Do princípio ao fim do filme mostra-se que está calor, faça sol ou caia a chuva, na tempestade e em calmaria meteorológica. É um Verão quente, o deste filme de Yoshitaro Nomura a partir de uma história de Seicho Matsumoto – um de perto de duas mãos-cheias na teia da ficção criminal japonesa do pós-guerra, cuja popularidade o segundo explorou na literatura e em que o cinema do primeiro muito insistiu na Shochiku, onde começou como assistente de Keisuke Sasaki, Yuzo Kawashima, Akira Kurosawa, fazendo-se realizador de muitos filmes em géneros díspares de 1952 a 1985. As personagens de Harikomi (1958) transpiram, enxugam-se, refrescam-se, usam leques, sombrinhas, reparam e voltam a reparar que os dias são cálidos, o calor aperta, como é quente aquele ano. E sentimos que sim. E sentimos o tempo a passar com elas à espera que o tempo passe e traga o que está na mira, observando rotinas sempre iguais de sossegada aparência.
À espera e à espreita, do lado dos dois detectives de Tóquio que se hospedam à paisana num hotelzinho em Saga, na ilha de Kyushu, com vista sobre a casa de família da mulher que vigiam por ser a única remota pista a poder levá-los a um homem suspeito de homicídio. Isto caso ele procure a rapariga a quem outrora esteve ligado e parece não ter esquecido à distância de uns mil quilómetros. O mais velho Shimooka (Seiji Miyaguchi) e o mais novo Yuki (Minoru Oki) instalam-se na divisão quadrada de chão forrado a tatamis voltada para a franca abertura em tabique móvel de armação de ripas em quadrados pequenos cobertos com papel branco translúcido. Defronte está um varandim rematado com traves de madeira. Do lado de lá da ruela estreita fica a casa de Sadako (Hideko Takamine), mais baixa, com um quintalzinho aonde se estende roupa numa sólida cana de bambu amovível; por onde se sai e se entra e o carteiro vem deixar correspondência.
A vista da divisão do primeiro andar em que, recatados, os detectives não tardam a levantar suspeitas junto da proprietária do hotelzinho que a polícia local sossega cobrindo-lhes a identidade, compõe-se nas linhas geométricas dos vários planos do shoji (o tabique móvel), do varandim, telhados e beirais, os traçados das casas fronteiras. Olhando em picado, o pequeno quintal com a sua cerca de madeira, folhagens, o piso térreo da casa da rapariga que os dois detectives acham de aspecto “mais velho”, ou “mais maduro”, que a idade que tem. Está casada com um homem, que se perceberá ser rude e avarento, e é madrasta dos seus três filhos pequenos, que mostram gostar dela, observa também a dupla detective. Como os motivos da vista, os gestos são repetitivos, os da observada, os dos observadores. O torpor – o Verão é quente – entra no filme como se difundem os reflexos filtrados de luz na casa tradicional japonesa.
O móbil criminal arranja-se com a monotonia do trabalho dos detectives. Em inglês, o filme é conhecido como Stakeout, indicação da operação de vigilância, ou alternativamente The Chase, nomeando uma orquestrada sequência de perseguição em que correm paralelos por serpenteantes caminhos o comboio que leva Sadako à montanha para rever Ishii (Takahiro Tamura) e o automóvel que leva Yuki no seu encalço, atrasando-se um pouco com uma explosão num dos episódios que germinam nas margens da narrativa carregando-a de realismo, pormenores, o sentido da duração, um sentido das coisas. Stakeout é um título mais justo. Enquanto nada e tudo acontece, com as saídas em flashback para Tóquio, com as incursões fora de casa atrás da mulher até ao mercado, numa excursão ao campo para um funeral da vez em que ela troca a saia, avental e blusa por um quimono de cerimónia, depois ao refúgio da estância termal de Hozenji, perto de Kusakari, Yuki encontra um reflexo em Sadako e vai matutando na sua vida. A missão do jovem polícia torna-se uma espécie de educação sentimental.
Harikomi impregna-se dessa meditação, a indisponibilidade para o compromisso conjugal, a miragem das oportunidades perdidas que se materializa ao olhar de Yuki perto do final quando vê o que até aí não viu naquela mulher. Fulgor. O off verbaliza, enquanto ele seca o suor entre a ramagem que o encobre, de sentinela aos (ex-)amantes abraçados no mesmo plano com fundo de vulcão: “Achava eu que ela era calma e imperturbável. Estou de olhos nela há uma semana. Agora parece outra pessoa.”
Quando a guarda começa, correndo vagarosa até ao sétimo dia em que Sadako quebra, Yuki acha o posto de vigilância na fresta vertical entreaberta à direita da janela-biombo. Shimooka, o companheiro de missão, que com Yuki revezará de atalaia acocorada, está no mesmo espaço. A dupla compincha polícia mais novo / polícia mais velho é um traço do filme, tal como a janela do quarto de hotel é um cenário perfeito. Hitchcock [Rear Window (Janela Indiscreta, 1954)] e Kurosawa [Nora inu (Cão Danado, 1949)] vêm depressa à ideia, à pala do suspense e da camaradagem-aprendizagem masculina em operação policial, mas no filme de Nomura a vista não é de traseiras, não se trata de pulsão voyeur, o crime já foi cometido. E estabelecendo-se na cabeça do jovem detective uma irradiação do outro, ela não se dá com o criminoso como no Cão Danado, mas pela observância da personagem da mulher. Sempre à distância, num afastamento que vai propiciando o movimento introspectivo de Yuki.
