Michael Caine cabe para mim na categoria dos requintadíssimos actores perversos. Apesar de nos últimos anos estar remetido a papéis mais ou menos anódinos de avôzinho lacrimejante – à cabeça, os filmes do Homem-Morcego de Christopher Nolan –, a verdade é que não houve melhor actor a temperar refinamento com perversão. Um gélido sedutor? Os filmes recém exibidos nos canais TVCine, The Hand (A Garra, 1981) e Deathtrap (Armadilha Mortal, 1982), devolvem-me à melhor face, ou melhor, às melhores “múltiplas faces” de Michael Caine – as de Sleuth (Sleuth: Autópsia de um Crime, 1972), as de Dressed to Kill (Vestida para Matar, 1980). São filmes sobre impotência, ciúme, frustração, jogos de máscaras. The Hand e Deathtrap estão separados por um ano, mas a distância entre o resultado é tão grande quanto a dimensão do talento que distingue Sidney Lumet de Oliver Stone. Não me interessa o double bill, mas as consequências do double bill: o terceiro filme que resulta deste emparelhamento, aquele que diria ser intrinsecamente a crítica. Os dois títulos são casados por uma intriga movediça onde raramente conseguimos ler o rosto de Caine ou antever até onde a sua mente o – e nos – vai levar. Está ele a jogar, consigo e com os outros? Até onde nos levará a sua sedutora e gélida perversão? Dois filmes, fundidos entre si, para uma crítica só – eis a minha proposta para esta Civic TV.
Quando nas mãos certas, o teatro encontra no cinema um excelente segundo palco. Cineastas como Richard Brooks, Joseph L. Mankiewicz, Joseph Losey e Mike Nichols foram magistrais adaptadores de peças de teatro ao grande ecrã. A teatralidade, como está claro, não passa necessariamente pela adaptação de uma peça; é, mais que isso, um “modo de pensar”, uma forma de organizar, tantas vezes condensando e acumulando, o drama. É também uma maneira de lidar hábil e elegantemente com um certo excesso: de trama, de gestos, de expressões, de cor e décor. Cineastas como Rainer Werner Fassbinder, John Cassavetes, Alfred Hitchcock e Manoel de Oliveira cultivaram sempre um certo gosto pela teatralidade, mesmo que não tenham adaptado muitas peças de teatro – ou mesmo nenhumas – ao longo da sua carreira.
Sidney Lumet foi um dos mais versáteis, prolíficos e brilhantes cineastas da sua geração. Ele pertence à primeira geração de realizadores que se segue à derrocada da Hollywood clássica e à concomitante afirmação da televisão como campo de emprego e, nalguns casos, experimentação. Depois de ter realizado vários filmes e episódios de séries televisivas, Lumet estreia-se no cinema com um filme teatral: 12 Angry Men (Doze Homens em Fúria, 1957). Revela, ao longo da sua carreira, um acutilante olhar sobre a natureza humana, sendo esta habitualmente retratada como um intenso campo de batalha. A sua obra é eivada de uma dimensão profundamente moral e está atravessada por um apetite especial por tragédias de homens solitários nas malhas da corrupção política, moral e mediática – Dog Day Afternoon, Network, Serpico, Prince of the City, etc. Com isto, Lumet tornou-se um exímio, e implacável, comentador da podridão humana ao longo dos anos. Deathtrap é tanto uma obra de teatro – adaptação de uma peça – como uma obra contra o teatro, em permanente auto-dissolução. Esta é uma comédia ou tragédia – não sabemos se rimos ou se gritamos de espanto ou choque – acerca de um dramaturgo a quem secou a fonte de inspiração e criatividade. Caine procura, então, o sucesso noutras paragens, noutro tipo de palcos. Desde logo, o da sua casa no campo, local sossegado para escrever e passar algum tempo de qualidade com a sua doce mulher. Certo? Errado. Este dramaturgo especializado em thrillers não consegue escrever uma nova peça porque já está a viver uma, repleta de twists e contra-twists. Uma “tramédia” da qual ninguém sairá ileso.
Stone e Lumet, Caine e Caine, a mão morta que quer viver, o argumento que não existe mas que vai existir, nem que acabe escrito por si mesmo, por uma qualquer mão. Mão de ninguém, que seja!
