Para além dos filmes, todos os arquivos de cinema guardam outras coleções de materiais que ajudam a reconstituir todo o ciclo de produção de um filme, desde a rodagem, passando pelo laboratório, até à projeção em sala. Os documentos em papel como os guiões, revistas e livros de cinema, fotografias, cartazes ou os famosos “lobby cards” são talvez os documentos mais conhecidos deste género, quanto mais não seja porque muitos deles podem ser consultados diariamente no centro de documentação da Cinemateca, em Lisboa. No entanto, e apesar de ser tão antiga como as coleções de filmes e de documentos escritos e visuais, a coleção de aparelhos cinematográficos da Cinemateca é muito menos conhecida do público – embora uma parte muito pequena dela se possa visitar desde 2007 na Cinemateca Júnior (no Palácio Foz) e desde 2015 nas galerias do piso superior da sede da Cinemateca na Rua Barata Salgueiro. Tudo isto não passa, porém, e como escreveu João Bénard da Costa, de um “pórtico” simbólico do que poderia vir a ser, um dia, um verdadeiro museu do cinema.
O mesmo podia dizer-se de uma primeira apresentação destas coleções no palacete da Barata Salgueiro, alguns anos após a sua abertura em 1980. Escrevo “apresentação” porque a mostra tinha muito de “gabinete de curiosidades”, embora fosse acompanhada de legendas explicativas e também de um magnífico guia impresso, o Roteiro de Viagem pelo Museu da Cinemateca Portuguesa (editado em 1986). A museografia de cinema ainda vinha longe e por isso a “viagem” associava nas mesmas vitrinas prémios do SNI e a mais sortida memorabilia cinematográfica; para além de encenar, por exemplo, um “cantinho de Arthur Duarte” com focos de luz, cortinas e a sua cadeira de realizador (entre paredes forradas de fotografias de cena e de rodagem, e mais prémios). Para além de o palacete não ter sido nunca pensado, obviamente, para acolher uma exposição de peças daquela natureza, havia mais do que um precedente para aquela organização de objetos tocante, mas mirabolante: primeiro, os ecos do museu da Cinemateca Francesa, onde Henri Langlois, à maneira surrealista, associara livremente objetos, ideias e memórias (é ver La Cinémathèque française, de Jean Herman, 1962; ou as novas vitrines recompostas por Laurent Mannoni em jeito de homenagem, na nova Cinémathèque); e em segundo lugar, mais perto de casa, a personalidade excepcional de Manuel Félix Ribeiro, o primeiro diretor da Cinemateca e afincadíssimo colecionador, mas que também era prestidigitador amador e que, diz-se, deslumbrava as suas visitas tirando filmes e objetos das suas gavetas simulando intrincados passos de magia (era ver Félix Ribeiro, Dr. Celulóide, o documentário que Leonel Brito fez para a RTP em 1980).
Em 1996, a inauguração do ANIM permitiu reunir num só local as coleções de aparelhos (e de filmes e de tudo o resto) que andaram dispersas pelas várias instalações da Cinemateca que, recorde-se, passou pelo Palácio Foz, pelas instalações do IPC no Palácio Ludovice em São Pedro de Alcântara, pela atual Rua Barata Salgueiro, e ainda por vários cofres, desde os primeiros situados nas traseiras do Palácio Foz, até aos de Mem Martins, além de uma série de outros armazéns arrendados um pouco por todo o lado em Lisboa e arredores. As coleções de aparelhos no ANIM ficaram e ali continuaram a crescer fruto, primeiro, de muitas generosas doações e depósitos de colecionadores de câmaras e projetores de pequenos formatos, e depois de uma política sistemática de prospecção de objetos de “pré-cinema” (comprados em leilões, mas também recebidos através de empréstimos generosos como foi o caso da coleção de David Robinson) que acabariam por rechear a fantástica exposição permanente da Cinema Júnior a partir de 2007.
Após a transição para o cinema digital, estas coleções são fundamentais para se perceber como se rodava, montava, tirava e projetava uma cópia no tempo da película – o que não quer que não será igualmente interessante poder contar a mesma história para o vídeo e até para o próprio cinema digital: quem não gostaria de ver num museu, a par das câmaras usadas por amadores anónimos nos seus filmes de família ou da Arriflex de Manoel de Oliveira, a Panasonic de Pedro Costa, ou o primeiro projetor digital usado em Portugal?!
Se estas peças de museu permitem contar a história dessas tecnologias e dessas técnicas, uma parte mais pequena delas foi efetivamente usada na história do cinema português. E apesar de eu gostar muito de projetores e de as câmaras de filmar serem sem dúvida os aparelhos mais vistosos e mais conhecidos destas coleções, a verdade é que uma das minhas peças preferidas entre os milhares de equipamentos cinematográficos da Cinemateca é um gravador de som.
