Um fim do mundo (2013), a primeira (e até agora única) ficção de Pedro Pinho, é um filme de uma serenidade invulgar. Filmado num preto-e-branco delicado, em película de 16mm, e mal passando uma hora de duração, esta média metragem existe em relação com as curtas de Filipa Reis e João Miller Guerra, Bela Vista (2012) e Cama de Gato (2012), formando uma trilogia dedicada ao bairro da Bela Vista em Setúbal. O filme de Pinho surge por isso como o resultado de uma trama de olhares cruzados com esses dois outros filmes, mais ainda quando personagens, locais e situações se cruzam e se repetem de filme para filme. O inusitado da produção e a qualidade rara das suas pretensões formais e estéticas destacam-no do universo cinematográfico nacional recente. Mas paradoxalmente esse destaque não se repercutiu numa maior visibilidade — a sua passagem pelas salas nacionais foi fugaz.
O projecto do filme focava-se inicialmente num conjunto de adolescentes da classe média de Setúbal. Filipa Reis sabia do projecto e propôs a Pinho uma translação do enredo do filme para o bairro da Bela Vista — consequência de um edital da câmara municipal de Setúbal que procurava financiar filmes que representassem o bairro de modo diferente do que era a imagem televisiva dos conflitos inter-étnicos; Reis, Guerra e Pinho concorreram e ganharam o concurso.
A trilogia, escrita por Pinho, construiu-se assim de um modo orgânico mas com naturezas distintas (poder-se-ia dizer que cada filme possui uma ontologia do olhar própria): (1) Bela Vista é um documentário no sentido mais tradicional do termo, que procura observar distanciadamente o bairro dando especial enfoque às questões propriamente arquitectónicas (e à forma como os habitantes as foram apropriando e modificando); (2) Cama de Gato por sua vez parte da experiência concreta da sua protagonista para construir um percurso ficcional que a prolonga e dramatiza, uma docu-ficção que se propaga depois a outros filmes da dupla Reis-Guerra e (3) Um fim do mundo “faz o percurso inverso” de Cama de Gato, parte de um guião ficcional (ainda que escrito de modo lato, apenas com situações e personagens sem grande profundidade) para ir ao seu encontro na realidade do bairro e dos actores-personagens com o intuito de resolver essas situações na base da improvisação — “As coisas eram muito construídas na relação, durante a rodagem. (…) Havia lugar para o improviso, para o imprevisto”.
Assim os meninos e meninas de classe média que Pinho imaginara viraram jovens do bairro social, mas nem por isso o projecto ter-se-á alterado muito. O grupo tornou-se mais heterogéneo, é certo (com pretos, ciganos e tugas, como se intitulam), como o próprio bairro que abarca várias culturas. Mas nem por isso Um fim do mundo se tornou, ou se limitou, a filme-de-bairro-social (uma categoria à parte no cinema português). A aproximação à Bela Vista deve-se portanto ao interesse de Reis-Guerra — que antes se haviam focado no Casal da Boba na Amadora, Li ké terra (2010) e Nada Fazi (2011) —, mas o olhar de Pinho estava mais interessado noutras coisas: numa certa representação da adolescência, num dia de Verão, numa ida à praia, no grão da película em preto-e-branco, num certo cinema minimal de cores também elas minimais e uma narrativa minimal (um grupo de amigos do secundário vai à praia no final das aulas e volta ao fim do dia)— “parece que não se passa quase nada, estamos ali a observar a natureza dos olhares, das proximidades e das distâncias entre pessoas. É nesse sentido que acho que é minimalista. Depois o preto e branco é um tratamento estético de trabalhar essa ‘redução ao essencial’”.
Um fim do mundo tem portanto uma inspiração (nos dois sentidos da palavra) que remete para certos filmes da nouvelle vague — a liberdade de um filme feito sem mapa, a câmara e os actores à procura da fagulha de uma narrativa qualquer, ao ponto de até a duração ser um enigma, “durante o processo de escrita eu percebi que ia ser uma curta bastante longa mas só na montagem é que percebi que tinha mais do que 60 minutos”. Esta aproximação é assumida por Pedro Pinho que, em entrevista, afirmou que exactamente na nouvelle vague “para fazer filmes não era preciso um aparato gigante, bastava uma câmara, som, uma história mínima e pessoas. E descobre-se a verdade que há nas pessoas, nos olhares, nas conversas, nas relações.” acrescentando noutra entrevista que gosta “especialmente [de] Jean Rouch. Gosto da ideia de ter uma estrutura narrativa mínima e depois fazer as pessoas viverem, sentir a vida como ela é, deixa-la brotar deste dispositivo narrativo”. Esta tendência é igualmente visível, de modo diferente, em Cama de Gato aquando da confissão da protagonista que cita, por portas travessas, o interrogatório de Le quatre cents coups (1959).