Como cruzar esta trama com The Hand, filme algo obscuro realizado por Oliver Stone (apenas a sua segunda longa-metragem) um ano antes de Deathtrap? Os dois partem da mesma “fonte seca”. As duas histórias têm no centro um Michael Caine que já não pode transformar a vida em arte, pelo que cede à tentação – diabólica, como veremos – de tornar a arte em vida. O desenhador de bandas desenhadas de The Hand perde uma mão num insólito acidente de carro. O acidente provoca um volta-face na sua vida profissional, mas também sentimental. Ele começa a ver o casamento à distância, porque a mão perdida não o larga – a sua vida virou intriga fantástica de BD? Se no início a ausência do membro é como um fantasma que assombra a psique do protagonista, a certa altura a ausência torna-se numa presença e a assombração numa sucessão de actos criminosos, reais, sonhados ou as duas coisas ao mesmo tempo.
O artista que não cria, que se deixa assombrar pela sua impotência, não está longe de ser isso mesmo: um sociopata dos mais perigosos. Falo de The Hand ou já saltei de novo para Deathtrap? O Caine dramaturgo conluia-se com o seu amante, jovem prodígio do teatro interpretado magnificamente por Christopher Reeve, para se ver livre da mulher. O xadrez da narrativa é complexo, mas, findo o jogo, ele e ele estão finalmente sós. Uma fantasia liga-os: Deathtrap, a peça que no início é usada como isco para “enredar” a mulher no plot do seu próprio homicídio, mas que vira, a meio do filme, o principal argumento deste filme-peça. O velho cliché é dito, a certa altura, por Caine: uma boa peça escreve-se sozinha. É o que se passa com Deathtrap, cuja existência como efectiva peça de teatro de sucesso parece tão inevitável como a mão que empurra as personagens de The Hand para a morte.
A mão sem corpo de Stone é a mão que escreve o argumento-peça no filme de Lumet. Em The Hand, depois do acidente, o médico alerta Caine que provavelmente nunca se livrará da sensação de ainda ter a mão que perdeu. Essa sensação-fantasma existe em Deathtrap, mas é aqui puramente mental ou psicológica: o dramaturgo está embriagado com a ideia do sucesso antigo que lhe granjeou a peça Murder Game. A vontade da mão amputada contra a vontade da mente amputada geram, entre filmes, uma narrativa poderosa sobre a frustração e a loucura. Em crítica, os filmes deviam, quando possível, coser-se como as partes do corpo do monstro do Dr. Frankenstein. Não falo do diálogo entre os filmes, mas, de facto, de uma saudável fusão entre eles. Stone e Lumet, Caine e Caine, a mão morta que quer viver, o argumento que não existe mas que vai existir, nem que acabe escrito por si mesmo, por uma qualquer mão. Mão de ninguém, que seja!
The Hand é tão falsamente despretensioso quanto Deathtrap é falsamente pretensioso. Um cineasta tem a natureza humana como playground – Lumet, claro – ao passo que o outro está ansioso em diluir o divertissement macabro num tratado psiquiátrico, muito “caro”, sobre a loucura. Stone nunca foi fino ou inteligente. Lumet sabe jogar com o drama, dar facadas nas personagens e – quando deve – no espectador. Por exemplo, veja-se a forma como neste teatrinho diabólico a cartada da homossexualidade é jogada. Caine e Reeve amam-se, de facto, ou amam os seus egos de escritores enredados num jogo interminável?
Caine caracteriza Reeve como um sociopata. Este não contesta. Mas quem é o verdadeiro sociopata aqui? A colagem à homossexualidade é perigosa, mas muito fina. Não é que os dois sejam sociopatas por serem homossexuais, mas a homossexualidade aparece aqui como a máscara perfeita para ambos. Ninguém ousaria desconfiar que o grande dramaturgo vive com um homem “nesse sentido”, sobretudo depois de a sua mulher ter ido desta para melhor. O encobrimento não podia ser mais eficiente: Reeve será o novo secretário de Caine, dar-lhe-á alimento – luta, pica – para recuperar a inspiração que a sua mulher já não podia dar. A homossexualidade é espelho ou jogo sociopático. Eis a história de um braço de ferro entre dois dramaturgos, mestre e aluno, amantes entre si e do mesmo teatro, em cima de uma peça que se vai escrevendo à sua frente. Resta saber quem sobrevive para reivindicar a autoria e colher os frutos do garantido sucesso.