O Eurocord B é um aparelho de registo de som óptico (também chamado “câmara de fotossonoro”) do fabricante alemão Klangfilm-Tobis e foi adquirido pela Tobis Portuguesa em 1938. A sua célula foto-elétrica registava o som em película negativa de 35mm, numa banda de área variável. O Eurocord B era um equipamento portátil que podia ser montado no interior de um veículo, mas também podia ser usado num estúdio convencional. Funcionava em conjunto com uma mesa de misturas, a que podiam ser ligados até 4 microfones, e uma fonte de alimentação por baterias (nada disto chegou até nós, infelizmente). A Klangfilm-Tobis foi o principal fabricante europeu de aparelhos de registo e reprodução de cinema sonoro (sistema de som ótico em película), tendo equipado centenas de salas e dezenas de estúdios em todo o continente.
O primeiro equipamento de registo de som da Tobis, modelo A-F-2 da Klangfilm-Tobis (também óptico, mas criando uma banda de densidade variável), também era portátil e estava instalado num par de camiões Chevrolet (o segundo servia para transportar acessórios e fonte de alimentação elétrica). Foi por isto que se conseguiu filmar A Canção de Lisboa (Cottinelli Telmo, 1933) ainda antes da conclusão do estúdio, que só seria inaugurado um ano mais tarde, em 1934. Mas afinal, e como admitiu o próprio A. P. Richard, o engenheiro da Tobis Francesa que ajudou Cottinelli Telmo a desenhar o estúdio lisboeta, a “cabina de som” não passaria, afinal, de “uma espécie de garagem do ‘camion’ sonoro, sabido que a verdadeira cabina é este”![1]
A questão da mobilidade do registo de som era decisiva para romper as acusações de que o cinema sonoro não passava de uma forma de “teatro enlatado” que matara as possibilidade artísticas do cinema mudo, nomeadamente através da montagem e da grande mobilidade da câmara. E tinha sido justamente a Tobis Francesa, através dos equipamentos que colocou à disposição de René Clair (e depois venderia à Tobis Portuguesa) que ajudou a desmontar essa ideia, recuperando a mobilidade da câmara e oferecendo-lhe possibilidades criativas que o realizador francês exploraria brilhantemente em, por exemplo, Sous les tois de Paris (Sob os telhados de Paris, 1930), que se pode arriscar dizer ter sido o filme que, pelo menos em Portugal, mais críticos e espectadores converteu definitivamente às possibilidades artísticas do cinema sonoro.
Mas se a Tobis já tinha um, e ainda por cima móvel, porquê comprar outro equipamento de registo de som? Porque em 1938 os Chevrolets da A-F-2 da Tobis abalaram para a Missão Cinegráfica às Colónias, que visitou Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, filmando imagens (e sons) que seriam utilizados e re-utilizadas em vários documentários quase até aos anos 1950. O Eurocord B foi, assim, adquirido para que não se interrompesse a produção nos estúdios da Tobis de A Aldeia da Roupa Branca (Chianca de Garcia, 1938), nem de Feitiço do Império (António Lopes Ribeiro, 1940). Mas no ano seguinte, seria já o próprio Eurocord B a acompanhar a segunda (e muito mais completa do que a primeira) “viagem triunfal” do presidente da ditadura salazarista, Óscar Fragoso Carmona, às “colónias portuguesas em África oriental e ocidental” e aos territórios britânicos da União Sul-Africana – isto é, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, e partes da atual África do Sul. O filme correspondente foi produzido para o SPN pela SPAC de António Lopes Ribeiro, mas a realização está assinada, com toda a justiça, pelo engenheiro de som Paulo de Brito Aranha, na altura um dos técnicos mais antigos e mais experientes da Tobis Portuguesa. Este filme felizmente existe e pode ser visto na íntegra aqui.
O Eurocord B, por seu lado, pode ver-se na galeria de exposições da Cinemateca da Rua Barata Salgueiro, lado a lado com uma câmara Super Parvo, lançada pelo fabricante francês André Debrie em 1932 usada em vários dos filmes de ficção rodados nos estúdios da Tobis nas décadas de 1930 e 1940. Termino com a descrição que sobre a mesma câmara se podia ler na página 120 do já referido Roteiro de Viagem pelo Museu da Cinemateca Portuguesa, com uma última vénia a M. Félix Ribeiro, primeiro guardião dos tesouros do arquivo que hoje todos podemos apreciar: “Foi esta a câmara de filmar de 35mm (…) que a Tobis Portuguesa adquiriu à casa Debrie, em França para rodagem dos seus filmes sonoros. Diante dela actuaram Vasco Santana, António Silva e Beatriz Costa para A Canção de Lisboa, produção n.º 1 da Sociedade. A manejá-la estiveram nessa altura o francês Henri Barreyere e o português César de Sá. Outros operadores a manejaram, desde Heinrich Gärtner a Aquilino Mendes. Depois, a robusta ‘Super Parvo’ da Tobis filmou durante muitos anos as principais fitas portuguesas até que o Dr. Félix Ribeiro a conseguiu recuperar para o seu museu, ainda no Palácio Foz e, mais tarde nas salas do Instituto Português de Cinema, a São Pedro de Alcântara.”
Imagens: Col. da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinemateca e http://www.filmsoundsweden.se/wordpress/
[1] Fernando Fragoso, “O estúdio do Lumiar. O que nos disseram, sobre o assunto, Mr. A. P. Richard e Leitão de Barros”, Cinéfilo, n.º 214, 24-9-1932, p. 11.