O poder cândido de Um fim do mundo está no modo como subtilmente expõe as desigualdades sociais que retrata e, simultaneamente, desdenha o dito realismo social.
A escolha por um fotografia granulosa a preto-e-branco resulta de uma série de factores que já aqui anunciei, a redução ao essencial, a referência cinéfila, e uma terceira razão, produzir uma unidade entre imagens produzidas em digital (na rodagem de Bela Vista e Cama de Gato) e o grosso em analógico. Este é a meu ver o grande achado do filme de Pedro Pinho, a forma como consegue fechar(-se n)um universo fílmico num jogo que recoreografa as imagens dos outros filmes da trilogia. Assim o episódio do assédio faceboockiano da professora no início do filme de Pinho aproveita a sequência idêntica de Cama de Gato omitindo a sua protagonista, ou por exemplo, o apagão no final de Um fim usa um plano de Bela Vista de um candeeiro a desligar-se que parecia nesse filme um fragmento inocente, mas que desta vez é integrado de modo subtil na narrativa. Ou ainda, e aí o cruzamento é extraordinariamente bem cerzido, o caso do assalto ao Lidl que em Cama de Gato é um episódio recorrente que aparentemente se limita a dar atmosfera ao bairro e em Um fim torna-se um dos momentos chave do filme. Esta capacidade de trabalhar a inter-textualidade entre os filmes, ao mesmo tempo preservando a qualidade documental dos projectos e a sua ligação ao bairro e às suas pessoas é uma que revela um balanceamento notável entre os intuitos dramatúrgicos do argumentista/realizador e a sua abertura para receber do real o sumo da própria ficção.
No entanto Um fim não se encerra num festival de (auto-)referências e piscadelas de olho cinéfilas. Subliminarmente as questões de luta de classes estão presentes, o que se literaliza aquando da viagem de ferry até à marina de Tróia e ao seu casino (e todo o complexo turístico). Os dois espaços estão a escassos minutos de distância e o choque não podia ser maior. Pinho, no entanto, sumariza esta oposição com a sequência da ‘selfie‘ que os miúdos tiram diante do enorme sapato feito de panelas de Joana Vasconcelos. Talvez o episódio tenha surgido acidentalmente, é possível e provável até, mas não deixa de ser certeira a escolha da obra de Vasconcelos: um trabalho que mistura uma visão nacionalista novo-rica da tradição com o ready made kitsch da arte contemporânea. A sequência do selfie expõe este projecto ideológico ao mesmo tempo que participa do poder icónico da obra de Vasconcelos e ridiculariza o decorativismo snob da peça e do Casino que a acolhe — fazendo lembrar, também de modo travesso, a sequência do Louvre em Band à part (1968) de Jean-Luc Godard. Em certa medida o filme já antecipava o olhar crítico do desenvolvimento turístico que seria o foco do filme seguinte de Pinho (co-realizado com Luísa Homem), A Cidade e as Trocas (2014).
O poder cândido de Um fim do mundo está exactamente no modo como subtilmente expõe as desigualdades sociais que retrata e, simultaneamente, desdenha o dito realismo social, preferindo um cinema encantado com as texturas da areia, a temperatura dos corpos jovens e a sensibilidade de uns miúdos a fazer de si mesmos, fingindo ser mais qualquer coisa. É portanto sobre o fim da adolescência, da escola, do final de um período da vida que, para quem o vive, é de facto um fim de um mundo, por não parecer haver outro que o substitua. Daí que se fique com a vontade de dormir ao sol nas areias finas de Tróia, para que o fim do dia não chegue e com ele o apagão da juventude.
Este texto, continua a rubrica Cinema em Casa onde regularmente o À pala de Walsh fará os destaques de lançamentos DVD/Blu-Ray /VOD no mercado nacional. Um fim do mundo pode ser visto em streaming na mais recente plataforma de VOD nacional, a Filmin. O À pala de Walsh, em colaboração com a Filmin, dá a possibilidade ao leitor de se habilitar ao acesso temporário à plataforma de forma a ver o filme de Pedro Pinho. Um fim do mundo está acessível para visionamento na plataforma streaming Filmin. Para se inscrever no sorteio de dez códigos que temos para oferecer basta que partilhe nas redes sociais o link desta crítica e envie um mail para apaladewalsh@gmail.com com o seu primeiro e último nomes e a resposta à seguinte pergunta:
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