsilon deu um grande destaque ao Michael (2011) de Markus Schleinzer, o filme austríaco distribuído pela Alambique e o filme não conseguiu fazer mais de 900 espectadores As pessoas são o que são e o país é o que é. O boca-a-boca continua a ser a melhor publicidade entre os filmes. E para um filme explodir, tem de ter códigos narrativos mais aproximados do normal, senão não vende. O João Canijo fez 22 mil espectadores com um filme pesado e difícil, mas não se pode comparar com o Homem Aranha.
Nesse sentido, compreende-se o discurso de pessoas como Nicolau Breyner que falam da necessidade de indústria cinematográfica em Portugal?
O Nicolau Breyner fez 4 mil e 500 espectadores com o seu último filme, um filme de indústria. E espero que faça muitos mais, pois está a destruir milhões de euros aos portugueses. Fazer um filme comercial é fácil: faz-se um filme com um orçamento de 1 milhão de euros e o produtor ganha um milhão e um, não é ir ao Estado buscar 800 mil euros, ter o filme financiado a cem por cento e o produtor tirar 200 mil para si. Isso não é cinema comercial.
O meio que João Botelho encontrou para mostrar O Filme do Desassossego (2010) parece, neste contexto, uma alternativa?
Há alguns equívocos sobre essa questão. Se eu fosse mostrar-lhe os sítios por onde andou o João Canijo a mostrar o Sangue do Meu Sangue, não era muito diferente. De há 20, 22 anos para cá, os filmes passam nesse circuito de província. Todos os realizadores fazem muitas viagens, o Pedro Costa também faz muitas viagens para promover os filmes, vai ao Porto, a Viana do Castelo, a Faro, etc. A diferença é que o João Botelho fez mais e deu a cada sessão um carácter de acontecimento, por ser um filme sobre Fernando Pessoa e, especificamente, sobre o Livro do Desassossego. Esse é um método que pode ser episódico, mas o que é preciso é que haja bons filmes a ser exibido nesses locais e, entre esses bons filmes, filmes portugueses. E essa digressão do filme sai cara: é preciso levar duas pessoas de véspera para montar o projector, uma terceira viatura para levar o realizador e que fiquem todos a dormir no local. É algo que só se pode fazer com uma certa estrutura montada.
Luís Urbano, da Som e a Fúria, criticou o facto de Tabu (2012) ter sido preterido por Sangue do Meu Sangue na corrida às nomeações para Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, com o argumento de que o filme de Miguel Gomes granjeou mais atenção internacional. Como comenta estas informações?
Não foi preterido, havia vários filmes, entre os quais estavam esses dois. Posso, antes de mais, dizer que não fiz absolutamente nada para que o filme fosse escolhido. Acho mal que a responsabilidade da escolha tivesse passado para a Academia do Cinema. Aquelas cinco pessoas escolheram… paciência. De resto, é-me igual o que o Luís diz, cada um tem a sua opinião. Ontem (11 de Outubro) houve uma notícia no site Indiewire que me parece ser reveladora do equívoco do que o Luís disse. Fizeram a lista dos cinco filmes mais prováveis para nomeação e de dez outros que podem ter hipóteses. Desses dez, o filme do Canijo está em oitavo. Esteve em Toronto com muito boas críticas e teve uma venda para a HBO Latin America, o que prova que o Luís fala um pouco de cor. Quando sair a lista das nomeações, aí se verá se estamos ou não a trabalhar bem.
Quanto à nova Lei do Cinema como avalia estas mudanças? Estaremos daqui a 3 anos a dizer que precisamos de uma lei nova?
Nunca estaremos livres de haver um político estúpido a achar que vai inventar a roda. Ou de aparecer outra Gabriela Canavilhas que, em 18 meses, nem sequer conseguiu levar a lei dela a Conselho de Ministros, quanto mais fazê-la aprovar. Acho que esta lei é um avanço, vamos ver se a conseguem pôr em prática. A coisa tem-se arrastado. Na tragédia que é o governo e no estado de tragédia em que está o país, há que baixar um pouco as expectativas. Receio que o Secretário de Estado não fique lá muito tempo [à data era Francisco José Viegas ainda o Secretário de Estado da Cultura, entretanto demitiu-se por motivos de saúde]. Acho que é bom haver mais fundos para a produção mas, esquecendo a exibição, a distribuição e a promoção de filmes no estrangeiro, acho que ficaremos na mesma. Fazem-se mais filmes, há mais gente com trabalho, porreirinho, mas se os filmes não puderem ser exibidos como deve ser ou não puderem passar fronteiras, o avanço será sempre limitado. De resto, as televisões vão continuar a roubar e vai continuar a haver filmes que não prestam para nada.
Porque razão são os cineastas portugueses mal vistos pela generalidade da população portuguesa?
Vamos ter de viver com isso a vida toda, não me incomoda nada. Eu tenho andado este ano todo a pagar dezenas de milhares de euros ao IGAC para fazer DVDs e o ICA deve-nos cem mil euros em protocolos assinados, que não paga. Não acho que seja só no cinema. O problema do cinema aqui é que mexe em mais dinheiro do que a pintura ou a escultura e a opinião jornalística e os taxistas pensam que somos todos chulos. O público, não. Acho que isso mudou e as pessoas já respeitam o Manoel de Oliveira, mesmo que por ele ser velhinho e mesmo que não vejam os seus filmes.
A morte do cinema, é verdade ou é retórica?
Isso é para as pessoas se entreterem. O grande cinema deixou de ser arte popular. Se o John Ford ou o Hitchcock hoje fizessem filmes, não tinham espectadores nenhuns. Mas não foram os filmes que mudaram, foram as pessoas. O tempo de filas, semanas a fio, para ver filmes do Bergman ou do Truffaut acabou.
Mas porque é que acabou? Foi o blockbuster?
Não, foram as pessoas. Havia um certo tipo de pessoas com estatuto cultural e social para quem era obrigatório ir ao cinema ver esse tipo de filmes (como hoje é obrigatório beber 3 litros de cerveja ao sábado à noite ou ir ao futebol dar urros) e que ficaram aliviadíssimas quando isso deixou de ser obrigatório.