Noutros Nomura que conheço, seja no noir também vagamente hitchcockiano Zero no Shoten (Zero Focus, 1961), seja na viagem emocional mobilizada pela investigação policial de Suna no utsuwa (Castle of Sand, 1974), seja na monstruosidade do drama humano de Kichiku (The Demon, 1978), a complexidade das personagens vinga sobre um olhar crítico das suas misérias; a figuração da realidade japonesa materializa-se na atenção à paisagem, como na condição da sua comum travessia ferroviária (aqui, ainda na era pré-shinkansen, os famosos comboios-bala da rede de alta velocidade instalada anos depois), e ainda no subtexto das realidades e tensões sociais. O criminoso de Harikomi, também vulnerável à exposição da sujidade da grande cidade em que procurou melhor sorte quando partiu para Tóquio, não é assim um traste. A rapariga que ficou também não a encontrou, à sorte, em Saga. Vemo-la, como os detectives a vêem, pálida numa vida sem saída, sem graça, de sujeição a pequenas tarefas, míngua afectiva, gestos reflexos.
Além da repetição das rotinas, as mesmas nos mesmos horários, há uma cena no filme que disso diz tudo quando a acompanha, discretamente seguida por Yuki, numa saída à chuva para levar um par de galochas e um guarda-chuva ao marido banqueiro, coisa que aliás não chega a fazer porque entretanto a bátega de água pára e ela dá meia-volta (do que sabemos pelo raccord do relato de Yuki a Shimooka). A duração da cena apenas feita do trajecto, da chuvada, da tira que se solta na sandália de madeira de Sadako obrigando-a a saltitar na lama e a resolver o percalço indica a sonolência da personagem votada à marginalização abusiva que parece aceitar. Hideko Takamine, mais conhecida a Ocidente como actriz de Mikio Naruse, interpreta o papel com uma contenção admirável e a força que, no filme, penetra delicadamente a alma do para ela desconhecido Yuki. A empatia – palavra em voga nestes 20/20 – infiltra o filme sob o efeito do seu entranhamento no olhar de Yuki.
A sequência a que pertence o plano fixo do fotograma que suscita tantas palavras surge a uns bons doze minutos de filme, e ainda no seu arranque. A uns segundos apenas do final do genérico inscrito numa série de muito grandes planos dos olhos de Yuki, o homem mais novo da dupla detectivesca. Harikomi parte da estação de Yokohama embarcado com a parelha de Tóquio (que assim ensaia evitar a atenção de jornalistas, sabemos mais tarde). Uns oito dos tais primeiros doze minutos de filme correspondem a essa apinhada viagem de comboio por muitos apeadeiros rumo a sul em dia de muito calor. Na primeira sequência pós-genérico, já instalados no local da inacção, Yuki e Shamooka conhecem Sadako. Em todo o caso, o que dela entrevêem da janela. Pela primeira vez neste breve plano fixo, olhada por Yuki e em contra-campo à sua imagem espreitante.
Ela vem habitar o plano chegando do fundo do quintal de cesto de roupa debaixo do braço, a silhueta de branco ilumina-se fugazmente a um raio de sol. O preto-e-branco scope corta o enquadramento a meio: correspondendo ao campo de visão de Yuki, agachado diante da nesga, mas em ligeiro recuo, a câmara capta, à direita, a imagem do cenário doméstico de Sadako e, à esquerda, a penumbra sombreada do tabique de madeira e papel captado do interior do quarto de hotel. Os dois espaços estão ligados, a imagem é dupla e devolve um efeito de elisão. Mero ponto de vista – o lado direito – alinhado – à esquerda – com a geometria de uma mancha de cinzentos. É uma tensão que constrói o filme, feito de alternância de motivos e ritmos. Uma imagem do que os olhos de uma pessoa são capazes e incapazes de ver noutra, coisa que se aprende nos livros e pode dar epifanias de vida jovem.
(Logo a seguir, num dos grandes movimentos de Harikomi, a câmara levanta-se com Shamooka do fundo do quarto e avança para um mergulho da janela, abrindo o plano e aproximando-se sem corte ao outro lado da rua. Já agora não se iluda que é um filme de belas imagens, até mais compostas, esplêndidas, dramáticas do que esta.)
Ah, e o elogio deste fotograma? Vem de recentes sessões exclusivas em tempo de confinamentos, casa, janelas, vizinhança atenta. Não é verdade que não haja fotogramas como o primeiro, nestas coisas é sempre o último. E nem isso é verdade, já houve outros.
Maria João Madeira
Programadora na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema